“... meus olhos estão atingidos pela tristeza
todo o meu corpo não é mais que uma sombra...”
(Jó 17,7 )
Dois versos vestidos de sílabas negras, concebidos por Jó enquanto a lepra faminta comia sua carne, levantaram da empoeirada página amarela, remanescente, de minha luta com o livro sagrado... Algozes versos! Como eu os olhasse, subiram, um após o outro, as escadarias do silêncio, arrombaram as minhas pupilas e, sadicamente, começaram a correr pelas depressões da minha mente. Através da persiana do meu quarto, via-se a tarde moribunda recebendo extrema-unção dos telhados e dos pássaros em algazarra; murmurava desconexa e, às vezes, silenciava. Os versos vestidos de luto zombavam das fantasias da minha imaginação e, minhas mãos em desatino, alucinadas, esquartejavam o retrato de Yone... E o que foi o amor senão a morfina, agora ausente, da qual tanto careço para conter a dor deste câncer que deixaste? Solidão?! Maldita madrasta a invadir a festa, arrancando as toalhas das mesas, parando a música, varrendo o salão, mandando os convidados embora, fechando janelas e portas, transformando-se em manto, envolvendo-me com seu tecido de trevas, arrancando de meus olhos lágrimas pelo cadáver vivo que agora sou.
Há horas que acordei; a tarde era ainda jovem, e tudo que encontrei a dizer-me “bom-dia” ou “boa-tarde” foi uma palavra muda e inerte amarrada com letras escarlates ao espelho do armarinho do banheiro: “Adeus!” A tarde, até então vestida de juventude, vestiu mortalha de folhas secas, pôs cinto de espinhos, calçou sandálias de pedra, engoliu o sol, concebeu-me em seu ventre febril e ficou a aguardar que as moscas lhe trouxessem, antes de expirar, ao menos um carinho exógeno.
Deitado em posição fetal sobre o tapete do quarto, era eu o rebento pálido a ocupar o útero vespertino; o rebento de barba e bigode, em cujos olhos morrera a inocência infante, em cujo coração brotara a cepa do ódio, cujo corpo se transformara em uma carniça prestes a ser parida para o túmulo. Eu... um usuário de amor – este narcótico que nos suprime a razão e prostitui a alma –, estou agora padecendo no ermo. Foste embora, Yone, minha papoula humana, e contigo levaste o amor que por tempos fizera este espírito suportar a carne. Ah, Yone! De todas as dores que o corpo padece, a maior não é, sequer, uma parte ínfima da menor dor que angustia a alma. O abandono é a náusea errante dos usuários de amor postos em abstinência. Por que não deixaste, ao menos como recordação, escondido no canto da gaveta, um sorriso teu?
Sabes, és agora a tarde que vejo morrer através da janela. Aos poucos vais perdendo o fulgor; aos poucos, não sei se iludo, a escuridão encobre teu rosto, cala tua voz... Pouco a pouco, os dois versos de Jó embriagam-se nos bares da minha imaginação; quando caem, um véu negro encobre a tarde... tudo é fuligem no póstumo ventre vespertino que me serve de habitação. Além da persiana, como vermes, as pessoas se movem pelos tecidos da paisagem morta buscando saciar seus apetites; como fungos os corpos encontram na letargia das horas o frio da noite.
Tal qual a fumaça do tabaco invade, gradualmente, as vias respiratórias até o pulmão, a morte se punha a tomar cada poro da tarde. Uma angústia envolveu-me por inteiro; e como a semente rompe a terra imóvel que lhe cobre, dilacerei o invólucro uterino da tarde morta, escorreguei por suas entranhas tomadas de escuridão e, de chofre, um vazio cheio de luz se abriu para testemunhar a minha queda em algum ponto da noite.
Com os olhos embaçados pelo fulgor das luzes, ouço o eco da porta se fechando atrás de mim. Eis que me encontro fora do quarto. Luzes violentam meus olhos; diante deles, como uma aquarela danificada pelo tempo, são visíveis os traços descontínuos do corredor. Meus pés se arrastam pela passagem estreita e longa, fatigados por minhas trêmulas pernas a sustentar o corpo molambo. Acaba o corredor, as luzes são subtraídas; há uma margem de caos entre a claridade que é agora furtada e o vulto de néon que me acena da rua. Há em meus passos no caos a sensação de caminhar entre cadáveres, como em um infinito necrotério. Neste limbo, a imagem de Yone é como um cadáver que tenta dizer algo, mas os olhos não abrem, o riso não povoa o rosto, a boca está de palavras deserta e o coração perpetuamente árido... fantasmagórica, a imagem de Yone é “uma mentira muito semelhante às realidades”.
Minha mão toca a grade fria do portão que, rangendo, vomita-me na calçada; velozes, os carros vão pela rua como Yone se foi pela vida. Sob as frígidas luzes da rua, “meu corpo não é mais que uma sombra” a vagar pela pista... “Ei, seu idiota, tá querendo morrer?! A rua foi feita para carros...” Buzinas, faróis, xingamentos, a morte, o medo, a calçada. Morrer é relativo; às vezes, morremos e ninguém percebe... morremos para o tédio, para angústia, para a solidão, morremos ao crepúsculo de cada dia. Contudo, não percebem nossas mortes; aos olhos da multidão é apenas morte a tentativa frustrada da alma em regressar à sua casa – o corpo. Aos olhos das ruas, só há morte quando a alma quer retornar e a casa jaz destruída, queimada ou aterrada. Os rostos que por mim passam neste calçamento, não percebem que, embora a lama ainda possa habitar este casebre que sou, inúmeras são as mortes implícitas, inúmeros são os fantasmas e choros e incontáveis são os funerais absortos.
“Nua, a rua sua tua lua e os corpos transbordam sobre as mesas de Hímero.”** Aspiro os odores da carne lasciva e do vinho que embriaga; ouço a música, as vozes, as risadas... Sôfregos, meus pés transpõem os degraus até o cume da escadaria, a porta se abre revelando a escuridão retalhada por feixes luminosos oriundos de um globo a girar no teto.
Sentado junto ao balcão, peço que venha uma bebida. No curvar lento da garrafa, as lágrimas da destilaria passam pela cloaca do gargalo e atingem, em borbulhas, o solo vítreo do copo. Quando cessa o borbulhar, há no líquido transparente o riso sádico de Yone. Há no salão, um casal de gafieira para cada nota da música; há, em minha mão destra, um copo, uma dose e a ilusão de dissipar a amargura que uma paixão deixara. Cândidos, meus lábios recebem o copo frio de mãos unidas, um coral de lágrimas tórridas gira pelo vácuo silencioso da minha garganta e se espalha pelas erosões da minha solidão. Outra dose vem, incandescente como se viesse do centro da terra, absorvo-a. Percebo, no entanto, que goles avulsos não resolvem; doses são lamentos isolados de um grande pranto. Rogo pela garrafa. Goles faceiros me conduzem pelas veredas da noite desabitada. A noite com suas cicatrizes expostas, causadora de náuseas bubônicas e ébrias metamorfoses.
Yone torna-se distante; tão longínqua quanto a imagem que tenho do menino que fui. Oh, vida vagabunda, louvo-te nesta hora estéril! Louvo-te, santa embriaguez, por tornar tão ausente as imagens tão presentes... “Bebo para esquecer...” Logo eu, outrora sensato; logo eu... Alguém se senta ao meu lado. De soslaio, percebo um insinuante corpo de mulher, o rosto coberto pelos cabelos, a cabeça inclinada sobre o balcão. E, embora fosse grande a minha insensatez, pude perceber algo comum entre mim e a desconhecida – a escravidão à garrafa de bebida.
Madeixas descortinam ante meus olhos inebriados de curiosidade e um rosto surge dentre os fios ondulados de mel; uns óculos grossos escondem uns olhos tristes e, por um instante, tenho a sensação de conhecer aquele rosto. Os lábios trêmulos, de helênica fascinação, saúdam-me através de uma voz rouca quase murmurante (as mulheres... sempre a surgir quando a vulnerabilidade nos ataca, no seio de uma noite, em um momento de solidão e embriaguez; as mulheres, com suas armas e encantos sempre a impedir que recorramos à morte como desfecho...)
Goles e palavras divididas; Bia nos conduz por nossas supostas vidas. Sob as máscaras da noite e o orvalho etílico que por anos repousara nos barris, falamos de um mundo quixotesco próprio dos ébrios. Bia, a desconhecida que se convertera em íntima ao sabor de alguns goles, tinha em si a meiguice de Yone contrastando com a mulher sensual e insinuante oculta atrás das lentes e dos longos cabelos louros. Dos muros da madrugada, espreita-nos a solidão, assustam-nos as horas enlutadas e uma dança une nossos corpos vorazes, debilitados ante as palavras ao ouvido, as mordidas e beijos avessos ao pudor. A um canto, uma senhora com rosto sisudo e olhar reprovador espreita-me... consciência... ao que me socorro: “Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?”***
Enquanto mortos temporários povoam as sorumbáticas camas escondidas ante as janelas fechadas da rua até que o sol os venha ressuscitar, Bia traz o éden profano, a macieira de incontáveis gozos, às dobras mudas dos lençóis que se arrastam sob nossos corpos e sobre a fatigada cama – este ataúde de amores passados, de saudades e solidão. Mortificados pelo sono, delirantes de bebida e orgasmos, nossos corpos aderem à multidão dos mortos de ocasião.
Raios de sol ferem meus olhos através da vidraça, amanhecera. Sozinho na cama, advém-me a idéia de que tudo fora um sonho, uma alucinação. Novamente a ausência, novamente a procura em cada canto da casa... um sonho não havia sido, tinha em mim as marcas pelo corpo, a boca amarga viúva das libações noturnas... e Bia?
Havia deixado seus falsos cabelos dourados sobre a escrivaninha acompanhados por um bilhete:
“Despedidas são coisas desagradáveis. Apesar da atenção, do carinho, dos cuidados a mim dispensados, nossos mundos não se encontram. Não que eu prefira a rudeza dos homens que compram corpos e imagens de mulher, mas reconheço que mesmo me matando aos poucos, este é o mundo ao qual pertenço.
Não sei lidar com coisas verdadeiras. O disfarce é o melhor amigo das criaturas que se sentem parte da noite. Até um dia, Yone ou Bia, como preferir.”
Através de lentos gestos, meus dedos envolvem as últimas palavras daquela que, um dia, pensei ser península de mim. Enquanto o papel cai no cesto, uma lepra sentimental envolve a imagem da Yone que criei; assusto-me comigo e com a lama das lágrimas de outrora.
* Atribuído a Hesíodo, poeta grego que teria vivido no séc. VII a.C.
** Deus do desejo na mitologia grega
*** Álvaro de Campos, em 26.4.1926