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Contos-->Mudança de estações -- 21/06/2000 - 22:38 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sob a marquise, aí está: pensamentos fugazes, bamboleios mentais, coisas passando e tombando sob o impacto da chuva. Conheço nada que se iguale em poder a esses pingos batendo forte o asfalto duro. Vem o vento e varre espíritos, reduzindo os transeuntes a postes e pedras. Todas as vidas encontram um abrigo nessa hora, sumindo de cena milagrosamente. Só o bicho-homem perdura desprotegido, correndo tolo com jornais cobrindo a cabeça, molhando-se do mesmo jeito no cair dos pingos. As calçadas de quiabo, os carros ziguezagueando, o engarrafamento no eclipse. São só três horas da tarde, mas buzinas, mas derrapagens, mas as primeiras luzes dos postes. O dia sonâmbulo, acordando algum monstro. Música de quinta categoria retumbando da loja de discos. Um cafezinho até que ia bem, não fossem os insondáveis metros debaixo de chuva certa, no abrir picadas entre o sonho e a materialização do desejo - então fica assim, só na vontade. As televisões da loja de eletrodomésticos mostram um programa de entrevistas, todos os aparelhos sintonizados no mesmo canal. Fossem reflexos de um espelho inexistente ou qualquer outra coisa inverossímil, no entanto eram mais palpáveis do que aquele instante que não acontecia, ou que vinha às avessas.
Relâmpagos, também. E trovões, lógico. Para piorar, esses pacotes desconfortáveis, amarfanhados junto ao peito. Perfeito. O recurso é se conformar a ser um escravo do desarranjo. Mais hora, menos hora, tudo se ajeita. O problema agora é outro: que fazer enquanto isso?
São muitos os gatos pingados sob este abrigo. Eu poderia até dizer que todos somos uns privilegiados debaixo dessa marquise, pois secos e aquecidos, em posição de aguardo. Creia-me, algo vai acontecer, por isso é que eu espero.
Medo de olhar o relógio. O cursinho de logo mais, hoje não (depois dessa guerra, vou é me afogar no chuveiro quando chegar em casa). Ducha natural, essa é boa. Desprezo cada pingo da chuva que não pedi. Quero é o comando do registro de meu chuveiro, a chave controlando a temperatura, depois um jogo de toalhas alvas e secas para um corpo relaxado.
Aqui, frio e água torrencial. Celular na bolsa. Mensagem? Três recados. Ouvi-los com essa tromba d’água, impossível. É deixar para lá e pronto. Melhor esconder o cabo dessa sombrinha – ridículo, sim senhor, estar armado para uma hecatombe e constatar impotente que não dá para aventurar um passinho sequer num campo de batalha que torna sapatos secos em bombachas chiadeiras. Aqui debaixo dessa marquise tenho os pés salvos, e nada mais neste momento é tão certo.
- Que horas, moça?
- (vou ter mesmo de olhar o relógio, e essa agora? Bem que eu poderia chutar qualquer hora, afinal tenho o direito ao medo do vôo do tempo.) Três e quarenta.
- Obrigado.
- (só me faltava agora a perseguição desse cigarro. Fumante eu até poderia ser, mas fumante passiva, sem essa.) Ei, por favor, se incomodaria de apagar o cigarro, que sou alérgica?
- Ah, desculpe – e apaga, não importa como.
- (Droga, era só uma cantada, e caí. Fumar quando a vítima se encontra acuada, sabendo que haverá o pedido de apagar o cigarro, mas agora já foi, e eu caí pra valer.) Tá.
- Sabe que sou também alérgico? Mas, como diz, vício não escolhe quem.
- (Fraco!)
- Blá, blá, blá...
- (Deixa de conversa mole, que coisa...)
- ...?
- Desculpe, não ouvi.
- Isso e mais aquilo.
- Ah, sim. Também acho.
- Etecétera e tal.
- De acordo.
- Também isso, não obstante umas dez linhas de discurso.
- Ah, é.
- Mas por quê?
- Porque isso e mais isso. (Agora também estou entrando nessa de dar argumentos e tudo, droga, deixa para lá, já foi, enfim.)
- E a chuva, hem?
- (Ah, não, falar de chuva, agora? Respingar-se de pingos? Pelo amor de Deus!)
Os pingos, efetivamente, diminuíram, alguns companheiros de marquise já arriscam seus passos de valsa em meio às poças d’água. Uma mulher que tinha feito escova no cabelo desconjura a cabeleireira, como se a pobre fosse culpada daquele pé d’água: “Esta chuva me custou uma nota! Minha escova foi para o beleléu. Por que eu não li meu horóscopo hoje?” - e resiste bravamente ao já quase sereno que ainda cisma de cair.
Teresa roga aos céus que tudo aquilo acabe. Quer porque quer escorregar furtivamente entre os pingos últimos e chegar ilesa a sua casa a três quadras dali. Pegar táxi não vai (muito caro, além de ser uma questão de honra esperar o desfecho da chuva, porque já paguei o ingresso de ter esperado até aqui.). Pedir carona está fora de cogitação, ainda mais hoje em dia, com essa violência e tanta coisa.
- Mas como vinha falando...
- (Jesus, ele ainda está falando?) - naquele momento
todas as atenções de Teresa correm léguas atrás dos
despojos da festa egoísta da chuva.
Um sol preguiçoso começa a dourar os cantos, estremunhado após o descanso. Um arco-íris brota num pedaço de céu do outro lado da cidade. E o rapaz, falando, falando. Parece até que o momento trabalha em seu favor, obrigando a arredia Teresa a agüentar aquele palavrório.
Teresa, o seu castigo hoje será perder a aula daquele curso caríssimo de inglês, já que a chuva, por si só, não trouxe nenhuma ruína. Meia hora ouvindo esse rapaz, mesmo que seja muito chato, é algo que você tira de letra. Sem se envolver na conversa, sem distinguir bem um parágrafo inteiro, é um castigo apenas para os seus castos ouvidos. (Ora, já que agüentei até aqui, agora é que não vou embora mesmo, porque chegar em casa é uma boa caminhada. Enquanto chover um pingo, eu permaneço).
A moça toca o ar com os dedos para sentir a chuva. Ainda o sereno. E sob a marquise, palavras voejando e se cravando nos tímpanos. Todo o mundo tinha tomado seu rumo, até - quem diria! - a moça da escova. Só Teresa resta, ouvindo sem escutar - ou escutando sem ouvir - a tortura de um único refrão que volta e meia alteia, de quando em quando se interrompe.
– Não, minha cara, ainda não acabei, foi só uma pausa para uma tragada, bem longe de seu narizinho sensível, é claro, que respeito é bom e eu gosto.
Que água extrair dessa pedra?
Pior de tudo é ter que revirar a cabeça, caçando pretextos, os olhos passeando do sapato para as pernas, das pernas para os braços, a sonhar com o aconchego de cobertas mornas. (E torcer para essa conversa não ter pausa, que odeio esse recurso maroto de lançar questões à vítima apenas para verificar se ela, de fato, presta atenção à conversa). Teresa emprestara os ouvidos, não a alma. Então, contentasse o rapaz com aquele supremo esforço que ela despendia. Na verdade, ela nem chegava a ser arredia. Só hoje, com a chuva, não sei, perdera a vontade de emitir qualquer som que fosse. Bem dizendo, não estava também para compreender nenhum conceito. Alugar os ouvidos é tudo o que podia oferecer.
- Blá...blá...blá...
De repente, a cabeça de Teresa volta-se para aquela figura que emite sons indecifráveis. E afinal o moço não é de se jogar fora, ora-ora. Mas por que a insistência dele em derramar idéias, repetir modismos, fazer citações pra lá de gastas? Bastavam suas sobrancelhas, seus olhos vivos, o porte másculo, agora é que não dava mesmo para prestar atenção em nada. As palavras continuam vindo de mãos dadas umas com as outras, numa ciranda patética, enquanto o clarume do sol aponta para uma pinta no canto de boca do rapaz. A chuva já terá ido embora, mas, no claro, Teresa sente medo de se ver, duma hora pra outra, expulsa daquele aconchego. Agora só resta torcer para que algo enfim aconteça.
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