Agora que já estou completamente restabelecido do acidente cardiovascular de que fui vítima, agora que já se passou tanto tempo, tento reajustar todas as peças do puzzle ... Senti-me mal, sei que foi chamada uma ambulância, ouvi a sirena a apitar e, a partir dali, curiosamente, a impressão que tenho é que o meu corpo embora certamente seguindo a caminho de um hospital, deixava tudo o resto para trás, num longo túnel...
A minha vida aparecia-me em mosaicos, como aqueles que apresentam os programas dos vários canais da «TV por Cabo». Por ordem cronológica, desde o meu nascimento até ao momento do acidente e, curiosamente para além dele... Eu estava a ser espectador não só do meu passado mas, surpreendentemente, também do meu futuro. O tema de todos os acontecimentos era a Família... Por eles pude ver as diferenças, as mutações, ao longo dos tempos...
A minha Família nos primeiros dezoito meses de vida : um casal desavindo, cenas violentas, vinho. Separação dos pais, primeira desilusão talvez ainda não sofrida, porque era bebé... No entanto, certamente que senti a falta de amor e de carinho que só os pais podem dar. A Família dessa vez ainda serviu... Uns tios, que não podiam ter filhos, passaram a cuidar de mim ... Este foi o primeiro mosaico que me apareceu, mas muitos se lhe seguiram. Saltarei alguns, que me mostraram todavia, com inacreditável pormenor, certos períodos da minha vida, coisas de que nem tinha conhecimento até ali!
Seguiu-se um longo período nesta nova Família. Alojamento, comida, roupa e educação nunca me faltaram. Mas apesar de poder agradecer «ao destino» tudo o que me foi acontecendo ao longo deste período, várias fases sombrias, muito sombrias, me voltaram à memória. Carência de amor e carinho - às vezes mais importantes do que as questões económicas... Há pobres felizes e ricos infelizes. Os afectos têm um grande papel na felicidade. Ficou-me a lembrança daquelas visitas familiares semanais ... Dos chás com bolachinhas e biscoitos ... do «não toques aqui, não toques ali» ... das pessoas idosas... As mulheres (algumas) não cuidavam dos «buços» e tinham bigode...
Senti a necessidade de ir criando «Famílias», em todos os lados por onde ia passando... Na Escola, no Liceu, no Desporto, nos Clubes, entre os amigos... Parece-me que passei a transferir todos os meus afectos e interesses para aqueles novos grupos em que me integrava.
Lidei com poucos dos primos que tinha, portanto pouco contacto verdadeiramente familiar com pessoas da minha idade. As Escolas e Liceus também ainda não eram mistos, portanto também isso tinha influência na troca de afectos e nos convívios.
Os mosaicos continuavam a surgir, mostrando-me ao pormenor várias sequências do meu passado. Ausência de brinquedos. Só me apareceram uma pistola e um carrinho de mão de madeira, uma harmónica de boca ... As velhas «trapeiras» ( bolas feitas com pano e peúgas ), escondidas em casa e levadas escondidas para a rua...
O abandono dos estudos, para mais tarde os recomeçar à noite. Tudo o que era gasto comigo, me era «cobrado». «Quem não tem filhos, tem cadilhos ! » - quantas vezes ouvi dizer isto... A manteiga escondida... O açúcar misturado com pimenta, para evitar que eu o fosse comer ... Como é possível ver tudo isto com tanto pormenor. É verdadeiramente o filme da minha vida, que eu vejo desfilar ...
O primeiro emprego, numa agência de viagens; o segundo, no escritório de uma empresa de recuperação de óleos usados; o terceiro, já aquele que me havia de acompanhar pela vida fora... Comecei a tentar tornar-me «independente»... Dava uma mesada em casa e em troca, com o resto do dinheiro, comecei a comprar a minha roupa e a ter as minhas despesas. A primeira vez que fui ao cinema : «O Facho e a Flecha», salvo erro o primeiro filme exibido no Monumental, cinema entretanto desaparecido. Estudos à noite, práticas desportivas... Passei pela infância e adolescência a correr e fui criando «Famílias» aqui e acolá ! Não há dúvida que a família, que eu sentia não ter, a fui procurando noutros lados. Da família propriamente dita, ficou-me apenas a imagem de meu tio, que me comprava revistas brasileiras de banda desenhada, e de minha avó, que visitávamos de vez em quando, e que me dava muito da ternura que me faltava. Sempre risonha, sempre afável, viria a morrer com 93 anos, sempre lúcida e compreendendo a juventude dos seus netos e aceitando as suas travessuras ...
Vários mosaicos ainda... A desfilarem numa louca caminhada, através de um túnel que ia ficando para trás. Retive aqueles que descreviam em imagens o meu serviço militar... Ainda mais uma família que encontrei. Por meses, safei-me de ir combater nas colónias, mas mesmo assim fui chamado por várias vezes acabando por lá estar três anos. Boas recordações, no entanto... Estava na flor da vida, na pujança dos meus vinte anos !
Depois, veio o casamento e eu próprio a dar início a uma Família. Mais uma ramificação... Lua de mel na Grécia, muitas viagens nas férias... Único óbice para uma realização completa, a dificuldade em me afirmar no emprego, pois viam-me sempre como o «garoto» que começara ali a trabalhar com menos de 16 anos . Tive de lutar mais do que os outros... Tive de me afirmar.
Alguns anos depois, a grande alegria da minha vida – o nascimento de minha filha, um ser que vinha de mim e de minha mulher e que, porventura, iria desenvolver o nosso núcleo familiar. Estava praticamente afastado do resto dos familiares. Pouco os via !
Com o andar dos tempos, os problemas no emprego foram-se esfumando. A pulso, fui subindo até chegar ao mais alto escalão. Não tive mais filhos.
Entretanto, deu-se o 25 de Abril de 1974... Veio o Sindicalismo, a Política, a vida em Colectividade, várias «famílias» por onde fui passando...
Os mosaicos continuam a mostrar-me o meu passado, deslizando cada vez mais rápidos, quase em cavalgada, talvez por estarem mais perto.
A minha filha casou-se e a separação custou-me imenso. A família «a três» passava a uma simples dupla. O seu quarto lá ficou, intacto durante anos, como que a recusar aquela ausência.
Em breve vi um mosaico que me chamou mais a atenção. Parecia maior. Brilhava. Chamava a atenção. A desfilada pelo túnel também abrandou e vi, enternecido, o meu neto que acabara de nascer, ao colo de minha filha. Tinha valido a pena existir, que mais não fosse para viver aquele momento maravilhoso. Depois, veio uma neta encantadora e a família aumentava... A vida moderna, porém, continua a separar-nos, cada um para seu lado, não os vendo quantas vezes queria. Aposentei-me entretanto. Uma nova fase da vida começava. Ocupações não me faltavam. Sempre inventei trabalho, quando não o tinha. Mas senti a falta de uma família maior e de mais amigos. Isolara-me, agarrado ao trabalho e aos entes mais próximos, e neglicenciando tudo o resto. Agora colhia aquilo que semeara ...
Seguiram-se uns mosaicos avermelhados, que eu supus corresponderem ao período do meu acidente e da respectiva hospitalização.
Depois, comecei a ver-me, já muito velho, num sítio que me pareceu um Lar... Curiosamente, estava com bom aspecto, barba completamente branca. Jogava às cartas com outros três anciãos... Com ar sereno e sorridente, tranquilo.
Certamente, não quisera dar trabalho a ninguém (cada um tem a sua vida , as suas ocupações, preocupações...) e, fugindo à solidão, fui mais uma vez em busca de uma nova Família, provavelmente a última !