Zabelê, zumbi, besouro
Vespa fabricando mel
Guardo teu tesouro
Jóia Marrom
Raça como nossa cor
Nossa linda juventude
Página de um livro bom...
Ainda com o travesseiro por sobre a cabeça, Marcelo olhou o rádio relógio: 5h45min. Pensou em dar-se mais alguns instantes e “degustar” a música Linda Juventude. Porém, a mãe bateu à porta do quarto dizendo para que ele se apressasse. Ela queria usar o banheiro e habitualmente demorava. O rapaz, afoito, levantou-se num pulo e passando a mão no rádio o colocou no modo sleep. Entrou no banheiro com a cara amarrotada pela noite mal dormida. Sonhara coisas estranhas, sem nexo. Em sua cabeça persistiam alguns versos da música: “brilha por nós; vidas pequenas da esquina; fado; sina, lei, tesouro”. Marcelo abriu o chuveiro e tomou uma ducha rápida. Já vestido, olhou-se no espelho. Seus olhos demonstravam ansiedade, sentimento do qual ele não sabia o motivo. Indagou-se sobre o porquê de sentir-se pouco à vontade, não encontrou resposta. Passou as mãos pela face, a barba estava por fazer. A mãe, agora, batia à porta do banheiro compulsivamente. Marcelo abriu o aposento e ali, ele e a mãe trocaram meia dúzia de palavras. O rapaz se dirigiu à cozinha, tomou seu café e ficou aguardando. Possivelmente, a espera foi o motivo da troca de palavras.
Na rua, mãe e filho iniciaram uma caminhada ao ponto de ônibus. Entremeio às passadas, falavam-se pouco. Marcelo, do alto de seus 19 anos, agia tal qual os jovens de sua faixa etária: calados em seu mundo, perfuntórios no trato com os pais. A mãe, enquanto o rapaz caminhava um pouco à frente, observava-o e relembrava situações de sua infância: o primeiro sorriso, o primeiro dentinho, os primeiros passos, o primeiro tombo, a primeira palavra! E agora, ei-lo homem feito, cheio de planos!
Marcelo, alheio, vez ou outra se detia para que Dona Maura o alcançasse. Os olhos do moço, especialmente nesta manhã, estavam inexpressivos...talvez tédio, talvez cansaço pela correria diária. Já cedo, Marcelo arrumara um emprego de office-boy indicado por uma amiga de sua mãe e lá fora ele: dezesseis anos, o rosto cheio de espinhas, as mãos nervosas, a boca trêmula ao pronunciar seu nome e a mando de quem estava naquele estabelecimento. Não foram necessários muitos detalhes, a vaga estava destinada a Marcelo, afinal, segundo a dona do escritório de contabilidade, o rapaz fora indicado como alguém muito prestativo e de extrema confiança. Nos dias posteriores, o jovem confirmou as qualidades atribuídas a ele pela amiga de sua mãe. No trabalho era tido como um garoto de futuro brilhante: prestativo, atencioso, esforçado, confiável e inteligente. O emprego era conciliado com os estudos. Marcelo estudava à noite, 1ª série do colegial. Estava atrasado um ano. A mãe se justificava perante os familiares dizendo que Marcelo perdera um ano por causa de sua separação. Afinal, ambos se viram sem chão quando aquele que fora pai e esposo durante anos sumira no mundo deixando-os a mercê da própria sorte e da ajuda de parentes e amigos. Os dias se transformaram em semanas, estas em meses...os meses em anos e Marcelo foi promovido a Auxiliar de Contabilidade. Teve uma melhora significativa em seu salário. Almejava fazer Administração assim que terminasse o colegial e para isso passou, a duras penas, a economizar. A mãe também arrumara emprego como doméstica em um bairro rico da cidade. Os dois começaram a respirar mais aliviados e amenizaram o sufoco da reviravolta pelas quais tinham passado até então.
Dona Maura, atrasada em relação ao filho, pediu que Marcelo a esperasse e fez menção de reclamar quando ele a interrompeu dizendo que estava sentindo algo pesado no coração. A mãe perguntou o motivo, mas como no início, ao olhar-se no espelho, o rapaz não soube explicar o que sentia. Dona Maura o tranqüilizou dizendo que, provavelmente, ele estava assim por ser início da semana e que ela mesma sentia-se mal toda segunda-feira. Marcelo a olhou e hesitou em contar-lhe sobre o sonho que tivera. Por fim, decidiu nada dizer. A manhã estava fria, propícia para dormir e ele sentiu preguiça em falar.
Chegaram ao ponto de ônibus e cada qual ficou absorto em seus pensamentos, com as mãos nos bolsos, os olhares vagos. Duas ou três mulheres também esperavam o ônibus, desatentas à presença de Marcelo e sua mãe. Ainda não estava de todo claro. A respiração de cada um misturava-se ao ar deixando vestígios. Alguém comentou que o frio estava infernal. Marcelo olhou na direção de quem falara e viu uma senhora de meia idade, agarrada a sua bolsa como que na tentativa de barrar o vento gelado.
Uma silhueta, em meio à neblina, foi se formando e crescendo aos olhos de Marcelo, sua mãe e as demais pessoas ali. Era um homem claro, de estatura média, aparentando 22 ou 23 anos. Trazia nos dedos um cigarro amarrotado. Fitou Marcelo e perguntou se ele tinha fogo. Marcelo apenas mexeu com a cabeça demonstrando que não. O homem olhou para as mulheres levantando a mão num gesto de indagação de que se uma delas tinha um isqueiro ou fósforo. Mas apenas obteve negativas. Então, o moço jogou o cigarro no chão e o pisou com raiva. Saiu caminhando cabisbaixo. Marcelo o seguiu com os olhos, flashs do sonho que tivera lhe passaram pela cabeça...viu-se no chão, enquanto uma pessoa de jaqueta jeans cuspia nele. Sua mãe chorava copiosamente, dizendo coisas que ele não compreendia, inúmeras pessoas a sua volta o olhavam e riam. Marcelo, procurando quebrar a sensação ruim que as lembranças do sonho lhe traziam, disse para a mãe que o ônibus estava demorando mais do que de costume. Dona Maura apenas acenou com a cabeça concordando com o filho.
A uma pequena distância dali, o homem que acabara de sair do ponto, voltou com as mãos postas à boca soprando para aliviar o frio. Novamente aproximou-se fitando Marcelo, colocou as mãos na cintura da calça e tirou um revólver. Diante dos olhos estarrecidos de todos disse que era um assalto e que calassem a boca que nada aconteceria. Meneando a arma com nervosismo foi pegando o dinheiro que lhe era entregue e enfiando nos bolsos da jaqueta jeans. Viu que Marcelo se mantinha estático. Cutucou o rapaz com o cano do revólver. Marcelo balbuciou que não tinha nada nos bolsos. O homem, num gesto de repulsa, cuspiu-lhe no rosto. Assustado, Marcelo se afastou pisando em falso e perdendo o equilíbrio. Tudo foi muito repentino...os berros das mulheres, os gritos de dona Maura, o estampido de uma bala. Marcelo prostrado ao chão não conseguia assimilar o que acontecera. Ao seu lado, a mãe gritava e chorava. Mais adiante, seu algoz fugia covardemente. O ônibus que aguardavam foi parando... inúmeros olhares, alguns curiosos, outros aflitos, observavam da janela o jovem estirado. Tudo foi ficando escuro...o ar pesado...os ouvidos zunindo. Marcelo morrera no ponto de ônibus antes mesmo de receber socorro!
No dia seguinte, a população, indignada, lia no jornal local:
“MAIS UM CAPÍTULO TRÁGICO EM NOSSO COTIDIANO. FADO? SINA? QUEM RESTARÁ DESTA JUVENTUDE?
Na manhã de ontem, jovem de 19 anos a caminho do trabalho, morre assassinado estupidamente na presença da mãe. Dona Maura, 39 anos, disse que o filho sonhava com uma vida promissora, ceifada abruptamente por outro jovem que, com certeza, também não terá um futuro... ”