Imbiracucuia, terra majestosa de encantos mil e belezas sem par; impávida e serena em seu trono rochoso, lá no entroncamento do deus-me-livre com o cornimboque-do-diabo. Foi lá, naquela terra boa (ela lá e eu aqui!) que veio a furo a isgranida criatura.
Ainda pirralho, Cuca Fresca já deixava transparecer um certo não-sei-o-que de piradinho, desvairadinho. Tava na cara, só de olhar a gente percebia. Bonito ele era _ uma seda de criança! _ mas, definitivamente, não batia bem. Disritmia, diziam as comadres, desdenhosas, girando o indicador em torno da orelha. E de fato, era o tempo inteiro correndo, gritando, quebrando, estragando, apedrejando, escalando muros, árvores, telhados... Quando sossegava o facho era pra plantar lorota, passar conversa nos amiguinhos e também na marmanjada. Medalha de ouro em matéria de embuste e sonsice!
E à medida em que crescia a coisa piorava. Tá certo que moleque de interior, em geral, não é mesmo flor que se cheire; mas o tal fedelho não se limitava a essas tradicionais traquinagens de quebrar vidraça, esvaziar pneu de carro, explodir cabeça-de-nego na varanda dos vizinhos, desarmar relógios de luz, bater guerra de pedra, envenenar cachorro... essas coisas singelas da idade. Não! Isso era só aperitivo. Sem mais nem porquê, quando menos se esperava, ele surpreendia a todos com mais um arroubo de originalidade, da mais inofensiva à mais temerária. Um dia ainda faço uma antologia com as cinqüenta mais-mais do gurizote, que eu mesmo presenciei.
Mas esta pequena crônica é só pra desopilar; fazer rir, se possível, do comportamento e das picaretagens do Cuca, já marmanjão barbado. Com efeito, à medida em que amadurecia _ fisicamente _, ele só fazia confirmar que aquele desassossego todo, dos tempos de criança, não era mesmo coisa normal.
Plácido Yrapuan Cordeiro - promoter, animador cultural, caça-talentos _ é o que se lê no cartãozinho de visitas do gaiato. Branquelo pernóstico, ouriçado, vivo como o diabo, nunca foi chegado a encarar um batente. Preferiu andar sempre pela sombra, a flanar fagueiro, a engrupir deus e o mundo com seu gracioso sorriso (marca registrada desses patifes jeitosos que botam até defunto pra dançar, tal a lábia!). Um virão. Facadista. Golpista. Mordedor. Um enrolão de marca maior. E cara de pau uma quantidade!
Às vezes pinta um enrosco. Natural. Mas isgueia de cá, isgueia de lá, ele se safa, é de lei. E tudo no maior sangue-frio, sem perder o rebolado nem a lordeza. Que falem o que quiserem, digam o que bem entenderem deste cabra; no final o que manda é se o malandro se garante ou não; o resto é lorota: bem ou mal, ele tem lá o seu carrinho semi-novo, casa própria, filho em colégio grã-fino _ isso sem jamais ter passado pelo vexame de suar a camisa, veja bem. Ao contrário de muito bacana metido a cagar cheiroso, Cuca Fresca nunca teve rabo preso na praça. Quer ver um sujeito seriamente indignado, é convidar o Cuca a assinar uma promissória. Como só vale o que tá escrito, fodam-se eles pra lá.
Afora a lábia infernal, as habilidades do nosso artista vão desde a mecânica à eletrônica; da organização de desfiles e espetáculos às operações de turismo; da promoção de rifas, listinhas humanitárias e bolões esportivos à consultoria em gestão cooperativista. Tudo isso ele aprendeu de bicão, de entrão, lógico. Tivesse seguido carreira de juiz, desembargador, político quadrilheiro... era mais um!
Uma vez montou uma oficina de eletrônica. O difícil mesmo era encontrá-lo no local de trabalho. Quem chegasse lá, provavelmente seria recepcionado por dois ou três tipinhos emaconhados e buliçosos, que estariam ali só por falta do que fazer e que dificilmente saberiam encaminhar o serviço a contento. Cuca Fresca na verdade não consertava quase nada; apenas futucava despreocupadamente os aparelhos e engatilhava-os à base da mais descarada gambiarra; o medonho estoque de bagulhos e cacarias ali de prontidão... Não gastava um tostão nos reparos, só tinta de caneta: um leve mal-contato transformava-se num tratado de Física Quântica no papelzinho do orçamento. Quando tinha dois aparelhos idênticos ou compatíveis pra consertar, porém com diferentes defeitos, retirava o componente pifado de um e o substituía pelo componente perfeito do outro. Um dos aparelhos voltava a funcionar, e Cuca recebia o estipulado no orçamento (mão-de-obra mais valor das peças “encomendadas de São Paulo”). O segundo aparelho, por sua vez, ganhava um defeitinho adicional, e Cuca ia enrolando o cliente, na tranqüilidade, sem a mínima intenção de devolver a tranquêra, pois esta ainda haveria de ser pilhada mais vezes. Quando o freguês enchia muito o saco, ele dizia: “Ó... o negócio é o seguinte: é melhor você comprar uma filmadora nova, porque o preço das peças avulsas vai sair mais caro que uma zeradinha de loja; a não ser que você queira deixá-la aqui comigo... quem sabe não aparecem umas peças usadas em bom estado... aí eu te dou um toque...”
E assim, aos trancos e barrancos, ele ia tocando a Gipsy Queen Eletrônica, que era o nome da arapuca. Até que um dia o cara ficou mais enrolado que barbante no bolso. As pendengas foram se acumulando de tal maneira que, mais cedo ou mais tarde, o caldo tinha que entornar. Foi o que aconteceu. Tudo por causa duma desavença evitável, falta de excelência na área de relações públicas ou, bem dizendo, falta de cuspe e jeito (até então a grande especialidade da casa). Ele saiu do sério com um garoto _ desses meninos muito direitinhos, cheios de coisinha _ que não largava do seu pé por causa dum video-game que já tava fazendo aniversário ali na oficina. Cuca tava meio com a roda seca naquele dia. O garoto mal começou com o quiquiqui e já foi levando um chega-pra-lá. “Porra, pivete, vai encher o saco da véia! Aquele teu cacareco já foi pro mei do lixo, rapá! E se tu não sumir da minha frente rapidinho, te jogo de cabeça pra baixo naquele bueiro ali, tá vendo?.. sente só!” “Ah, é? Ah, é, é?! Pois eu vou contar tudo pro vovô! Vovô é bravo! cê vai ver!” “Traz o vovô aqui que tem um supositório de pirocolina guardadinho pra ele...”
Calhou que era neto dum general quatro-estrelas, desses linha-dura, vibrador _ aquela estampa, tipo Mussolini, ainda inteirão em seus 60 e tantos anos. “... Aí vovô, ele pegô e falô bem assim que ia te socar uma pirocolina na via bostélica... ispandongá de vez com esse teu rabo véio!” O milico quase pariu ali no ato! Um réles civil, um moleirão indisciplinado... se atrever a esculachá-lo naqueles termos! A coisa engrossou pro lado do Cuca. O general compareceu de arma em punho e aprontou um esparramo! _ desses de juntar platéia. Só faltou escovar o rabo do Cuca com palha de aço, e depois arear. Além de exigir a devoluçao do aparelho original, consertado, dentro de 24 horas, afirmou que o estabelecimento começaria a ser visitado por tudo quanto é tipo de fiscal dali por diante. E ai dele se não aparecesse com a tralha ali, novinha!!!
Cuca teve que sumir do mapa, discretamente. No meio da madrugada, encheu uma caminhonete com os seus pertences e os alheios e queimou chão, bateu a bela plumagem pra outras bandas, até a coisa esfriar. Quando voltou, mais de um ano depois, fez-se passar por crente _ um novo ser renascido em Cristo _ exibindo um semblante sisudo, voz impostada, o cenho permanentemente franzido, como que aperreado pelas hemorróidas. Não demorou muito, tornou a perder as maneiras, naturalmente. (Aliás, o que não falta por aí é vacilão ostentando credencial de servo de Jesus. Parece que virou moda.)
E mexe daqui, mexe dali, Cuca Fresca começou a beliscar umas corretagens. Uma chácara, um terreno, uma casinha... de vez em quando dava uma dentro. Mas, via de regra, seu principal empenho estava em convencer o cliente a compartilhar (e bancar) uma farra, uma bebedeira, uma jogatina _ esforço em que raramente malograva. E, nesse entremeio, uma pródiga conversa coruscante de sonhos, ideais, gestos largos, abraços e declarações rasgadas. Quando, por acaso, se lembrava de negócios nessa hora, sacava um contrato de gaveta pro cliente assinar no calor do momento, mesmo pressentindo algum revertério pro dia seguinte... Foi numa dessas noitadas que ele fisgou o coração duma perua endinheirada, com quem amancebou-se semanas depois.
O que lhe atraia em Latifa, balzaquiana de ascendência árabe, era a simpatia, o corpão luxuriante, a liberalidade nas finanças. Ela estava apaixonada, e disposta a pagar por isto. Mas Cuca não era exatamente o patureba núbil com que sonham as guerreiras do Brasil; era um cachorro bandoleiro!
Quando, no decorrer da relação, começaram as cobranças e incriminações, Cuca conseguiu convencer a amásia de que era um poeta; precisava da boemia, do sereno da madrugada, da companhia heróica dos vadios, das almas canhotas, dos anjos caídos do lumpesinato... precisava disso. Sua inspiração tava ali. Quando chegava em casa na segunda-feira de manhã, após 3 ou 4 dias de sumiço, e sacava do bolso alguns guardanapos de papel cobertos de garranchos, Latifa compreendia que a Arte realmente justifica tudo. “Oh, mar!”, bradava ele, ainda zonzo, “por que não apagas / Co’a esponja de tuas vagas / De teu manto este borrão? / Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão!” A mulher, boiando, de vez em quando arfava e fazia um beicinho: “Nossaaaaa!”, “Aaaaaai!” O fulgor do palavrório sobranceiro e incompreensível invadindo-lhe a alma, enchendo-a de orgulho e lascívia. “Quando à noite ao luar saudoso / Minha pálida amante / Ergue teus olhos úmidos de gozo / E o lábio palpitante...” E piriri pereré e pá e tal, era dali pra debaixo do chuveiro, os dois. Cuca deslizava a língua pela nuca da comovida Latifa, e sussurrava: “No cálido nenúfar do teu sexo / Eu verto o magma de minha luxúria...” Que máximo!”, ela gemia. E rebolava como manda o figurino.
Essa boa vida de rufião acabou quando a mulher descobriu que ele andava “agenciando” garotas na cidade vizinha, pra posar pra catálogos de roupa íntima da De Millus. Armação pura! Com estilo... Imagine a gana das potranquinhas, uma simples cópula separando-as da glória tão sonhada!
“Bandido! Usando o meu dinheiro e o meu BMW pra se passar por bacana e ainda papar todas por aí!” Latifa, além disso, remexendo uma gaveta que seu poeta esquecera destrancada, constatou que aquelas rimas todas não passavam de cópias descaradas de Castro Alves, Álvares de Azevedo, Camões e de uma libidinosa tetéia contemporânea. O caldo entornou novamente.
De volta aos braços de seu Chevetinho sambado e obrigado a arrancar dinheiro de outra fonte, ele resolveu atacar de guia turístico. Foi o jeito... Era um tal de arrumar excursão pra tudo quanto é reduto de breguice: Aparecida do Norte, Piúma, Caldas Novas, show do Roberto Carlos, e São Lourenço, Cabangu, Cabo Frio, Guarapari, Porto Seguro... até pro Pantanal. Era sempre um atropelo! _ tudo na base do “vamo vê”. Uma vez, lotou um ônibus pra Cabo Frio num feriadão. Aí foram. Tempo nublado de quinta a sábado. No dia do regresso, num ensolarado domingo, ao invés de esperar bonitinho o pessoal até a hora marcada do embarque, ele tramou um novo passeio (uma sub-excursão) com um novo pessoal dali, da cidade, pra ver um Flamengo x Botafogo no Maracanã. Lá chegando, já à tardinha, despejou os torcedores e, instantes depois, deu meia-volta e tocou pra Cabo Frio, na maior! Deixou os caras a pé, sem pai nem mãe lá naquele cu de lugar cabreiroso, shortinho, camiseta, bandeirinha e buzininha na mão; uns trocados no bolso, já contados pra meia dúzia de cervejas e só...
Mas não pense que os rolos pararam por aí. Ali mesmo, no bairro do Maracanã, parou numa adega duns portugueses e, conversa vai conversa vem, acertou com um dos donos que incluiria a adega como parada em suas turnês. Pediu 15% de comissão em cima das despesas, mas acabou fechando em dezinho, razoável. “No meu ônibus só entra gente selecionada, de nível. Eu cobro caro é só por isso: pra afastar pé-rapado. Em compensação, o ambiente é outro! Gentinha só presta pra bagunçar o coreto; é gente dormindo pelo chão do corredor, aquele cheiro de peido misturado com chulé e bafo de pele de porco, banheiro cagado... É pedir pra passar raiva!” E foi tomando todas, se fartando de queijos e salaminhos... Embarcou dez garrafões de vinho a granel, umas peças de provolone... “Ô Piruada, vai ajeitando direitinho, com calma, lá no bagageiro, que é pra não ter o risco de quebrar nada. Vou te pagar na mufunfa, tá seu Manoel!.. no cacau! Cheque, hoje em dia, é o mesmo que nada... Por acaso o senhor tem aí um Merlot de qualidade?” A inspiração só batendo, o distinto cavalheiro dissertando professoralmente ao adegueiro sobre a maneira correta de se preparar um Dry Martini (de preferência, curvando-se respeitosamente em direção à França)... a influência grega na culinária do Mediterrâneo... a fábula catalã que narra o aparecimento da azeitona neste planeta... Que nem gente grande! “Piruada, meu amigo, dá um pulo lá no ônibus, pega um cartãozinho meu, aqui pro senhor Manoel, faz favor...” Três minutos depois, o motorista retorna: “Num tô achando nada de cartãozim por lá. Já olhei tudo.” “Ora essa, tá junto com o mapa, rapaiz! Tem uma penca...” “Tá não. Já olhei.” “Êta, ferro. Com licença, um instantinho, seu Manoel. Pode ir servindo aí o meu amigo no que ele quiser, tá bom? Eu volto já...” O ônibus tava a 4 metros da entrada da adega. Entrou, soltou o freio de mão pra aproveitar a descaída da rua, na banguela, e acelerou... deixando o provecto lusitano com cara de seu-vigário-cadê-minha-farofa. O motorista também ficou pra trás, aturando os ‘ataques’ do português. Igualmente revoltado porque não esperava por aquilo, senhor Piruada por fim conseguiu convencer o velho de que também era vítima naquela história. Minutos depois, já a caminho da rodoviária, recebeu uma ligação do Cuca, combinando o local de resgate. “Calma lá, irmaõzinho, cê tá nervoso à toa! Fica frio. Cê inda tem muito que aprender comigo...”
O ônibus chegou em Cabo Frio atrasadíssimo. O pessoal da excursão já arrancando os cabelos de desespero. Mas o estrupício chegou sorrindo tanto, tão feliz e contente e com tanto vinho e lanchinho pra distribuir, que o negócio rapidinho virou festa.
Atualmente _ mas não por muito tempo, com certeza _ ele milita no ramo automobilístico. Compra e vende carros usados! imagine só... E, de quebra, pra defender o lanche e a gasol, empurra uns cordões de bijuteria barata, fazendo passar por ouro _ 18 quilate, 18 quimia.
Enquanto o resto da humanidade se arrasta debaixo do próprio peso, o Cuca vai levando só na maciota. Deu pra sentir né? Fazer o que? Em malandro pedra-noventa, qualquer defeito assenta!