Os estudos de Stanislaw Grof e Thimoty Leary sobre o LSD, a meditação transcendental e outros baratos, nos anos 60, trouxeram à luz do saber humano a incômoda constatação de que cada pessoa tem dentro de si uma multidão inteira de espíritos a reclamar o mesmo corpo. Há muitos ‘eus’ e muitas dimensões além das que podemos mensurar ou ao menos entrever; sequer imaginar. Em ocasiões especiais, outras faces afloram e outros mundos vazam por entre as frestas provisórias da ‘realidade’. Mas, no final das contas, a maldição da normalidade sempre retoma o comando, graças a deus. Se estamos dizendo estas coisas, é para que possamos condescender de boa vontade com os vergonhosos arrufos do doutor Ytabayana, nosso amigo lá de Imbiracucuia, terra onde a galinha cisca pra frente.
Declacionor Roberto Ytabayana sempre levou uma vida bonançosa, bem à sua maneira classicista de encarar o ‘Cosmos’. O elevado saber humanístico; o exímio domínio do vernáculo, tendendo para o castiço arcaico; uma incrível erudição na genealogia rural e palaciana mineira (para fins de pura anedota e maledicência) – tudo isto, aliado a uns modos melífluos e a uma voz de aveludado cinismo, vieram a lhe conferir o tratamento de professor e doutor, embora não fosse nem uma coisa nem outra; apenas bacharel em Direito pela Faculdade Vieira Júnior, uma das pioneiras no esquema pagou-passou.
Funcionário público, 46 anos, desempenhava natural e melodiosamente sua função na administração municipal: ocupar espaço, fazer número, lamber a bunda da pessoa certa na hora certa, sabendo conciliar cientificamente elegância e baixeza, descaso e afabilidade. Celibatário convicto, heraldista amador e empulhador profissional, julgava-se acima de tudo filósofo, depois, poeta, e, finalmente, teosofista do Sétimo Grau (quase mago).
Talvez você esteja imaginando uma figura de aspecto cômico, cheia de vento; um carequinha balofo e bochechudo com aquele olhar luado de quem ainda não conseguiu perder o cabaço... Você errou! – Declacionor Roberto tem uma bela estampa, uma tremenda pinta de doutor, catedrático, diplomata, viado, sei lá. Teria o perfil exato, o estofo e o gabarito que se espera de um senador da república... Se o visse na venerável penumbra de seu escritório, você o julgaria um sábio: um cálice de vinho ao lado... um Debussy tocando baixinho... uma cigarrilha preciosa emanando místicos vapores azulados... a mão esquerda pousada sobre a margem de um antigo e raro volume de fina encadernação... um costumeiro fiozinho duplo de catarro pendendo entre o polegar e o indicador... Talvez decifrando enigmas de outras eras... ou produzindo um tratado sobre os vinhos e antipasti do Piemonte... talvez compondo uma epopéia na forma de alexandrinos...
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[Tom exaltado:] – Não passas mesmo de um miserável! Tu me entedias, sua lesma!! Onde está a imortalidade que me prometeste? Não, não! Não me venhas com esta! A tua luz se apagou de vez... você perdeu a carona, mané! Teus últimos ímpetos de sublimidade não foram mais que estertores de uma mosca envenenada! Agora está tudo enterrado debaixo desta massa tímida e pastosa que és tu! Olha-te bem... Vamo lá viado, tá com medo? tão se garante?! tremeu nas base?! Olha aqui, bem dentro da minha cara!.. Inseto!.. Cadê o teu brilho, a tua luz, o teu élan, os méritos da tua simpatia e exuberância?!.. Você já não atrai mais ninguém!.. Devíamos estar drogados!.. Sim! Porque bobeira também é droga! – Parece frase de adesivo, mas é a pura verdade: “A bobeira é uma droga!” Você devia pregar um plastiquinho com este slogan na sua testa... pense bem: no centro, umas letras estilizadas em grená imperial, e em cima, o rosto de um bundão sorrindo de olhos arregalados... O quê?! Repita isto se for homem! É só o que eu quero... repita!.. Hã!! Pois fique aí no seu canto e trate de prestar atenção enquanto eu falo! E não me interrompa de novo, tá ouvindo!.. e pare de dar de ombros como um maricas!.. Chulo, pangaré!.. ... O teu desalinho físico e moral me desespera, canalha! você me deixa em pânico!.. pâ-ni-co!!.. Sempre posaste de bacana... sempre cheio de guéri-guéri... de merda pra cagar!.. Sempre fizeste valer tuas hipotéticas prerrogativas de consul romanus em meio a essa gentinha crédula que te adula... E agora, de repente, qualquer otário parece fazer questão de passar a mão na tua bunda! É ou não é, porra?! A decadência taí!.. e não me venha com esta carinha de puta ofendida!
[ Declacionor Roberto está resfriado, febril, totalmente detonado (gripe, ressaca, lua-cheia). É domingo. Nosso homem acordou com o corpo moído, a cabeca oca, enfim, um revertério daqueles... De frente pro espelho do banheiro ele chora e pragueja. Cospe na própria imagem, lançando contra si as pilhérias mais pesadas. Os insultos às vezes chegam a ser tão constrangedores que ele é obrigado a cobrir o rosto com as mãos, enquanto dá uma conferida no espelho, por entre os dedos e de esguelha, soltando um sorrizinho sem graça. Depois torna à carga... ]
– Cão, cão, cão! Florzinha da Lua! Serafim da Insipidez! Demóstenes da Sandice! Noiva de todos os vampiros! Arlequim da ilusão! Encantador de lombrigas! Lorpa! Xacoco! Obnóxio! Pau d’água!.. Teus atos mais fáceis e equilibrados são tão cômicos como o esforçado e retumbante fiasco de um comediante em sua noite de estréia! Talvez teu verdadeira pátria fosse, de fato, a ribalta... fazendo o público estourar de rir com declamações empoladas de viadices gregas! Oh, que melancólica figurinha és tu! oh, oh... [E chora sonoramente a sua tragédia, e bate nos peitos, lançando comoventes caretas em direção aos céus. Com o fôlego entrecortado, expressão pungente, ele grita, trêmulo e afogado em prantos: “Deus! Sit propitius huic potatori!”. Seu rosto – ora rubro e congestionado, ora lívido como um cadáver – está banhado de um incômodo suor frio; o focinho reluzente devido à baba que transborda quando a emoção é muito forte.]
– Estás ficando velho e sem graça!.. És um chué, um bundão industrioso – se é que se pode chamar de indústria esse teu abestalhamento por poesia... esses devaneiozinhos agüados a que você chama ‘labor poético’. Que luuuxo, heim boneca! Mariposa do amanhecerrr!.. Mas eu vou falar a verdade agora! Que tal começarmos descendo do pedestal, voltarmos ao chão, às raízes. Sim! talvez doa... mas é tudo pro seu bem, meu anjinho de luz. Pois ouça!.. Saiba que a baixeza mais abjeta e a tenacidade ferrenha de viver sem saber por quê (característica notória das baratas) foram sempre a tônica na mesquinha saga dos teus ancestrais, que há séculos, talvez milênios, pelejam no meio da ralé... adulando, rastejando, bisbilhotando, apontando, cochichando, esgueirando-se, mendigando, mexericando, apunhalando, dedurando, suplicando, caluniando, comendo ratos e carrapatos... Um dia haveria de surgir no meio dessa escória hereditária um rebento genial, um elemento mutante digno de aparecer nas manchetes sem ter que assassinar nem roubar ninguém... Ei-lo à minha frente! [Ele gargalha como um degenerado que exulta na perdição] ... Nada mais fascinante que a auto-descoberta – pode acreditar! – este reencontro com a própria alma, mesmo que seja uma simples, singela e doce almazinha de assassino vulgar. O que não é o teu caso! lógico que não! Você tem mais requinte! Ó, sim! és de fato uma edição melhorada. Tu tens a alma do assassino louco e frio escondida por detrás desses luares, aromas e balangandãs!.. dessas odes insossas e desmilingüidas que garatujas sob efeito de vinho barato... Ah, tá me gozando, é?! Tá levando a coisa na sacanagem, né isso?! Mas tu trata de sigurá as calça qu’eu vô abrir o jogo agora! Pilaaaantra!.. Daqui a dois minutos não vai sobrar mais nada de você! Tu acha que eu tô com este cinto na mão à toa, é?! Então toma, safado, ordinário, sem-vergonha! [Doutor Ytabayana se açoita, chingando-se, chorando escandalosamente, cheio de gritinhos lancinantes. Uma cena de dilacerar o coração!]
– Tu é uma gosmêra qui num fede nem chêra! Nada tens de poeta, seu cuzudo! O canto de sereia que tanto te fascinava era apenas o zumbido natural da insanidade, mais a ver com o hospício que com o Parnaso... E tu pensavas ser um gênio, um vanguardista... seu garnisé molhado! Tu teceste quimeras de heroísmo e santidade, sem nunca desconfiar que estavas atolado até as orelhas no conformismo mais boçal. No fundo consideravas-te herdeiro de um grande império ou da filosofia excelsa... mas eram apenas caprichos de um louco! – Onde está o teu manto púrpura, fantasma?! tuas interpretações eruditas? tuas doutas analogias e deduções visionárias?.. És o homem mais vulgar de todo o planeta!.. um impostor de si mesmo, um pseudo, um arremedo que flutua ao sabor das aparências, rumores e vagas pacholices d’alma. Centopéia humana! A verdade é que nunca ambicionaste ser nada mais do que um produto de conversa fiada! O tititi e o nhenhenhém são teus verdadeiros mestres, vitrinista da alma! Corno do nada!.. Sim, meu docinho, é isto mesmo: a alucinação de um bêbado caído na sarjeta é algo de mais concreto que a tua pretensa liberdade de espírito... Teu acalentado “eu” é na verdade uma bobagenzinha, um capricho de donzela, uma relíquia falsa, o amor platônico entre o cravo e a rosa! Tua mente é tão singela quanto uma cartilha escolar, um beabá do bobo, um manualzinho de boas maneiras! Passaste a vida inteira dizendo “um-dois-três, um-dois-três, um-dois-três”. Parabéns! és de fato um grande merda! Consegues matar o encanto de qualquer idéia e empobrecer a vida a cada vez que abres a boca. E outra coisa: tu é feio, entendeu?! Feio e sem-graça!.. ... ... Ah, não me diga! Então sou eu quem tá entalado na sua garganta? É isso mesmo ou será que não ouvi bem?! –Vê se te enxerga, calhorda! ponha-se no seu lugar! Você sabe com quem está falando?!! Vo-cê sa-be com!quem!es!tá!fa!lannn!dô?!!! Pois vá limpar essa bunda, cretino! Lerdo! Pastrano!.. Estas caretas de bufão não me afetam em nada, vagabundo! Vamos ver o que você vai dizer depois que eu colocar todos os seus podres pra fora!!!
[ Apesar do falatório todo (a zonzeira o levou a um estado de livre-fluxo criativo), Declacionor Roberto se sente opaco, viscoso como um velho suíno... Sua estrambótica gritaria comprova que, realmente, ele nunca teve um pingo de decoro – isto ele não percebe. ]
– Ó peidorreiro descocado e sotreta! Sim, é isto mesmo! Ahn, o quê? ... [Ele se detém e, por alguns instantes, cede a palavra ao seu duplo no espelho. Depois retruca.] ... E que se foda! eu torço pro Fluminense é só da semifinal pra frente! antes não, nem sei o nome do goleiro... [pausa] ... Há, há! 5 x 0 o caralho! – 5 x 1!.. e na mão grande! aquele juiz filho-da-puta!.. [pausa] ... Nem é comigo, meu chapa! Aliás, esse fanatismo pelo teu Vasquinho é bem sintomático! Cê não me engana não, moçoila! Cê por acaso já leu “Sectarismo Esportivo, Barbárie e Tensão na Musculatura Anal”?.. Ei, psiu, olha aqui, é contigo mesmo qu’eu tô falando, cacete!.. Vestiu a carapuça, é boneca?! Sa-man-tha!!!.. [pausa] ... Nananinanão! Eu não! – É VOCÊ!!! ... Cínico, mal-agradecido! Tá debochando?!! [ele se encara desafiadoramente]... Você ainda se ri, não é?.. [Sacode os punhos cerrados enquanto berra, descontrolado:] A tua indignidade me deixa louco, tá ouvindo! mas tu não sabe do que eu sou capaz! eu tenho provas contra você! Duvida? Cê tá rindo?! Pois vou entregá-lo à polícia amanhã mesmo! Já se esqueceu que duas pessoas morreram por sua causa, coisa ruim! Paródia suburbana de Asmodeu!.. ... Você continua a zombar, não é? Mas você está acabado! Acabado! entendeu?! Tô falando em grego, por acaso?.. Responda-me, canalha! Eu sei que você me entende! Você percebe muito bem a gravidade da situação... Essa cara de deboche não vai te salvar não, viu meu nêgo! O mundo não mais será indulgente contigo, entendeu bem? farsante imundo, impostor! Serás caçado como um piolho e apedrejado como um gambá sarnento! Até mesmo a ralé cuspirá sobre a tua cabeca... Serás alvo de chacota pública, desde o vigário até o vagabundo de esquina... Ah, é? Você acha qu’eu tô blefando? Pois arrume esses cabelos e preste atenção, moleque! Vamos por os pingos nos is!.. Eeé... eeé... eeeeeeé... [Ele se olha de esguelha por alguns instantes, sem graça, pois perdeu a inspiração e o rebolado bem no meio do rompante. Logo no momento em que sentiu que ia arrepiar, o samba escapuliu do pé. Foda, né?]
– ... Ai, ai, aaaai!.. Tu estás acabado!.. acabado, criatura coaxante! Batráquio! parasita da ilusão! bibelô da demência! pulha! biltre! pascácio! cafumango! azêmola! girolas! sotrancão! churdo! bilontra! inhonho! papalvo! gamenho! capadócio! quibungo! sicofanta! tanso! gandavo! estróina! macanjo! madraço! zote! badameco! molongó! pacóvio! sacripanta! bisbórria! mentecapto! patego! maninelo! jaguapoca! songamonga! xexé! pau-no-cu! palhaço-viado-bicha-fia-da-puta!.. [Recomposto daquele pequeno lapso de inspiração, Declacionor Roberto, agora sim, tomou gosto pela coisa. Esta pregação toda está fazendo com que ele se sinta moralmente revigorado, pois a esta altura ele já se sente imbuído da ira santa do legítimo doutrinador... da envergadura moral dos grandes águias da oratória, dos hipócritas altaneiros e enrustidos, chupadores de piroca... Mas qual dos dois é o verdadeiro doutor Ytabayana: o do espelho ou o que se olha no espelho? É preciso saber qual dos dois é o ‘Rui Barbosa’ e qual é o levadinho que usa cinta-liga preta enquanto implora pra levar porrada e chicotada por aí, nessas noites sujas, em hoteizinhos baratos da zona boêmia.]
– Serás maldito ao entrar e maldito ao sair! Serás maldito na cidade e maldito no campo! O Senhor mandará sobre ti a fome e a carestia, a maldição sobre todas as obras que fizeres, até te destruir e exterminar dentro em pouco. O Senhor te fira com a pobreza, com febre e com frio, com calor e com secura, com ar corrompido e com ferrugem, e te persiga até que pereças. E te castigue com a úlcera do Egito, e te fira de sarna aquela parte do corpo por onde se lançam os excrementos. O Senhor te fira de loucura, de cegueira e frenesi, de sorte que andes às apalpadelas ao meio-dia como um cego costuma andar à noite. E em todo o tempo sejas vítima de calúnia, oprimido pela violência, e não tenhas quem te livre! Recebas uma rapazote, e outro durma com ele... [D.R. permitiu-se uma pequena adaptação nesta última praga. No texto original do rancoroso e virulento Deuteronômio, ler-se-á “mulher” onde aqui se lê “rapazote”]... Edifiques uma casa e outro a habite. O teu boi seja imolado diante de ti e não comas dele. O teu jumento te seja arrebatado na tua presença e não te seja restituído. O Senhor te fira com a chaga maligna nos joelhos e nas pernas, e não possas ser curado desde a planta do pé até o alto da cabeca. O Senhor te dispersará entre todos os povos, desde uma extremidade da terra até a outra. Lá e acolá servirás a deuses estranhos que tu e teus pais desconhecem, e te curvarás perante animais, madeiras e pedras. Servirás teu inimigo com fome e com sede, com nudez e com falta de tudo; ele porá sobre o teu pescoço um jugo de ferro, até que te destrua. E que o Senhor te dê ali um coração medroso, uns olhos lânguidos e uma alma consumida pela tristeza. E que não haja força na tua mão, e fiques fora de ti por causa do terror daquilo que os teus olhos hão de ver...
[Assim ele continua a clamar por mais duas horas, recorrendo aos textos sagrados, poetas e oradores da antigüidade clássica. Esgotando-se enfim de sua luxuosa memória os últimos fragmentos de tal repertório, passa a apelar então pra expressão corporal: caretas, gesticulações, gritos inarticulados, escarradas, ataques, tremeliques... Ele está exasperado como de início. Só interrompe o esculacho esporadicamente pra beber água (na própria pia do banheiro) ou pra mijar (também na pia). A descompostura física, acompanhada duma sinfonia epilética de uivos, grunhidos, guinchos e ganidos petrificantes – tudo isto, aliado a uma gesticulação esdrúxula e desesperada – torna a cena realmente impagável!.. Até que, afinal, rendido ao sono, ele adormece, meigamente abraçado à latrina.]
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Dia seguinte. Como que por milagre, ressurge das cinzas o verdadeiro homem – o único, legítimo e autêntico doutor Ytabayana – o latinista pontificante, o sujeitinho cismado, distinto e loroteiro. Quanto à sua bisonha performance do dia anterior, ele pensa, complacente: “Gênio tem dessas coisas!..” – convicto e feliz em achar-se um Sófocles dos tempos modernos. Neste mesmo dia, em meio a uma conversa sobre as belas-letras, ele, ostentando a cauda em leque, sentenciou: “Oratorem irasci minime decet!”