Aproveitando a ocasião do 50º. aniversário de passamento de um varão muito batuta, que sobremaneira contribuiu para o engrandecimento da nossa querida Brotas do Bem-Bem, gostaria de homenageá-lo aqui não na qualidade do mito que ele representa para todos nós, mas na qualidade de ser humano, de criatura falível cujos tropeços nos tocam o coração e nos fazem cúmplices. Para tanto proponho-me, sem qualquer ressaibo de malícia, a reavivar um mal explicado episódio protagonizado por este mesmo personagem. Trata-se de um fato extra-oficial – um tanto encabulante, é verdade – mas absolutamente verídico, com o qual pretendo não só enternecer, mas também apresentar uma conclusão utilitária, edificante. Antes, porém, para que não me tachem de irresponsável, de mal-agradecido etc, gostaria de exaltar, no bom estilo da demagogia mineira, a memória deste grande luminar da história de nossa municipalidade: o idolatrado inolvidável ínclito ilibado inatacável impoluto e super-bacana capitão José Policarpo Serrinha de Alvarenga.
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Homem de têmpera varonil, acavaleirado até a medula, comedido no falar e no trajar, jamais se flagrou em sua pessoa um gesto que se pudesse classificar como relaxado, ou se ouviu de sua boca uma expressão censurável, seja do ponto de vista estilístico, seja do ponto de vista ético. Honra e patriotismo norteavam sua conduta.
Neto pelo lado materno do Barão de Taquaraes, era acima de tudo um cidadão convicto de seu destino apostólico – possuidor que era de inestimáveis cabedais e de mui acrisoladas virtudes. Foi em 1886 que o capitão Alvarenga, abolicionista fervoroso, transladou-se para nossa comunidade, para aqui trabalhar como guarda-livros. Dir-se-ia dele um cidadão de fino-trato, não fosse o arrebitado entusiasmo com que costumava redargüir às opiniões divergentes das suas. De qualquer modo, desde o início contou com a estima de todos, dado o comportamento insuspeito, o esmero, o asseio, o porte jeitoso – algo, dir-se-ia, mescla de estadista, jurisconsulto e chefe militar. Com o passar do tempo, dando mostras reiteradas, o capitão, de tino e guaribado entendimento das coisas, suas opiniões foram ganhando tons de jurisprudência quase divina; bastava mover os lábios para declinar seu ponto de vista, tossir, fungar o nariz, e todos se calavam com veneração e acatamento.
Quanto respeito e admiração causava o capitão quando varava a avenida principal, dirigindo-se às caçadas; imponente sobre seu brioso cavalo, guarnecido de seus equipamentos e acompanhado por uma matilha de valentes cachorros! Bem se podia ver: ali estava o homem mais apropriado para sacudir a fauna silvestre de sua estéril indolência!
Dos dois consórcios que aqui contraiu resultaram nove filhos; semente de uma prole operosa que ainda hoje rende grandes dividendos a nossa terra.
Já firmada sua reputação, tornou-se escrivão de paz, e mais tarde, quando da emancipação de Brotas, até então distrito de Remanso das Almas, lá estava ele à frente da câmara municipal, sacrificando-se sem reservas para dotar o município de uma organização político-administrativa à altura de sua gente e de suas raízes. Posteriormente, prefeito em sucessivos pleitos, haveu-se com alto descortino e elevado civismo, prestando assinalados serviços à comunidade.
Foi ele quem levou a efeito o emplacamento das ruas e a numeração das casas. Aliás, a bela rua onde morava, numa bela casa, ao largo da bela praça onde se ergue o mais belo templo da cidade, hoje leva o seu nome: Rua José Policarpo Serrinha de Alvarenga - Capitão da Segunda Companhia do 64o. Batalhão da Reserva da Guarda Nacional da Comarca de Ribeirão do Livramento.
Ainda hoje a memória desse prestigioso chefe político é cultuada e reverenciada por pretos e brancos, jovens e velhos, ricos e fodidos.
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Foi numa noite atroz, março de 1917, quando rolou a encrenca. Bramidos ferozes ecoavam por entre as verdes colinas brotenses. Pelas bucólicas ruas de pedra, um vulto avançava, maljeitosamente, por entre as luzes e penumbras da cidade, gritando e rugindo como uma besta encarniçada. O tom era de desacato, afronta, rompimento estético e filosófico com o restante da humanidade; atitude que 60 anos mais tarde seria chamada de ‘punk’.
Inexplicavelmente, o fato é que o capitão Alvarenga achava-se ligeiramente inebriado; ou melhor, um tanto envilecido por algum aperitivo por demais capitoso... ou, pra ser bem claro, escandalosamente bêbado!
Era tarde da noite. Uma rajada de vento abriu a porta da casa de dona Umbelina Cambraia de Queiroz e Alvarenga... Uma silhueta intumescida postava-se ali fora, e ofegava... Era o capitão Quasímodo! Aquelas formas senhoris, outrora tão cheias de garbo e gentileza, mostravam-se transfiguradas num horrendo ogro descabelado. Uma porrada! – a antítese absoluta das aspirações femininas de aristocracia. Aquele ser vagamente familiar, evidentemente não estava apto a fazer ademanes com xicarazinhas de porcelana inglesa. Uma careta demente acompanhada de um rosnado – assim o balandrau saudou sua senhora. Antes de desmaiar, dona Umbelina crispou suas mãos junto ao rosto, sufocada por um berro que ficou entalado na garganta. Olinda, a velha criada angolana (como é de se supor, possuidora de um ouvido treinadíssimo), enfurnou-se debaixo da cama, onde pôs-se a peidar com seu cálido bundão, entre o divertimento e o temor.
Um semblante umbroso emergia lentamente das sombras da noite; as narinas frementes, o cenho convulso, as mandíbulas rangentes... Capitão adentrou gravemente, com uns movimentos cibernéticos de múmia ressuscitada, tendo no rosto aquela expressão característica de overdose de pinga (uma espécie de circunspecção torpe e alucinada). Untou os genitais com nata de leite e dirigiu-se ao quintal.
Ao deparar-se com seu dono, a felpuda Tetéia ressabiou-se a princípio; mesmo assim, gulozinha que era, lambeu a nata com sofreguidão. Capitão Quasímodo debruçou-se sobre ela... encapetado de desejo. Ele a desejava de todo o coração. Mas Tetéia mostrava-se perplexa e pouco cooperativa; tão fria como dona Umbelina e já aporrinhada com o assédio do sedutor... Uma estocada meio sem jeito, de través na vulva seca foi a gota d’água! O autoritário capitão, que não admitia autodeterminação numa fêmea, exasperou-se com a mordidela que levou no braço... “Insolente!!”, ele urrava. “Cachorra maldita!! Insolente!!”
Estava desatinado de ódio, aquele macho alcolizado. Cambaleou até o oratório, onde escondia uma arma carregada e saiu à captura da cadela, que fugira pela porta entreaberta... Desencadeou-se a perseguição. O benemérito senhor cambaleando de calças arriadas pela rua, inflamado por um simples quadrúpede! – Eis em que se transformam os ideais mais ilustres por efeito da cachaça.
“Cá Tetéia, cá Tetéia!” O bebão tocaiando, armando o bote. Ela acabrunhada, fugindo timidamente, só o tanto de manter uma distância segura... Quando nota a precipitação assassina de seu dono, dispara a correr, obrigando-o a mudar de tática. Ele se finge de bobo; vira-se de costas, assobia, cantarola cinicamente, depois prossegue isgueiano e divortiano no rastro do animal. Mesmo ensopado de goró, ele sente que ainda leva jeito pra sapecar um tiro certeiro onde bem entender, alvo fixo ou móvel (e Brotas, cidade pioneira, já dispunha, havia pouco, do serviço de luz elétrica). “Tetéiaaaaaa! Tetéia linda do papaieeeê!” Impasse... Um instante de suspense... E o capetão arremete subitamente em direção ao animal, sacolejando-se, travado pela calça e a ceroula, que já estão pela altura do tornozelo. Dá uma freiada tropicante, em câmera lenta, franze a testa, estica um bico e faz pontaria, se equilibrando pra não cair da gangorra. Um tiro arranca parcialmente uma das patas da cachorra, que continua a correr com dificuldade, ganindo de medo e agonia. O peladão está furioso! A 200 metros de casa, atinge o animal com mais quatro tiros... A cadela fica estirada junto a um poste, esvaindo-se em sangue... e o coroné caminha pra casa, como um bruto gagá, sob o olhar atônito da vizinhança.
Um crime passional envolvendo um homem de muito respeito e uma cadelinha sedutora. Foi meu bisavô, o comendador Bartolomeu Menina Ponte-Preta quem, nessa mesma noite, impediu que o capitão Alvarenga se enforcasse com suas próprias mãos e encerrasse assim uma carreira política que lhe traria ainda muitas consagrações.
Não é meu intuito, aqui, espicaçar a bela raça dos Serrinha de Alvarenga. Pelo contrário, trata-se de uma homenagem sincera, com a qual tenciono ainda provar uma tese que julgo muito útil e interessante: a insignificância do vexame na reputação de um homem. Afinal, se o meu intuito fosse apenas expor levianamente as cagadas alheias, eu estaria narrando agora infrações bem mais detestáveis, praticadas aqui mesmo em nosso município. (Por sinal, dois protagonistas de um grave escândalo estão saindo pra prefeito e vice nas próximas eleições, com excelentes chances de êxito). Mas não é este o caso.
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Há alguns meses, foram vítimas de outro incidente vexatório bastante infeliz, Eugênio Corrêa Serrinha de Alvarenga e Hidalgo de Alvarenga Saturnino, primos entre si e bisnetos do legendário capitão.
Hidalgo vinha disparado em seu carro, sequioso pela única coisa que poderia salvá-lo naquele momento: uma latrina! Uma tormenta intestinal vinha rompendo caminho, perigosamente. Eugênio, nesse mesmo momento, cerca de 3 horas da tarde, estava se embriagando num antro dos mais infames, desprovido de dependências sanitárias. (Apesar de ser jovem de boa cepa e bem remediado de vida, todo o seu projeto de vida resumia-se alegremente numa boa garrafa de pinga.) Acontece que a única branquinha disponível naquela espelunca era de péssima qualidade, e depois duma voluntariosa golada no veneno, o frangote sentiu como se tivesse engolido uma concha de sopa fervente, com cabo e tudo. Tapa a boca com a mão e sai correndo pra vomitar no banheiro de outro bar. Ao atravessar a avenida, na cegueira do desespero, é colhido por um veículo em alta velocidade e projetado às alturas, vomitando desbragada e espetacularmente enquanto rodopia no ar, como que propelido pela própria rajada! O carro trepa na calçada, perdendo uma das rodas; deriva de lado e capota depois de um quebra-molas. A multidão acorre. Há tumulto, mas o motorista nada sofreu. Quem sai do carro é Hidalgo, amparado por algumas pessoas caridosas... Ele se deixa levar, lânguido e atordoado... o calção borbulhando, empapado de fezes. O odor exalado – assim me contaram – fugia do normal!
Eugênio, o acrobata, jaz na formidável poça que ele mesmo produziu; os olhos perdidos no vazio do céu... a boca ainda vazando um derradeiro e ralo mingau.
Naquela ocasião, pude visitá-los, e transmiti a ambos a mesma mensagem que deixo aqui.
O povo é maravilhoso! – é esta a assertiva a que visa estas duas historietas constrangedoras. O povo esquece tudo! É bom que se saiba disto – principalmente quando se vive numa cidade pequena. O povo (que é constituído por 99,9 % das pessoas) é louco pelos detalhes mais degradantes da intimidade alheia, pelos lapsos, defeitos, escândalos e desgraças. Vinga seus complexos pintando a caveira alheia, ao mesmo tempo em que espanta o tédio... mas depois se esquece, angelicamente, e se deixa fazer de gato e sapato pelas mesmas pessoas que, ontem, foram alvo de seus festivais de maledicência. A galinhagem é mais forte que tudo, meu chapa! Não é à toa que os ídolos do povo são, infalivelmente, os impostores mais risíveis e boçais.
Os hereges podem suspirar tranqüilos. Esses casos de gente que é banida de sua cidade debaixo de pedradas acontecem só naquelas paradisíacas plagas islamitas do Oriente-Médio.
( Não percam, mês que vem, o 11º. Festival de Vodu, promovido pelo Clube das Bichas Nazistas Revolucionárias, em parceria com o Rotary Club, lá em Timburiba do Babacoara! )