Nos tempos de contínuo, quando a faina diariamente iniciava as cinco da manhã num ponto de ônibus de periferia, entre o frio da madrugada e o calor gostoso da marmita mantida contra o peito pra não incomodar aos demais passageiros, Policarpo só se incomodava com o fato da marmita denunciar o misere, denunciar a contradição entre os trajes, crediariamente adquiridos, muitas vezes mais caros que suas possibilidades, e a sua verdadeira condição no estrato da sociedade.
Mas vá lá, pensava consigo, um dia não vou mais carregar mais esse disco voador, vou poder fazer refeição, sentar-me à mesa, me fazer servir das mais requintadas iguarias, pelos mais refinados serviçais.
Sempre que devaneava pelo universo de sua mania de grandeza, o fazia com pensamentos polidos, frases mentais rigidamente elaboradas dentro das normas cultas da língua, e até, com impostação formal de mestre de cerimônia em eventos oficiais.
Mas, ainda assim, abraçado ao cálido, humilde e desprezível reservatório nutricional, escondendo toda a humilhação que sentia, cumpria diariamente o trajeto rotineiro.
Ordinariamente levantava, esquentava a gororoba, gomalinava os cabelos, vestia a sua fantasia de classe media, abraçava a marmita como criminoso obrigado a abraçar-se ao seu delator e escorria rua abaixo, lotação adentro, vergonha a cima.
Certo dia, como na vida todos os problemas podem encontrar soluções e soluções, Policarpo, ao entrar numa loja de quinquilharias, uma dessas lojas de preso único e qualidade duvidosa das mercadorias, depara-se com uma “grande solução”: uma rádio á pilhas.
Não era bem um radio a pilhas, era uma marmita importada, novidade fenomenal do inventivo gênio estrangeiro, com botões de controle e tudo, e o melhor, cabia toda comida disfarçadamente.
Na outra madrugada, no ponto de ônibus, Policarpo mais garboso que sempre, mais perfumado que nunca, trajado aquela linda camisa branca de mangas longas e punhos largos, trazia, colado à orelha, o seu morníssimo “rádio a pilhas”.
A satisfação de não carregar a marmita delatora, de não ter que assumir, aberta e descaradamente sua condição de bóia-fria, realizava, nas emoções de Policarpo, um milagre especial.
“Rádio” ao ouvido, uma felicidade, um orgulho, quase arrogância.
Lépido, leve e feliz, Policarpo não podia se conter e para intensificar o realismo do seu novo “rádio”, arriscava algum molejo, algum leve requebrado, como se estivesse realmente a acompanhar a musica originaria do rádio.
Era a felicidade em pessoa.
Bonito, bem vestido, cheiroso, e agora, rico, não carregava mais marmita, não era mais bóia fria, era rico...
Algumas paradas a frente, alguns pisões nos calos e apertões a mais, uma mão pesada e rústica toca o ombro de Policarpo como que lhe chamar a atenção.
Mergulhado em suas fantasias de riqueza e importância, beleza e elegância, arrogante, Policarpo faz que não percebe, finge que continua envolvido pela musica oriunda do “rádio”.
Mais uma parada, mais apertões, menos espaço para se mexer no ônibus e a mão rude, insistente, mais uma vez toca o ombro de Policarpo.
Envolto em suas fantasias de superioridade, Policarpo finalmente vira-se para a direção de quem o chama e em tom de interrogatório, em tom de autoridade, pergunta:
“Qual é não se pode mais ouvir uma musiquinha em paz?”
“Claro que pode, desde que a musica não derrame e suje a si e aos outros de caldo de feijão”, responde o passageiro da mão rude em voz firme e ar quase furibundo.
Desde esse dia Policarpo foi a pés para o trabalho, ate juntar do dinheiro da passagem, a quantia para comprar uma bicicleta.