Narciso, 21 anos, belo e esguio, de volta da faculdade. No ônibus cheio, destaca-se pela aparência limpa, leve e lépida, bem vestido, inalando suores suburbanos. Reencontra o amigo habitual, morador de fim de linha. Cumprimenta-o meneando a cabeça. Entrega o tíquete ao cobrador do ônibus e vai-se encostando junto à janela, para não amassar a calça azul nova, que lhe dera a tia, em seu aniversário. São quase dez da noite e, cansado, vem meio sonolento, efeito que o faz se desligar da internet, às duas, três, da manhã, sob protestos da babá que o viu nascer, Nenzinha. Sua mania desde os 10 anos: olhar-se sem nenhum constrangimento, no espelho. Além de ser um tique narcisista, ele o pratica onde quer que esteja, como algo extremamente natural, como falar, sorrir... Admira-se, principalmente no triângulo inverso da cara: olhos, nariz e boca bem delineada. Filho único, fora tratado com tanto mimo, quanto são os hábitos de quem nasceu filho de classe média alta, morador de subúrbio elegante.
Enquanto uns colecionam posters, discos, músicas, chaveiros, cinzeiros... ele mantém uma coleção de mais de duzentos espelhos, de vários formatos, cores, material e nacionalidade. Seu pai, alto funcionário do governo, atende-lhe todos os pedidos, inclusive procurando nas cidades para onde vai, os diversos tipos de espelhos, seja na Ásia ou na Oceania.
Narciso os guarda em um cofre especial que foi mandado construir por um amigo do pai, com código ligado diretamente ao micro-computador de seu quarto. Quando viaja de férias, ele vai primeiramente a uma loja especializada em souvenirs excêntricos, porque ali, certamente encontrará espelhos. De fato, ele mesmo não se deu conta ainda se, o que gosta de verdade, é mirar-se neles, ou mantê-los em lugares os mais diferentes para contemplar o quanto a natureza foi generosa, em lhe ter proporcionado aquele rosto belo, diferenciado e harmonioso, para quem todos olham quando ele chega.
Quando lactante, foi eleito o bebê do ano, a criança mais bonita do país, num concurso nacional. Mas o que ele quer mesmo é seguir a carreira diplomática. Por isso prepara-se como um louco para o concurso. A mãe, pequeno-burguesa, autoritária e sangue italiano, quer levá-lo para Milão, a fim de introduzi-lo no jet-set local e torná-lo famoso, antes de voltar para o Brasil. Já fez teste numa televisão local, a maior do país, e, aprovado ou não, querem contratá-lo, posto que o pai é grande amigo de efemérides do empresário dono do canal.
Segunda-feira, 11 da noite, rua deserta, moradia de Narciso. Desce do ônibus, onde já é conhecido dos motoristas e segue pelo canto do muro, próximo uns 50 metros de sua casa.
A luz elétrica começou a fraquejar, fraquejar até que sumiu de vez. Narciso apressa os passos e esbarra com dois homens, a quem, no escuro, ele não pode visualizar. Ele está com um espelho na mão, outro no bolso esquerdo da calça, outros dois mais no bolso superior da camisa e um mais dentro do pulôver.
Um dos homens pergunta o que tem na mão. Narciso titubeia... e diz simplesmente: - Nada.... nada não... é só um espelho...um espelho!! A voz está fraca e inundada de medo na escuridão .
O segundo homem agarra-o por trás, retira-lhe abruptamente o relógio do pulso, o outro puxa alguma coisa do bolso da calça e investe contra Narciso que já está dominado, aturdido e indefeso. Cai e um dos homens caem por cima dele, puxando-lhe a carteira de cédulas do bolso esquerdo da calça, enquanto o outro passa suavemente em seu rosto, o instrumento pouco identificável no escuro da noite. Silêncio total. Os homens correram em disparada, deixando-o caído no chão, sangrando.
O espelho do pulôver caira-lhe à mão e ele, passando a outra mão no rosto, sente um líquido quente, meio pegajoso... Era um espelho italiano, que lhe dera a mãe quando viera de uma dessas viagens a Milão. Narciso, debalde, entregue ao destino da noite escura, leva o pequeno espelho até o triângulo inverso do rosto e constata um caminho estreito em forma de corte, desde a maçã do rosto até o queixo... Fissurado, desolado e desmaiando em seguida, Narciso observara pela última vez o fim trágico da neurose e da estética de uma vasta coleção de espelhos de cristal.
WALTER DA SILVA
Aldeia, Camaragibe, julho 1998
Extraído de “22 CONTOS DE RÉS” ®