Escuridão. O ruído insuportável de uma porta sendo aberta. A luz do dia invade tímida o espaço, mostrando que há uma escada rumo às trevas. Os passos pesados se fazem ecoar pelas paredes do compartimento. É um passo de sandália acompanhado de dois passos de coturnos.
Uma lâmpada incandescente é acesa. Não ajuda muito. O lustre malfeito balança na altura das cabeças, como se fosse uma lâmina pronta para cortar pescoços. Uma porta de alumínio é aberta, deixado escapar um vapor gelado cor de cal. Uma gaveta é puxada, deixando à mostra, na pouca luz do recinto, um corpo.
O rosto está desfigurado. Os globos oculares saltam da cavidade do olho como bolas de gude presas por um barbante vermelho. Os dentes parecem furadeiras desgovernadas. O maxilar aparenta querer morder a própria nuca. E buracos de balas perfuram toda a face do presunto, permitindo que restos de miolo saltassem para fora.
— Sim, é ele, disse a mulher.
Os trabalhadores estavam exaltados naquela manhã de novembro. Uma greve não declarada acontecia, e o povo ocupava as avenidas como escolas de samba no Anhembi. As eleições nacionais aconteceram no dia anterior, e os resultados foram divulgados durante a madrugada. Era notícia nos jornais e grito na boca das crianças. A Frente Popular havia eleito o presidente do país.
As eleições haviam sido duras e difíceis. O governo, nas mãos do partido liberal, havia se aliado ao partido nacional, conformando uma frente com um programa bastante conservador. O partido dos trabalhadores costurou uma coligação com o partido comunista e o partido democrático, fazendo nascer a Frente Popular.
A situação era acusada pela Frente Popular de corrupta e inimiga da nação. Esta, por outro lado, era acusada de incentivar a desordem e o caos no país, por conta de uma poderosa onda de greves e manifestações que cortaram o país de alto a baixo. Aproximando-se o dia do pleito, foram levantados os podres da vida dos dois candidatos. Vital Neto, professor universitário e candidato da Frente Popular, foi acusado de ser usuário de drogas e homossexual. Afrânio Magalhães, candidato do governo, foi ligado ao narcotráfico e à máfia siciliana.
A vitória foi apertada. Os partidos liberal e nacional teriam a maioria do Parlamento Nacional, o que significava um claro problema de governabilidade para o novo presidente. Por outro lado, a central sindical e as diversas entidades representativas da sociedade apoiavam a Frente Popular.
Para evitar uma crise política de grandes proporções, a Frente Popular chamou os partidos nacional e liberal para participarem do novo governo. Recusaram. O Partido Nacional lançou um manifesto público chamando o povo à oposição contra os “perigosos bolchevistas que assaltam ao poder”. A política da unidade nacional foi claramente rejeitada pelos liberais, que lançaram um movimento de defesa da democracia contra o comunismo.
Alberto Cavalheiro era estudante de ciências sociais na Universidade Federal. Apoiou a Frente Popular, organizou comitês, fez boca de urna e chegou a pagar panfletos do próprio bolso para garantir a eleição contra os liberais, envolvidos em diversos escândalos. Estava confiante na construção do novo governo.
Meses depois, o governo democrático e popular não é mais o que parecia ser. O Partido Liberal, depois de muitos ataques, aderiu no governo, o que lhe custou uma dissidência que se unificou ao Partido Nacional. O presidente Vital Neto assinou um acordo com o Fundo Monetário Internacional concordando com a desregulamentação das leis trabalhistas e a privatização de empresas estratégicas.
Surgem dois pólos de oposição: o Partido Nacional, que ganha peso nas Forças Armadas e nas classes médias, e duas organizações de extrema-esquerda que no período eleitoral eram marginais: a Vanguarda Popular Revolucionária e a Organização Socialista dos Trabalhadores.
A VPR é um movimento guerrilheiro que recruta militantes nas universidades com o objetivo de organizar um exército revolucionário. A OST é um partido legal que atua dentro dos sindicatos e do movimento popular, chamando os trabalhadores às ruas para derrubar o governo. Alberto Cavalheiro adere à VPR.
A crise avança. O Partido Nacional realiza uma grande reunião do Clube Militar, junto da Conferência dos Bispos e de diversas organizações, chamando a restauração da ordem no país. Crescem os movimento contra os sindicatos. Grupos paramilitares andam nas ruas dispersando mobilizações da OST. A TV fala em ordem, família e propriedade.
Com o risco de golpe militar, a OST abre uma trégua em sua política de oposição. Chama uma unidade anti-fascista com a VPR e o governo. Estes desdenham. A VPR mantém sua política de nenhuma trégua, e divulga manifesto contra “os dois mussolinis”, o governo e os conservadores golpistas aglutinados em torno do Partido Nacional.
O Partido Nacional articula um golpe bem sucedido. As Forças Armadas colocam os tanques na rua e em uma transmissão de rádio e TV mandam prender imediatamente os inimigos da nação. Vital Neto e todo o gabinete da Frente Popular se suicida.
Diversos dirigentes políticos fogem para o exterior. Um suposto Quartel general da VPR é desmontado pela polícia secreta, e seus militantes são presos no Batalhão Militar da capital, ficando sob vigilância do exército.
Aos poucos, vão transferindo os presos da VPR para diversos presídios pelo país. Eles são transportados em jipes militares, com um capuz na cabeça e fortemente sedados. Muitos não sobreviveram aos sedativos, e foram lançados em covas rasas à beira das estradas.
Quando Alberto acordou, estava em uma cela escura em algum lugar do país. Pela janela fora do alcance de suas mãos era possível ouvir o mar batendo nas rochas com violência. Comia pouco. Uma refeição por dia, angu e água. E o total isolamento.
Isolamento cortado em alguns momento por um rito de dor. Era sempre a mesma seqüência sonora, uma música mecânica sem raça nenhuma. Primeiro, a chave entrando na fechadura e girando dentro do ferrolho, abrindo a porta da cela. Silêncio. Um grito de negativas. Uma chicotada. Um grito de dor. Ruídos de uma boca sendo amordaçada. Um corpo sendo arrastado. Uma porta fechando violenta. Silêncio. As poucas lâmpadas do presídio ameaçavam queimar, e a luz ameaçava acabar. Gritos de dor e de medo. Sons de faíscas. Gritos de dor e de desespero. Faíscas. Dor e angústia. Faíscas. Silêncio. Um corpo sendo arrastado com pressa. Um soldado suspira. Chicotada. Um corpo batendo nos degraus da escada. Uma porta sendo aberta e fechada com estupidez. E então tudo retornava à paz angustiante de todo dia.
Outro rito quebrava o isolamento e o silêncio sepulcral. Uma porta sendo aberta devagar, como que fosse um instrumento de tortura. Um corpo batendo ritmado nos degraus de uma escada. Um corpo arrastado pelo corredor. Outra porta abrindo. Um corpo lançado à parede. Um comentário desnecessário de algum soldado. Porta fechando. Passos marcados e pesados. Porta fechando com ignorância. Silêncio.
Em uma manhã de setembro, Alberto acordou de seu sono de morte.
— Tem companhia, terrorista safado.
Um corpo sedado foi lançado à cela. Um homem de porte avantajado, negro, mal-encarado. Passaram-se horas até que o homem acordasse. Não se sabe quantas, naquele lugar onde a luz não entrava era impossível ter alguma noção mais exata do tempo.
Os dois condenados logo ganharam toda a intimidade que é possível quando se divide a cela e a escuridão. O outro presidiário era Bernardo, militante da OST, pego enquanto fazia uma agitação no cinema.
— Entrei, esperei passar todo o filme e então fiz um discurso chamando o fim da ditadura e uma democracia onde o povo tenha o poder.
Tinham concepções diferentes de como enfrentar o novo regime, do balanço da Frente Popular no governo e da perspectiva para o país. Alberto não tinha nenhuma confiança na luta do povo.
— O povo apoiou o golpe. Enquanto organizávamos a revolução, o proletariado aplaudiu aos tanques e me chamou de terrorista, inimigo da nação.
Bernardo dizia que a política da Frente Popular e o vanguardismo da VPR haviam construído a vitória da contra-revolução fascista. Para ele, o período revolucionário ainda não havia se fechado, mas era necessário uma política muito justa para garantir que o regime fascista não se consolidasse no poder.
— As massas querem emprego, saúde, dignidade. Por isso votaram na Frente Popular. Quanto a Frente fecha o acordo com o FMI, as massas apóiam o Partido Nacional. E agora, quando os conservadores implementam o acordo assinado pela Frente, as massas se radicalizam ainda mais. É preciso uma justa política para convencê-las de que o único caminho para a dignidade é a revolução, o socialismo.
— As massas não serão convencidas para a revolução e o socialismo. É necessário a organização de um exército de libertação do povo.
— Só a luta do povo pode libertá-lo.
— Onde está o povo enquanto estamos presos aqui?
— Onde está o seu exército de libertação? Quanta resistência ele pôde oferecer às Forças Armadas controladas pelos conservadores?
— Não tivemos tempo de organizar o exército.
— Teriam conseguido se tivessem apostado na mobilização das massas ao invés de tentarem comprar armas dos contrabandistas paraguaios.
Assim se passava a noite eterna dentro daquela cela. Era como se, enquanto o mundo está sob o jugo do totalitarismo, os porões da ditadura se conformassem numa ilha de liberdade ideológica. Interrompida por sessões de tortura que lembravam de forma cruel a dura realidade.
Em uma manhã de dezembro, quando em meio ao silêncio os sinos repicavam e era possível ouvir ao longe as canções natalinas, a porta da cela se abriu. Um soldado de luvas negras chamou:
— Alberto.
Ele se levantou. Dois soldados o algemaram. Conduziram-no a uma sala ao final do corredor. Fecharam a porta por trás de seu corpo ereto. Sob uma luz que mal deixavam à vista suas mãos, um homem falou:
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
— Não!
Um golpe acertou-lhe a nuca. Foi atado a uma rede de cabos eletrificados. Ligaram dois eletrodos ao seu cu, e jogaram salmoura. Novamente a descrição.
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
— Não!
Ligaram cerca de 300 V no cu de Alberto. Gritos de dor. Um soldado dava coronhadas em seu rosto.
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
— Não!
Mais 600 V em seu cu, totalmente enegrecido e dolorido, com hemorróidas saltando à força elétrica.
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
— Não!
Um soldado, com um punhal de aço inoxidável, arranca um globo ocular do roto de Alberto Cavalheiro.
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
— Não!
Coronhadas, choques de 1000 Volts e outro globo ocular arrancado de seu rosto já quase desvanecido.
— Alberto Cavalheiro, militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Terrorista. Financiado pelo terrorista Osama Bin Laden, por Sadam Hussein, por Fidel Castro e por Hugo Chavez. Causou a morte de centenas de inocentes. Confessa?
Desta vez o corpo não respondeu nem com um suspiro. Chamaram o doutor. Este examinou, examinou, e chegou à sua conclusão:
— Este bateu as botas...
O corpo foi arrastado pelo corredor da cadeia. Desta vez os presos urravam de ódio, numa agitação que sacudia a estrutura do antigo castelo. O corpo é arrastado pelas escadarias como um saco de batatas. Lançado no vestiário dos soldados, toma mais de dez tiros na cara.
O escrivão oficial começa a redigir o boletim de ocorrência. “Os soldados cercam o carro do terrorista. Este reage com tiros de metralhadora. Com pistolas automáticas, são obrigados a responder.” A vítima são os soldados. O réu é o defunto. Crime: desacato à autoridade e resistência à prisão. Causa mortis: tiroteio.
A namorada de Alberto descia as escadarias para reconhecer o corpo. Sabe que não terá justiça. Sabe que seu homem foi vítima de um regime que se sustenta na violência e na repressão. Mas ela quer um julgamento justo.
— Ele já teve, diz o juiz. É um terrorista, tem que morrer.
Exige pelo menos o corpo de seu amante, para que ele receba um enterro decente. O seu velório atrai multidões. A bandeira da OST está sobre seu caixão. O luto segue sob os acordes da Internacional. Salvas de tiros de pistolas para o alto. Um carro do exército de aproxima do local do velório. Mil homens afastam os soldados aos gritos de “Assassinos!”
O país amanhece em Greve Geral declarada. Policiais insurretos fazem a segurança dos trabalhadores. Os conselhos de mobilização assumem o controle das cidades. Uma multidão toma o prédio da principal rede de TV. Tomam o palácio do governo. A Junta Militar governativa se suicida.
Dois dias depois da morte de Alberto, o país acorda com saudações à revolução e à democracia. Dois dias depois da morte de Alberto, os vermes fazem a festa com sua carne, dentro do sepulcro.