"Três vezes fui açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e um dia passei no abismo." (II Cor. 11:35)
"Conservando a fé, e a boa consciência, rejeitando a qual alguns fizeram naufrágio na fé." (I Tim. 1:19)
Nuvens noturnas invadiam como bárbaros o anil firmamento. Eram como nubladas caravelas surgindo do nada devastando tudo. Como negras bandeiras anunciavam o terror. O sol fugira disfarçado de retirante crepuscular. Os raios do dia desapareceram como covardes diante à tirania dos ventos. Edificou-se o império da escuridão no monte do tempo.
As trevas se alastravam como epidemia engolindo a face do abismo. O mar ficou assustado. Os seus passos sem direção seguiam aqueles vórtices desesperados. Uma nau dançava nos braços das marés a valsa da tempestade. Era um concerto em dó maior regido pela fúria natural. Ao fundo no trêmulo horizonte a percussão dos trovões soava com rugidos sombrios. Ouviam-se solos agudos em estridente aflição e outros desafinando em graves agonias. Relâmpagos dissonantes entoavam a sinfonia da destruição.
Não havia mais navio sobre o calvário marítimo. Era apenas uma armação disforme sepultada lentamente pelo coveiro oceânico. Todos se agarravam à qualquer esperança resistindo ao nefasto presságio. Viam-se muitos se segurarem nos escombros da fatalidade.
Os olhos da tormenta encontravam a todos na escuridão. Um casal, outrora, abraçara-se. Lascivos ficaram seus olhares num beijo nubente afogando-se na eternidade. Um rico afundava rapidamente junto com suas riquezas que não conseguia soltar. Outra senhora presa às plumas da vaidade era levada na crista de uma onda demodé. As estrelas testemunhavam ao longe os atos da tragédia. Não se escutou, contudo, nenhum choro de criança. Os anjos, certamente, estavam velando o sono dos pequeninos. Em belos sonhos permaneceram dormindo... Nos turbilhões da confusão, um mancebo tinha em seu semblante a mansidão de águas tranqüilas. Não correu, não fugiu, não se segurou na angústia dos acontecimentos. Dobrou os joelhos curvando-se em uma última oração. Sussurrante a sua prece silenciava os estrondos e traspassava as tuvas brumas. Sabia que Alguém o ouvia e afagava o seu coração. Poderia assim descansar em paz.
As lágrimas daqueles que ficaram se misturavam ao salobre das praias numa amarga lembrança daqueles que partiram... Nenhum sobrevivente restou para uma lacônica descrição dessa história. Todos perderam suas vidas, muito poucos tiveram salvas as suas almas. Dentre tantos é mais um funesto episódio esquecido pela caduca memória... Nem ao menos recordado com saudade. É outro naufrágio desmentido pela manhã do dia seguinte como se tudo não acontecera...