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Contos-->SANGUE - 3ª parte -- 14/06/2002 - 14:19 (Alexandre Grolla Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Confesso que na hora não dei muita atenção ao ocorrido, continuei com minha vida normalmente, até a morte de meu pai.
Meu pai tinha 75 anos, foi numa segunda-feira de madrugada que eu recebi seu telefonema. Estava com muita dificuldade para falar, em meio a gemidos roucos me disse para pegar o diário na escrivaninha do quarto e o telefone ficou mudo. Assim ele morreu, ataque cardíaco fulminante. Desliguei o telefone e corri para casa onde ele morava e lá estava seu corpo sem vida, ainda com o telefone na mão.
Após o enterro, fui até seu quarto e peguei o diário, sentei em sua cadeira de leitura e comecei a folheá-lo. O diário começa no dia 13 de dezembro de 1974, dia de meu nascimento e da morte de minha mãe. Meu pai sustentou durante minha vida inteira que minha mão havia morrido de complicações no parto, eu nunca tive razões para duvidar disso.
Vou reproduzir alguns trechos do diário assim como foi escrito por meu pai:

“Conheci Madalena grávida. Ela nunca quis falar sobre o pai da criança, dizia que era um imbecil qualquer que não merecia minha atenção. Me apaixonei logo de cara, que mulher maravilhosa, firme, decidida e extremamente linda. Não que eu tivesse problemas em arrumar mulheres, porém esta era especial, não sei explicar, mas o fato dela estar grávida não me incomodou nem um pouco (...)
(...) Como explicar o que eu senti aquela noite... Quando a polícia me ligou avisando de sua morte quase desmaiei... a maneira como ela morreu, meu Deus, por que?
O policial me falou que os médicos estão fazendo o possível para salvar “meu filho” que, por incrível que pareça, conseguira sobreviver (...)
(...) ...ao ler os laudos policiais fiquei pasmo. Diziam que a viatura chegou no local em que Madalena havia sido supostamente atacada, e viram ela segurando a barriga, sangrando muito. Suas mão tentavam conter o sangue que saia de um corte horizontal na altura do umbigo de uns 20 centímetros, ao seu lado, a faca suja de sangue. O depoimento dos policiais, dizia que suas últimas palavras foram: “O demônio, o demônio esteve aqui e tentou levar a criança, não deixem ele pegar a criança... matem-na se for preciso..”. A perícia concluiu que ela própria havia se cortado. (...)
(...) Por que, por Deus, por que alguém como Madalena, que gostava tanto da vida, se suicidaria levando seu filho junto. (...) Agora não importa, cuidarei da criança, devo isso a Madalena. A partir de agora ele será meu filho, e nada saberá sobre o que aconteceu a sua mãe (...)”

Fechei o diário sem saber como reagir. Que história horrível, não culpo meu pai por não ter me contado.
Então lembrei-me do bilhete: “SEU PAI O AGUARDA”, meu pai biológico estava tentando me encontrar. Minha vida parecia estar se tornando um dos livros que tanto gosto de ler. Que mistério envolve a morte de minha mãe, o que deixou-a tão assustada a ponto de se matar? De que “demônio” ela tentava me proteger a ponto de preferir me matar? Quem é meu pai, e por que minha mãe não queria falar sobre ele?
Não demorou para me decidir, fiz os preparativos de minha viagem e em dois dias já estava de partida para o Maranhão. Resolvi ir de moto para ter a tão almejada “liberdade”. O mais difícil foi encontrar a cidade de Lacudra, não consta em nenhum mapa e poucos tinham ouvido falar dela. Foi na biblioteca de São Luis onde encontrei um velho mapa que constava a cidade, um pontinho no meio do nada.

Agora estou aqui, a um passo do meu destino. Hoje a noite descobrirei todo mistério que envolve minha origem. Neste momento aperto um pouco mais forte o dedo na faca e um pequeno filete de sangue começa a se formar. Chupo o dedo e o envolvo com um lenço. Mal deito a cabeça no travesseiro e já pego no sono, um sono transtornado e cheio de pesadelos, para mim, um sono normal.
Desde pequeno tenho o mesmo sonho. Estou nu, preso em uma espécie de bolha, tendo me libertar mas a bolha estica ao contato. Fora da bolha está tudo escuro. Subitamente surge um par de olhos da escuridão, olhos vermelhos com pupilas amarelas como as de um gato. Os olhos se aproximam e presas gigantes começam a se abrir, prontas para me abocanhar. Quando as presas se fecham a bolha estoura e eu caio em um líquido, afundando rapidamente. O líquido é viscoso, consistente e vermelho, seu cheiro e seu gosto me dizem que eu estou mergulhado em sangue. O ar se acaba e eu começo a me afogar... antes de perder totalmente a consciência vejo luzes, luzes girando de todas as cores, brancas, azuis, vermelhas. Nesta parte eu acordo. Suado, assustado, sempre com a sensação de que não dormi nada. Hoje não foi diferente.
Acordo do pesadelo sentindo minha mão direita molhada, o lenço que cobria o pequeno corte está ensopado de sangue. Mal sinal, significa que o efeito da última transfusão está acabando, talvez o cansaço da viagem tenha acelerado o processo. Tiro o lenço e por sorte o corte já está cicatrizado. Não posso me preocupar com isso agora, são oito horas, chegou o momento de resolver esse mistério.
Alguém bate na porta, três batidas fortes. Abro a porta e não há ninguém no corredor. Parece que minha estranha anfitriã não quer que eu perca a hora do culto. Coloco minha jaqueta de couro e, pela primeira vez na vida, a faca em uma bainha presa ao tórax, de modo que fique escondida e possa ser sacada rapidamente se necessário.
Saio do quarto e, como previa, não vejo nem sinal da mulher gorda.
Chego no galpão. O culto já começou, a mesma coisa de sempre, gritos, canções, exorcismos, promessas e dízimos. Não sei como, mas essas pessoas enchem as mãos dos pastores de dinheiro, notas de 10 e de 50. Em um lugar tão pobre, como as pessoas conseguem dinheiro para sustentar estes circos? Se esse “pastor” for meu pai entendo porque minha mãe fugiu dele e nunca quis falar sobre isso.
Os vinte minutos finais do culto duram uma eternidade, fico imaginando que deveria ter trazido uma arma de grosso calibre e acabado de uma vez por todas com essa palhaçada. Quando o culto acaba as pessoas saem do galpão e o pastor e seus asseclas entram em uma porta lateral do palco. Vou na direção da porta. Pego na maçaneta fria pensando se atrás daquela porta estarão as respostas as minhas perguntas ou foi tudo invenção da minha imaginação fértil. Giro a maçaneta e abro a porta...



...continua.
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