Havia uma maré mutante de braços, cabeças e vozes pouco além de seus pés. As pessoas que se mexiam à sua frente vibravam ou dançavam ao som que era produzido por suas mãos e garganta. Mas ela parecia estar à parte disto tudo.
Florecita estava naquele altar iluminado de adoração popular que chamavam de "palco". Ela se perdia em pensamentos, em sua própria história, vida e inspiração; enquanto cantava e tocava seu baixo eletrônico, quase não notava os outros, sua banda, que tocavam acompanhando-a. A música, o canto, tudo fazia tanto sentido... Eram seu refúgio, seu prazer, seu momento mais precioso! Em que poderia deleitar-se sem preocupações, sem as responsabilidades que lhe eram tão agradáveis, porém demasiado pesadas. O momento em que poderia esquecer seus problemas e problemas dos outros que teimavam em lhe assolar; que ela teimava em querer resolver... Que ela precisava!
Há não muito tempo, havia recebido a sua iluminação dupla, tanto a certeza que confirmava e firmava o que sempre sentiu, quanto a noção do fazer o que fazia agora: a canção, o canto, a música, isso sempre fora o fragmento do divino (só poderia ser, tinha de ser!), a forma mais próxima de Deus, do Uno. E ela, que sempre se sentira diferente das demais pessoas, encontrou sua verdade quando abriu seus olhos por completo e entregou-se de coração, corpo, mente e alma à sua natureza! Pois agora era parte ativa do Canto, e assim sua voz poderia elevar-se e torná-lo mais agudo ou grave, e as notas primas de seus dedos ganhavam o poder de mudar, ou não, o ritmo em que ele seguia.
Seu fôlego se encontra apertado, ela agita a cabeça para se livrar do flash de memórias que se seguem enquanto descansa no invervalo entre duas músicas. "Desculpe pessoal, mas vocês vão ter que segurar esse solo durante mais algum tempinho", pensou enquanto sorvia alguns goles de água gelada. Aproveitando os segundos de descanso, corre seus olhos por sobre o público. A maioria das pessoas que estavam ali nunca havia sequer ouvido falar dela ou de sua banda. "Tanathália... Odeio esse nome. Deve haver alguma forma de convencer o pessoal a trocá-lo..." Mesmo assim as pessoas vibravam ao som, ao menos parte delas. Havia muitas outras ali que pareciam senti-lo, o som, não como protagonista, mas sim como fundo e desculpa para o que faziam. Florecita deita seu olhar sobre um jovem casal, tão jovem quanto ela, que se beijavam abraçados. Então agita a cabeça, forçando-se a desviar a vista, e volta a cantar. Completa.
Ela retorna ao seu refúgio musical, continuando com o espetáculo por mais duas, três, quatro e sabe-se-lá quantas mais canções... Quando o restante da banda para de tocar, ela tem vontade de continuar, ignorando o cansaço e se deixando levar por muito mais tempo. Mas o seu tempo havia acabado, não havia mais, não para aquele lugar, não para aquela hora.
A tristreza se aproxima de seu coração enquanto ela desce a escada de madeira que sai por trás do palco. Algumas pessoas que nunca havia visto correm para cumprimentá-la. "Meu terceiro show e já arranjei... fãs??". Mas não era difícil conquistar o gosto de seu público, pois era uma mulher quase que exageradamente bela. Usando um vestido branco e curto naquela ocasião, Florecita era bem magra, com uma altura um pouco maior que a média feminina, vívidos olhos esmeralda e cabelo loiro muito curto. Entre os estranhos que lhe interceptam, reconhece, para o seu prazer, um rosto conhecido - Kátia, amiga sua de longa data. E uma pessoa amiga era justamente do que ela precisava. Kátia, no entanto, lhe cumprimenta, elogia o espetáculo, apresenta-lhe um "cara" e sai. "Júlio? Muito prazer". Mas apesar de gostar de conversar e conviver com pessoas, de adorar o calor humano, não consegue evitar ficar absorta em pensamentos... "Será que está aqui? Será que está aqui como prometeu?". Júlio parece se decepcionar com rapidez quando percebe que mal está sendo notado, e logo Florecita está só novamente.
Ao se frustrar e não encontrar o que buscava, a vida comum retorna à sua mente, com suas preocupações padrão. Dando-se conta de que voltar pra casa era seu próximo passo, coloca seu baixo nas costas e caminha em direção a algum ponto de táxis. "Por que ele não veio?" Mais uma vez ela vê Kátia, desta vez acompanhada de mais cinco pessoas, e resolve se despedir dela. Para sua sorte, um dos que lá estavam ia para o mesmo bairro que ela. Como pagar meio táxi é melhor que pagar um inteiro, ela aceita a companhia de Mozart, um cara comum ao seu ver, até sua casa. Boa pessoa, consegue animá-la um pouco enquanto conversam.
- "Você deveria sorrir mais, sabia?". Não era a primeira vez que lhe elogiavam o sorriso, mas desta isso foi feito de uma forma tão... Florecita acha graça no comentário. Era daquelas pessoas cujo sorriso não ficava apenas nos lábios, mas em todo o rosto e principalmente nos olhos, um sorriso daqueles tão belos que mais parecem um presente às memórias daqueles que o vêem.
- "E você também poderia tentar aprender a tocar de novo. Não deveria se deixar derrotar após uma única tentativa!". Ela respondeu.
- "Eu não tenho jeito pra isso...".
- "Como pode saber se apenas tentou sozinho? Com alguém pra lhe ensinar você consegue. Olha, eu ensino violão para algumas pessoas carentes. Uma vez por semana, lá no Centro." E com um risinho abafado ela continua: "Sei que você não é exatamente carente, mas se quiser aparecer por lá..."
- "Eu posso? Ótimo! Quero sim. Me dê uma forma de pegar os detalhes depois, que eu quero ver se consigo fazer justiça ao meu nome".
Florecita lhe passa seu telefone. "A propósito, eu desço logo ali. Foi um prazer". Ela se despede e atravessa a rua escura enquanto o táxi parte. Caminha até a portaria de seu prédio. A rua estava escura, muito mal iluminada e, apesar do céu estar limpo, havia algumas poças d água nos buracos do calçamento. Os pêlos de sua nuca se eriçam e ela estaca, tendo um pressentimento de que havia algo errado por perto. Algo... Na rua ao lado! Havia também alguém... Ela sentia que... Precisava de ajuda?
Deixando a prudência de lado a jovem apressa o passo e dobra à esquina. A princípio parece não haver nada, mas ela se deixa guiar por sua intuição e logo avista alguma coisa. Um homem parece estar ameaçando outro. Um grito ecoa, um deles cai de costas no chão e tenta desajeitadamente se levantar e correr, enquanto o outro anda tranqüilamente na sua direção. Há medo e raiva no local, ela pôde sentir... Não sabia o que, mas tinha que fazer alguma coisa. Ela corre. "Pare! Deixe ele em paz!" O homem que estava em pé se vira, mas... Aquilo poderia ser chamado de homem? O que ela vê é um rosto inumano, com presas no lugar dos dentes, olhos frios avermelhados, um rosto onde as sombras pareciam brincar, que exalava o mal. A criatura emite um guincho aterrador. Florecita sente seu coração gelar, suas pernas lhe dizem "corra!" Uma prece sai por seus lábios, "O Senhor é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza de minha vida; a quem temerei?". O temor desaparece.
O homem que estava no chão aproveita a oportunidade pra fugir, enquanto o monstro parece estar aturdido com a falta de medo daquela jovem. Ele anda na direção dela, primeiro há curiosidade em seu olhar, mas essa sensação logo é suplantada por algo que é a pura vontade de matar (e... fome?). "E agora? O que eu faço? Deus! Se lembre, se lembre, se lembre!" Florecita fecha os olhos tentando se lembrar do que haviam lhe ensinado no Coro, ela nunca tinha conseguido aquilo antes, poderia ser sua última tentativa! Tinha que dar o melhor de si... Algo dentro dela lhe diz o que fazer, como uma mensagem de um anjo! Então, canta baixo, pondo suas mãos juntas ao peito: "Senhor Deus, dai-me forças para superar as adversidades, mostra tua misericórdia com um dos teus cordeiros. Protege-me das sombras e tira os pensamentos maléficos da mente deste coitado..." O monstro avança sobre seu corpo magro, lhe acertando os ombros com as unhas. Não há dor. Sendo arremessada uns passos para trás, ela continua: "...mostra a ele a calma, a paz e o conforto, eliminando o mal que afronta o teu poder..." Uma fraca luminescência azul se acende, desce de seus cabelos loiros, cruza sua face e corpo para fixar-se nas mãos e olhos, agora já abertos. Ela abre os braços, com as palmas das mãos voltadas para cima, enquanto sente o poder puro percorrer seu corpo e se esvair. Então os olhos malignos que pousavam sobre si vão, lentamente, adquirindo um aspecto humano, assim como o rosto. Em pouco tempo nada poderia dizer que, o que estava em sua frente, não seria um homem normal. "Esforço, demais...". Ela sente se tonta. A luz se esvai e, quando seus olhos cruzam a rua novamente, está só...
Exceto por uma quarta pessoa, que observava tudo à distância, por entre as sombras da rua. Essa pessoa, enquanto acaricia - agradecidamente - um crucifixo em seu peito, murmura: "Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo: a tua vara e o teu cajado me consolam".
Um breve sorriso de satisfação se forma nos lábios de Florecita: "Não sei o que aconteceu, o homem...! Será que está bem? Preciso comer algo... Amanhã. Espero que minhas dúvidas sejam respondidas... Incrível! Eu consegui! Será...?". O observador, das sombras, olha enquanto ela caminha, com dificuldade, para casa. Ele pensa, satisfeito por vê-la bem: "Como havia prometido, minha menina! Como havia prometido...".