A velha contadora de estórias partiu. Teve o seu passamento com seus já 104 anos completados.
O entra e sai no final da tarde foi grande.
A porta de madeira bruta rachada, da casa em que ela morava, ficou aberta. Seus batentes presos, na parede de taipa, estavam frouxos e fora de nivel, facilitando assim a sua permanência aberta sem que fosse preciso uma pedra para escorar.
Quem adentrava por ela, para se despedir da velha, encontrava a sala vazia de seus móveis rústicos - haviam sido retirados e amontoados em um canto no fundo da casa.
Feitos com caixotes de bacalhau e cobertos com almofadas tortas, alinhavadas a mão, feitas de retalhos coloridos e enchidas de palha de arroz, a sala era cercada de assentos improvisados para os caboclos e as carpideiras que passariam a noite velando à falecida.
No centro do chão de terra batida, sobre uma mesa de pau que tinha uma perna quebrada e por isso era escorada por um pedaço de bambu, estava o corpo da velha esticado sobre uma rede na qual seria enrolado e levado para o campo santo ao lado da igreja e jogado dentro de uma cova rasa.
O povo do lugarejo estava em peso a fazer sentinela. Gente crente e humilde. Os caboclos de pé no chão, com a casca grossa do calcanhar rachado, acompanhavam as cantadeiras na ladainha que varava a madrugada.
Dúzias de Pai Nosso: "Pai Nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos aqueles que nos tem ofendido e não nos deixei cair em tentação mas livre-nos do mal. Amém".
Outras dúzias de Ave Maria: "Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito o fruto do vosso ventre Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai ppor nós pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém".
A madrugada passou e aquelas velhas crentes, e os seus homens respeitosos a Deus, a ele louvaram com Salve Rainhas. Rezaram várias vezes o Credo e pediram pela alma da velha aos santos, a Rainha mãe, ao Pai e ao Filho cruxificado.
Vez em sempre um caboclo ou outro saia para o terreiro esticar as pernas. Fumar o seu fumo de corda, enrolado na palha do milho, e tomar um trago da cachaça que seu Quinzinho do alambique trouxera para colaborar com o velório.
Então voltava à sala para fazer parte do coro de louvação:
- Salve mãe poderosa, rogai por nós. Salve a consoladora dos aflitos, rogai por nós. Salve o menino Deus, rogai por nós. Salve o Pai misericordioso, rogai por nós.
A reza também era interrompida por um ou outro para um bate queixo.
As carpideiras haviam preparado bolo de aipim, broa de milho, bolachão e garapa de cana para encher o bucho dos velantes e lhes dar força para varar a madrugada.
Quando o dia clareou o povo se aboletou no terreiro. O corpo da velha foi enrolado na rede mortuária. A rede foi presa em uma taquara forte e dois caboclos levaram o corpo, rijo e encarquilhado, da velha para a sua morada final.
Um cortejo de gente humilde e maltrapilha o seguiu. Na frente o padre da vila, vestido com uma batina negra, dizia em voz alta:
- Mãe louvável, rogue por nós. Virgem fiel, rogue por nós. Mãe da igreja, rogue por nós. Consoladora dos aflitos, rogue por nós.
E em um coro uníssono de vozes o cortejo respóndia:
- Mãe louvável, rogue por nós. Virgem fiel,
rogue por nós. Mãe da igreja, rogue por nós.
Consoladora dos aflitos, rogue por nós.
A velha contadora de estórias foi colocada em uma cova rasa e o seu corpo coberto de terra.
Aquele povo não mais a ouviria contar estórias, mas muitas histórias seriam contadas falando dela.
Histórias que falariam de uma velha que contava estórias repletas de autenticidade em seus enredos. Que alegrava a sua gente, humilde e carente, com sonhos e fantasias que maravilhavam a todo o mundo.