Ao descer do carro, naquele momento tão aguardado, Marcelo tinha uma missão. Não que tivesse mesmo esperado aquele momento por muito tempo... Havia se decidido por agir, mesmo, no dia anterior. Estava cansado da humilhação que vinha sofrendo naquelas últimas semanas. Cássio já tinha desrespeitado Marcelo e abusado dele tudo quanto poderia. O tenente não estava mais disposto a tolerar aquilo. “Bico a gente faz para resolver nossos problemas” – pensou ele, “não para arrumar novos... Se esse filho da puta soubesse falar direito com as pessoas, nada disso estaria acontecendo... Eu estaria em casa, assistindo televisão, ou estaria tomando uma cerveja com os manos do quartel... Jogando bola... Será que o São Paulo ganha sábado? Ai, que saco... Eu aqui, disposto a acabar com o idiota e pensando em futebol... Tudo isso é uma merda, mesmo...” Nesse momento, pensava em Cássio, de quem fazia a segurança pessoal nos últimos três meses. Pensava na primeira impressão que ele causou em Marcelo, de um empresário culto, poderoso e justo. Nada parecido com o agiota covarde que foi se revelando com o passar dos meses. O militar remoia sua própria ingenuidade: “Primeira impressão, grande merda...”
Se não estivesse tão compenetrado com seus próprios pensamentos, Marcelo teria percebido o apagar de luzes numa janela do andar superior, assim que chegou ao estacionamento daquele prédio de três andares. Se não estivesse tão distraído enquanto abria o portão, com sua própria chave, teria visto o vulto da pessoa que se agachara segundos antes, ao lado da escada, protegendo-se na escuridão. Mas não viu nada disso. Era tarde da noite, tinha tomado por certa a solidão de Cássio no prédio. “Não vai ter mais ninguém lá”, pensava. Continuou subindo as escadas, pensando apenas na execução do plano. “Codinome: Limpeza”, divertia-se pensando. Ao chegar no segundo andar, fora recebido pelo sorriso no rosto de Cássio, como sempre. Aquele sorriso já não o conquistava mais. Não o tocava, era falso, enganador, uma armadilha. Marcelo estava convencido disso. Com um aperto de mão, Cássio o cumprimentava “Grande Marcelo, meu anjo da guarda mais dedicado, capitão coragem!” – disse, quase cantando. Essa simpatia toda era comum. Principalmente em dias de pagamento, como aquele. Cássio tocou com as mãos os ombros de Marcelo, e com elas o guiou até sua sala, a última do corredor. Realmente, o prédio estava vazio. “Que conveniente”, refletiu Marcelo.
O tenente ficou em pé de frente para Cássio, e de costas para a porta, que estava aberta. O agiota, que se sentara na sua cadeira reclinável, de couro, e deitara-se nela tanto quanto podia, agora juntava as pontas dos dedos das mãos, como se fosse um grande estrategista, e olhava para Marcelo como se olha para uma criança. Mirou o relógio, como se não fosse nada. “Fim do mês, Marcelo, fim do mês – comentou o chefe – sabe o que isso quer dizer? Grana!!!” Cássio gostava de bancar o bonzinho. Mas não foi bonzinho com aquele dono de padaria que mandou Marcelo cobrar na semana anterior. O português não tinha o dinheiro todo, e foi isso que Marcelo informou-lhe, ao retornar de mãos vazias aquele dia. “O que eu podia fazer? – perguntou Marcelo – Se não tem, não tem.” “Não é assim, não”, respondeu Cássio. No dia seguinte, a notícia do assassinato do filho mais velho do português, enquanto voltava da escola, foi notícia no jornal. Cássio era vil, baixo. E por ser seu empregado, Marcelo vinha se comparando a ele – isso o deixava com náuseas.
O agiota abriu a gaveta à sua esquerda e de lá tirou, sem olhar para dentro, um maço de notas de cinqüenta. “Aqui tem setecentos” – disse. “Se tivesse corrido tudo bem com o portuga, aí teria mil, você sabe.” Cássio não gostava de Marcelo. Na verdade, sabia que o tenente já não o aturava, e por isso estava com o pé atrás. Marcelo aproximou-se e, com a mão direita, recebeu o dinheiro. Empurrando a lateral direita do terno com a mão esquerda, levou o dinheiro até as costas, seguindo o contorno da cintura. Enfiou o dinheiro na calça. Sentiu os dedos tocarem o coldre da 7.65. Com displicência, como quem pensa “fazer o quê”, agarrou a arma pela coronha, e puxou-a para fora, mirando o chão. Cássio olhou desconfiado, enquanto afastava sua cadeira da mesa com os pés, como que de fininho. “Nem pense”, disse Marcelo enquanto usava o polegar para destravar e puxar o cão da pistola. Cássio arregalou os olhos. O “click”, Cássio ouviu. Mas provavelmente não ouviu o estampido do tiro que acabou com sua vida. O estouro ecoou pelo prédio inteiro e casas vizinhas. O impacto sujou de sangue metade da sala em que eles estavam, mas Marcelo, apesar de não ter ligado para isso, estava limpo. Dirigiu-se à mesa, abriu a mesma gaveta esquerda, e pegou o resto do dinheiro. Nem viu quanto tinha. Distraiu-se olhando o estrago na cabeça do agiota. Ficou feio. “Eu me demito, cabeção” pensou, com um sorriso discreto no rosto, e a sensação de missão cumprida.
Guardou o dinheiro, guardou a arma, e teve o cuidado desnecessário de fechar a porta. Usou a camisa para não deixar digitais. Dirigiu-se à escada, depois ao carro. Sabia que estava tudo bem, mas que não podia demorar. Tinha a consciência de que as pessoas têm medo de ver coisas como essas. Sabia que estaria seguro, se fosse embora logo. Abriu a porta do carro. Acomodou-se e colocou o cinto de segurança, metódico e disciplinado como aprendera na caserna. Ao tentar encaixar a chave no contato, ela escorrega e cai no tapete, a seus pés. “Diabo!”, reclamou. Desdobrou-se para recuperá-las, mas conseguiu. Enfiou a chave no contato e girou. “Clackt”, foi barulho do giro. Ligou a bateria. O barulho mecânico foi seguido de um silvo agudo, suficiente para chamar-lhe a atenção para algo que ele não teve tempo de encontrar.
A explosão foi ouvida a quarteirões de distância.
A cerca de cinqüenta metros dos destroços seria identificável o corpo de Daniel, chefe da segurança de Cássio e ex-chefe de Marcelo, indiciado como principal suspeito do assassinato do filho do português, o português da padaria, que agora estava ali, em pé, ao lado do cadáver, protegido pelas sombras e vislumbrando, com um brilho vitorioso nos olhos, o resultado de sua vingança.