Não havia aparecido uma alma sequer naquele posto de gasolina desde que ele estacionara ali, ao meio dia. Era mesmo difícil imaginar que ainda havia combustível nas bombas, tal era o estado em que se encontravam. Tinha resolvido fazer, ele mesmo, um reparo rápido no caminhão. O reparo tinha durado a tarde inteira. Quando terminou, já estava escuro. Foi quando o velho apareceu:
-O senhor é o Lidio, não é?
-Eu mesmo, respondeu Lídio. Gostou que aquele velho se lembrasse dele. O conhecia de vista, das poucos vezes em que estivera ali, naquele posto de beira de estrada.
-É seu? O velho apontava para o caminhão. –É seu o truck verde?
Truck. Era até gozado, ninguém mais chamava caminhão de truck. E a pergunta também não fazia sentido. Por acaso tinha mais alguém ali além dele?. Lídio olhou com carinho para o Mercedes, que era sua vida. Lá estava ele, com as pestanas de plástico verde nos faróis, parecia dormir.
-É meu, sim senhor. O velho pôs a mão em seu ombro e o conduziu até o pequeno bar ao lado do posto. Ofereceu cerveja. O rapaz, muito desconfiado, recusou. Ninguém dá nada de graça, pensou.
-Aceite, insistiu o velho, beba comigo que eu quase nunca tenho companhia. Que mal pergunte, o senhor vai pra onde?
Então era isso: carona. Lídio sorriu e deu um gole grande na cerveja, respondendo com calma:
-Nova Escócia. E de lá pela estradinha do sapo até Santa Leocádia. Depois volto para cá e continuo sei eu pra onde. Se lhe servir...
-Não é pra mim não, disse o velho, antes fosse, sair desse fim de mundo. Por mal dos meus pecados Deus quis que eu ficasse com esse botequim onde ninguém entra, por conta de dívidas dos outros comigo.
-Não entra o quê, responde Lídio. Se a comida é tão boa, que eu sei!
-É, diz o velho, a patroa capricha, faz o que pode com o pouco que tem. O velho serviu mais cerveja e continuou – A sua carga é de...
-Vidro. Algum ricaço que comprou fazenda e quer casa nova com laminados.
-Sobra então muito espaço na carreta... concluiu o velho, com um jeito sonso.
-Um pouco, dos lados. O senhor tem encomenda?
-Minha não. De um parente. Para Bom Tempo. Quer dizer, perto de Bom Tempo. Claro que eu pago por ele, adiantado.
-Que nada! Respondeu Lídio, olhando com avidez para o prato fumegante de sopa que chegou sem que ele pedisse. – Eu vou praquele lado, mesmo. Por acaso vocês têm pão?
O velho mandou trazer a cestinha de pão, e a sopa foi devorada rapidamente.
-Numa noite fria feito a de hoje uma sopa dessas bem quentinha bate mesmo na fraqueza. Tem sobremesa?- Lídio se sentia à vontade, credor antecipado do favor que ainda ia fazer.
O velho mandou vir a sobremesa, enquanto o rapaz perguntava pelo teor da carga.
-Depois se vê isso, é um volume só. Por hora, o senhor não quer tomar um banho lá nos fundos? Não reparando na pobreza...
Um banho seria bom. Agradeceu o banho, como já tinha agradecido a janta que não lhe foi cobrada. No caminho escuro até o chuveiro, ombreado pelo velho, Lidio pôde ouvir um choro abafado, e uma ladainha sendo puxada, como se estivessem rezando por algum defunto. Mais adiante, olhando pela vidraça embaçada de um cômodo nos fundos pôde ver o morto sobre um catre, com quatro velas em torno.
-Aquele ali era meu irmão, muito boa pessoa - sussurrou o velho. Lídio recomendou os pêsames e se encaminhou sozinho para o chuveiro, na verdade uma bica de taquara com um sabugo na ponta, que desarrolhada deixava escorrer o jorro de água fria. No entanto, melhor que nada. Mais tarde, quando se acomodou no caminhão para dormir, Lídio teve quase certeza de que a carga extra seria justamente o morto e seu caixão.
Dito e feito. E agora, voltar atrás na palavra dada? Certo era que o velho podia ter falado antes sobre a natureza da encomenda, e também era certo que aquele favor não lhe custaria nada. Tinha só que carregar o defunto por sessenta ou setenta quilômetros, e entregá-lo à beira da estrada para um certo Feliciano que estaria esperando por ele. Amarrou o caixão ao lado das chapas de vidro e preparou-se para se despedir do velho que acabava de chegar ao seu lado, puxando pela mão uma menina tão pequena, mas tão pequena que não se concebia haver no mundo uma mulherzinha daquele tamanho. Uma mulher já com todos os paramentos, só que pequena, miudinha.
-O senhor leva? Leva ela junto, que é a única filha do morto, e quer ir rezando por sua alma. Ela vai com o senhor enquanto o caixão for. Depois pode deixar, que ela segue o destino.
Que destino? pensou Lídio. Cair no mundo? Voltar para casa? Ir morar com um parente, agora que ela não tinha ninguém? Triste menina aquela, recendendo a vela queimada, os olhinhos inchados de tanto chorar. Claro que podia levá-la junto, na boléia.
Já estavam a caminho quando Lídio reparou melhor na menina, encolhida num canto da cabine, com uma trouxinha encardia no colo, à qual ela se agarrava com tanta força que parecia levar ali a coroa de um rei. Percebia-se que a cada baque do caminhão – e naquela estrada ele dava muitos baques – a menina ameaçava olhar para trás, ver se o pai estava em conforto no caixão. Num tranco mais forte, a coitada deixou escapar um gemido e começou a chorar. Lídio estendeu a mão para consolá-la, mas ela se encolheu mais ainda junto à porta. Pobre criança assustada, pensou, com medo de tudo e todos. Por certo, já havia sido informada do tipo de vida que levaria no futuro. Perdido o pai, escorraçada pelo tio, lá se ia para a cidade grande, levada por aquele Feliciano, primeiro trabalhar como uma escrava na casa de alguém. Depois, pegando corpo, se perderia à força pelas mãos de algum mau caráter, e depois disso, a vida... Nisso tudo o rapaz matutava, e já começava a sentir ódio pelo velho do posto.
-O Maldito! - exclamou, assustando a menina. Um tranco mais forte na carroceria, resolveu parar. Constatou que a tampa do caixão tinha se soltado, lascando uma das chapas do vidro caro. Que diabo!
O defunto arreganhava o rosto de cera para o sol. Lídio tratou de fechar logo a tampa do caixão para a menina não ver o pai. Não havia perigo disso: lá estava ela, sentada durinha na cabine do caminhão, olhando para a frente, a nuca se abrindo em duas tranças muito apertadas. Sob o sol forte, aquele morto e seus odores pediam logo para serem enterrados, e Lidío tratou de apressar-se. Poucos quilômetros adiante a menina fez sinal a ele que parasse. Era ali. Mas, ali aonde?
Em cima do barranco? No meio do mato? Prestando mais atenção percebeu que devia ser mesmo ali o lugar. Viu os montes de terra logo à beira da estrada, os pedaços de cruzes espalhados, o cemitério abandonado, desses que o povo deixa existir às vezes para receber os infelizes que não têm ninguém. Que família cruel, deixar o corpo do ente querido num lugar pagão daqueles! Lídio sentiu-se tonto, não sabia se pelo calor do sol ou pela raiva que começava a consumí-lo. Sentou-se no estribo do caminhão, esperando aquele Feliciano. As horas se passavam, a espera foi se tornando cansativa. E esse mal cheiro que não me dá sossego, pensou Lídio. Parecia que o defunto, com aquele fedor todo queria dizer alguma coisa. E o rapaz foi sentindo aos poucos... sentindo que o defunto assoprava toda a verdade em seu ouvido: sim, a verdade sobre o irmão dele, o velho, dono do bar, que se aproveitava da sobrinha inocente à vista de todos. De como ele, não suportando mais de vergonha, se atracou com o mano mais velho e recebeu dele a facada mortal na virilha, e ninguém fez nada para ajudar.
Lídio ficou apavorado. Ele ouvia, ouvia literalmente a voz do morto. Acocorada sobre o barranco, sem entender nada, a menina o observava andar em torno, pulando, batendo nos ouvidos com fúria, como se quisesse arrancar alguma coisa da cabeça. De repente, o rapaz subiu na carroceria , agarrou o caixão e o atirou sobre o barranco, entre as cruzes quebradas. Sem entender nada, a menina correu e se escondeu entre os arbustos. Lídio subiu no caminhão, deu a partida e fugiu em desespero, sumindo na poeira.
Na viagem de volta, dias depois, rezando sem parar, Lídio passou a toda velocidade pelo pequeno cemitério. Teve a impressão de que o caixão estava no mesmo lugar em que o tinha atirado. Da menina, nem sinal.