Talvez um dia ou talvez nunca alguém venha a entender. No momento, acredito, a solução mais fácil será a de dar explicações lógicas. E haverá alguma lógica que possa explicar ?
A lógica é por demais fria, sempre alguém aparece propondo soluções. Por que não fez isto, ou aquilo? Talvez...Para quem está de fora de uma situação é muito fácil opinar, mas tente viver, um ano, dois anos, dez anos, vivenciando uma situação quase cômica, se não fosse trágica.
Poderia começar esta história contando como tudo começou, mas isto seria muito penoso para os leitores. Então, começo de um ponto adiante na história, no dia em que Flauzina entrou na vida de Bento.
Nomes antigos? Muito. Mas a história aconteceu há muitos anos.
Bento era o dono daquela fazenda, que a gente vê quando passa na rodovia, estendendo-se por léguas e léguas. Bento era já um quarentão quando entendeu que não podia deixar todo o seu ouro sem um herdeiro, e então resolveu casar com alguém, só para ter descendência.
Mas o problema de Bento, o grande problema, era que Bento não tinha os documentos. Ora, eu não estou a falar de papéis, certidões. Ele tinha nascido sem os documentos de homem, fato que ele mesmo só ficou sabendo quando por acaso viu um negrinho pelado no rio.
A mãe de Bento tinha morrido no parto, e a tia que o criou o mantinha recluso, sem contato com outras crianças, e apenas ela cuidava do menino.
Mané Eurípio, seu pai, explicou, quando ele entrou em casa aos gritos. Explicou que ele era homem sim, mas de um tipo diferente, que não se preocupasse com isto, tinha homem com os documentos de todos os jeitos.
E Bento acreditou. Só quando o pai morreu, e a tia já estava velha, pois que era uma tia-avó, foi que Bento começou a gerir a Melodia. Melodia, eu não disse antes, era o nome da fazenda.
Como a fazenda era de café, não acontecia que nem nas fazendas de gado, que o dono tem de sair em comitiva pelo sertão. Quando muito, pegar o trem e ir vender o café na capital. Os escravos e os empregados nunca haveriam de se intrometer com o patrão, e assim nunca ninguém viu o tipo de documento que Bento portava.
Uma vezinha só, uma negrinha mais enxerida enroscou-se nele, e foi devidamente surrada, para que nunca mais isto ocorresse.
E o tempo foi passando, a vida correndo. Bom fazendeiro, encorpado, baixo, de pouca barba, mas bravo que nem o capeta, ninguém ousava nem tentar ser engraçado com ele, vendo as duas garruchas na cinta.
Bom de gole, também, era o Bento.
Mas voltando ao causo, lá pelos quarenta, eis que um dia, Bento acorda, e olha aquela imensidão de terra, e pensa, que aquilo era uma tragédia, morrer e não deixar nada para ninguém.
Mas também, como fazer um filho?
Eu acredito piamente que vocês devem estar dizendo, que história mais boba. Mas não é. Ele se achava homem, sem saco, de coisa pequena, quase nada, mas era homem. E homem faz filho.
Ele gostava muito da prima Flauzina, ela montava bem a cavalo, era disposta, quem sabe seria boa parideira?
Flauzina aceitou o convite do primo, e mais feliz ficou o pai dela, o Honório, que viu as duas fortunas se juntando, e aceitou de coração, embora achasse aquele parente meio esquisito.
O casamento foi um a senhora festa, dessas que ninguém bota defeito.
Mas a noite de núpcias foi um desastre. Flauzina era muito esperta, estava esperando o grande momento, e qual...
Mas achou que o Bento tinha exagerado na bebida, e falou consigo mesma que era até melhor assim, ficava mais mistério.
Só que o mistério foi durando mais que o necessário, e só de beijinho ela estava ficando cansada.
O Bento até que pensava no que iria fazer, mas estava ficando desesperado. Ele tinha achado que com o calor da Flauzina ali na cama, alguma coisa diferente ia acontecer, mas qual...
E naqueles tempos, sexo era coisa que nem para o padre se falava. Flauzina depois de ano, era mais virgem do que antes, e Bento ainda esperava que um milagre acontecesse.
Foi então que Flauzina, andando a cavalo, levou um tombo, e foi socorrida pelo Antenor, capataz da fazenda, que ao socorrer a patroa, sentiu seu coração disparado, e resolveu socorrer o resto ali mesmo no meio do cafezal.
Flauzina começou a cavalgar todos os dias, agora sem tombos, e de repente estava prenha.
E Bento, quando notou a barriga da mulher, ajoelhou-se aos seus pés e agradeceu-lhe pelo filho.
Foi então que ela entendeu toda a história. E talvez não tenha tido mulher mais feliz na terra. Cada filho de um homem diferente, e a cada filho a gratidão de Bento aumentava.
Acho que ele só não gostou muito quando um dos meninos nasceu meio moreninho demais, mas as negras disseram: Dona Flauzina tomou café demais quando estava de barriga...
E assim, ela teve dez filhos e filhas, que cresciam fortes, e tomavam a bênção ao pai todos os dias.
Entre os dois nunca houve o menor atrito. Ele a cobriria de ouro se ela pedisse.
Os capatazes riam à boca miúda, mas calavam-se respeitosos quando viam o patrão.
Até que um dia, porque sempre tem um dia, a Flauzina estava fazendo seus exercícios diários numa parte meio abandonada da fazenda, quando o marido chegou.
E viu. O capataz pulou para o lado puxando as calças para cima, mas era tarde. Bento mandou bala nos dois. E chamou a filharada para provar que fora obrigado a fazer aquilo para lavar a honra dele e dos filhos.
Lágrimas, vergonha, o velório foi muito triste. Os filhos apoiando o pai, dando-lhe o necessário amparo moral. O padre e o delegado pedindo calma, nada mais poderia ser feito dado o fato. Bento agira como deve agir um homem, e que eles tivessem piedade daquela Messalina.
A Melodia continuou, progredindo cada vez mais, com seis rapazes valentes na lida, e quatro moças tomando conta da sede.
Mas nada no mundo fica encoberto. Um dia Bento morreu, e ao prepararem o corpo para o velório, a filha grita de horror. Todos acodem, e ficam sabendo a verdade.
Aí decidem que, se não eram irmãos por parte de pai, eram por parte de mãe, e que seria bobagem naquela hora levar o causo para o padre ou delegado.
E a Melodia continuou sendo uma fazenda feliz. Se vocês forem lá, vão ver meninos louros e morenos, clarinhos e retintos, todos primos ou irmãos. Mas se vocês tiverem a pretensão de escolher uma das moças ainda solteiras para casar, saibam que os irmãos vão exigir que vocês exibam todos os documentos.
E não fiquem zangados, não. É só uma medida de precaução.