Acordou cedo, depois de uma noite de sono absoluto. Jamais sentira-se tão bem. Espreguiça longamente e arrisca umas flexões. De raro humor em plena manhã, depois de atleta torna-se cantor, lírico tenor sob o chuveiro. Às sete horas de um sábado ensolarado. Jovial e quase lúdico, veste uma branca malha e tênis da mesma cor. Prende o walk-man na cintura. Encaixa uma fita, pinçada aleatoriamente da gaveta. Brinca com o cachorro que o observa, silenciosa e tristemente, no canto da sala. Tranca a porta e desce à garagem, saltitando pelos degraus. Parte para a oficina sem lamentar o roubo da noite passada. Antes, penitencia-se por ter deixado o carro em local tão afastado. Fone nos ouvidos, aperta o play: a cavalgada das Walquírias. A música evolui. A velocidade aumenta. A música penetra em todos os seus sentidos. Quase em transe, avança sinais sem percebê-los. Sente-se livre e ambiciona um vôo. Instintivamente entra na auto-pista. A música atinge o ápice. A velocidade atinge os cem. Sente-se um pássaro e voa: ultrapassa a barreira da velocidade. Do clássico som. Da polícia na pista. Começa a perseguição. Em pleno transe não escuta o estouro do pneu, sucedido pelo estampido de uma arma. Desperta com o carro dançando na pista. Rodopia três vezes e cai na vala central. Num segundo mágico e infinito, revê toda a sua vida. Num segundo místico, a música acaba. Num segundo trágico, o carro explode... Sirenes interrompem o silêncio do seu vôo eterno.