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Contos-->Desespero -- 29/05/2000 - 04:11 (Marcia Lee-Smith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Olha, eu não sei o que seria de mim, se eu não tivesse fugido, dizia o velho, respirando com dificuldade.
Eu o olhei mais uma vez. Que lixo. Que traste. E eu tinha de ficar ali ouvindo aquelas abobrinhas...
A senhora vai lá? O velho insistia e insistia. Não estava mais apavorado, ou nervoso. Estava apenas sobrevivendo, como uma chama de vela que está quase apagando.
Não. Vou mandar alguém. O senhor pode ir embora para casa. Assine o depoimento e vá. A gente avisa se precisar de mais informações.
O homem tropeçou e bateu o osso da bacia na quina da mesa. Acho que disse "merda", entre os lábios secos.
Suspirei quando ele fechou a porta. Mais um. Todos os dias vem algum louco aqui. Acendi um cigarro, mas a boca já estava saturada com o gosto amargo.
Três dias consecutivos da mesma loucura. No primeiro dia fora a moça. Ela estava histérica. Fomos ao local. Nada. Consideramos que era mais uma dessas que inventam uma história para aparecer. É uma necessidade patológica. Minha mãe diria, falta de homem.
No segundo dia foi o menino. Ele foi levado pelo pai, que estava mais apavorado que a criança.
O que seria amanhã?
Olhei o mapa da cidade outra vez. Cada caso tinha acontecido num lugar diferente. Ainda não era possível fechar um padrão geométrico, ou coisa que o valha. Por enquanto um triângulo, mas isto não tinha muito significado.
Mandei o Jair ir ao local. Ele me olhou com cara de quem vai rir, balançou a cabeça, e só perguntou, quando?
Agora, respondi, enquanto pegava minha bolsa e já procurava as chaves do carro. para mim o dia estava encerrado.
Tive estranhos sonhos. Sonhei com o velho, com o menino, com o pai do menino, com a moça, mas nada fazia o menor sentido. Um destes sonhos malucos, pensei de manhã, quando acordei.
Mas havia um vínculo entre os três casos. Tinha certeza que havia, só não podia percebê-lo.
Uma semana se passou sem que os loucos aparecessem, ou que novos loucos surgissem.
Bom, pensei, já tenho problemas demais.
Um mês se passou, e nada mais aconteceu.
Foi quando meus sonhos começaram em série. Todas as noites. Mesmo durante o dia, como foi no domingo, a ressaca estava grande, e o sono me venceu depois do almoço.
O velho tremia de medo, a moça gritava, o menino corria, e no fundo, como uma tela gigantesca estava um grande espelho. Mas o espelho não refletia nada, e era móvel, tremulava como a superfície de um lago, tinha uma certa permeabilidade, transmitia uma frieza azulada.
Comecei a ter dificuldades para acordar. Sentia-me letárgica, como se tivesse acordando de uma profunda anestesia geral.
Numa tarde de pouco movimento decidi reler os depoimentos. E, de repente tudo ficou claro. O elemento comum era um espelho. O velho estava numa padaria, a moça em seu apartamento, e o menino no shopping.
Todos citaram que ao se olharem ao espelho, as coisas começaram.
A padaria era no centro da cidade. Alguém já havia ido lá, e tudo parecia normal, mas decidi ir de novo. Movimento razoável, pensei.
Perguntei a uma balconista, se ela se lembrava do velho. Ela contou o que já havia contado antes, na certa para um mundo de gente. Homem louco... Ele olhava para aquele espelho no fundo das prateleiras como se tivesse alguma coisa lá além da cara feia dele.
Comecei a me sentir ridícula. Uma delegada, cheia de problemas, investigando um peripaque? Devia estar muito cansada.
Mas como estava voltando para casa, não me custava passar no shopping. Mesmo porque, seria bom relaxar um pouco.
A praça de alimentação estava cheia, mas a praça de diversões para crianças nem tanto. Nem era ainda fim de semana, pensei.
O espaço era enorme. Brinquedos destes que poluem o som, aos montes, dezenas de aparelhos eletrônicos simuladores de corridas, de vôos, o terrível barulho das trombadas daqueles carrinhos elétricos, máquinas de fazer loucos. Cheguei a me questionar se valia a pena ter filhos numa época em que tudo é simulado, e que as crianças são confinadas em apartamentos, tendo como diversão apenas coisas pagas, coisas em que você coloca uma ficha e tem dois minutos de ilusão.
Espelhos em profusão, por todos os lados. Posicionei-me em frente a um deles e só pude ver uma mulher muito cansada.
Espelho da verdade, pensei comigo, rindo. Voltei à praça de alimentação e tomei um refrigerante.
Meu marido estava vendo TV quando cheguei em casa, e os meninos jogavam video-game no quarto.
Anunciei que o jantar seria depois que eu tomasse banho, e relaxei por mais de uma hora na banheira.
A noite tinha tudo para ser normal e tranqüila se eu não tivesse tido a infeliz idéia de telefonar para a delegacia.
Foi quando eu soube que havia uma queixa de desaparecimento.
Um menino de doze anos. Do bairro. O pai registrara a queixa, e até aí, nada de mais. O problema era que o desaparecido era o mesmo menino do caso do espelho.
Olhei meus filhos, onze e quinze anos. Poderia ser um deles. Mas graças a Deus não era. Coloquei-me na posição da mãe do garoto.
Liguei de novo. Já estavam tomando todas as providências.
Mas eu achei melhor ir lá.
No dia seguinte, não havia a menor pista. Tudo o que poderia ser feito, humanamente impossível, pensei eu, havia sido.
Na segunda noite após o desaparecimento, e depois de mais uma noite dos incessantes pesadelos, decidi mandar chamar o velho e a moça.
Da mesma forma que não parecia haver ligação entre os casos, poderia haver, ou pelo menos era a minha obrigação tentar tudo.
O menino tinha sido visto pela última vez na saída do colégio. Estudava a quatro quadras de casa. Refiz o trajeto. Do lado da rua que teria sido mais plausível que ele tivesse feito o caminho. Olhei cada detalhe. Não consegui nenhuma conexão.
A mãe estava em estado de choque. Internada em uma clínica da prefeitura. O pai aguardava em casa algum pedido de resgate. Mas nós somos pobres... chorava ele, desesperado. Por que fizeram isso com a gente?
Um detetive veio com a notícia. O velho não havia sido encontrado. No barracão onde ele morava a porta estava apenas encostada. Um prato de comida pela metade ou que as formigas teriam comido, pois que ainda estavam lá fazendo uma infindável procissão, indicava que ele estava almoçando, e parou a refeição. Ou nem tinha começado. O cachorro vira lata no exíguo quintal estava sem água.
A perícia constatou que a comida estava há dois dias no prato, assim como os restos nas panelas.
Mas o incrível era que o cadeado no portão estava colocado, e o chaveiro com as chaves estava em cima da cama. Logo, se ele houvera saído, não se lembrara de que precisaria do molho de chaves. E depois, era incrível que alguém colocasse a comida no prato, depois saísse, colocasse o cadeado e desaparecesse.
O barracão foi totalmente revirado. E enquanto isto uma viatura ia ao prédio da moça.
A mesma cena. O chuveiro ainda estava ligado, mas a resistência havia queimado. A água descia gelada encharcando uma calcinha branca no chão do box.


Os vizinhos não tinham dado por sua falta. Só a vizinha dos fundos, de onde podia ver a janela do banheiro observou que a luz do banheiro estava acesa há dois dias.
Dois dias. Tudo há dois dias atrás.
Foram meses e meses de investigação. Cada milímetro quadrado da cidade foi investigado, centenas de pessoas prestaram depoimentos, e finalmente minha cabeça não resistiu à pressão.
Licenciei-me do cargo, e decidi ficar descansando por uns tempos para depois advogar por conta própria, o que nunca fiz.
Estive em terapia, por muito tempo. Consegui vencer os sonhos recorrentes, pensei ter conseguido esquecer.
Há um ano, estava voltando do super mercado, quando alguém buzinou atrás, numa tarde de chuva.
Olhei pelo retrovisor, e tive pouco tempo de consciência para ouvir o barulho da trombada, presenciar em câmera lenta vidros se estilhaçando, e ver meu rosto no espelho, se diluindo numa superfície gelada.
Agora, fico feliz quando meu marido se arruma e chama os meninos para ir ao shopping, naqueles brinquedos. Apesar da palidez de seus rostos, das feições um tanto fechadas, gosto de ver o três juntos, todos como crianças.
Posso também ver, em cima da mesa da sala, que há uma carta da seguradora.
Perdi totalmente minha audição, o mundo parece tranqüilo e calmo.
Minha visão está razoável, às vezes um tanto ou quanto fora de ângulo.
As pessoas ficaram subitamente muito amáveis. Todas sorriem para mim, algumas falam, mas como disse, eu não as ouço.
As crianças tem sido incríveis. Não fazem barulho, mas eu as vejo poucas vezes. Eu os amo muito, só não consigo falar com eles.

Causa-me tristeza ver que meu marido tirou do dedo a aliança, posso ver a marca em seu anular direito, quando ele se barbeia no banheiro e sorri para mim. Só que ele nunca vê que eu estou lá, sorrindo, e que finalmente encontrei o velho, a moça e o menino.
















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