Manolo dirigia pela Afonso Pena acima, meio atento, meio absorto.
Belo Horizonte não parecia estar tão luminosa como sempre.
Coisas estranhas não eram infreqüentes na vida de Manolo.
Aquela sensação, que hoje reaparecera, já era em si, uma coisa muito estranha.
Alguém ultrapassou vociferando algo e repicando a buzina.
- Devo ter feito alguma trapalhada – pensou Manolo - com uma certa humildade.
A sensação estava se intensificando.
Manolo nunca conseguira defini-la nem qualifica-la.
Era algo difuso.
Mas esta maldita sensação era invariavelmente um mau agouro. Sempre que a sentira, alguém que lhe era querido se fora.
E a bendita sensação só desaparecia quando sabia da notícia ruim.
A primeira vez que a sentira tinha 12 anos. Estava na escola. Tão incomodado ficou que a professora o dispensou antes da última aula.
Ao ver de longe tantas pessoas em sua casa àquela hora, sentiu o peito sufocado.
Disparou a correr e foi seguro pelo irmão mais velho, antes que cruzasse o jardim.
- Nosso pai... – balbuciou o irmão.
Não precisou ouvir mais. A sensação foi se esvaindo em segundos.
E tantas outras vezes viria a senti-la, sempre desaguando na mesma coisa.
Uma irmã, um irmão, um camarada do serviço militar, dois tios, três tias, uma namorada, vizinhos mais chegados... já perdera a conta das visitas daquela hóspede indesejável.
Quem seria desta vez? Outro amigo?
- É, pode ser – sussurrou sozinho - o Osório não anda lá muito bom das pernas... e pior: anda fumando em excesso, tossindo demais. Rebelde, como sempre, nunca segue os conselhos médicos...
- Quem sabe – imaginou, mudando o alvo – pode ser Dona Judith, vizinha que sempre agrada com suas quitandas. Está bem envelhecida e tendo recorrentes problemas de saúde.
Repentinamente sentiu um choque! Lembrou-se da mãe.
- Faz 2 meses que não a vejo – balbuciou Manolo consigo mesmo – Coitada, aos 78 anos e ainda cuidando da casa.
Nossa! Precisava vê-la, rapidamente. Se for por ela esta nefasta sensação, não viria a sentir remorso pela ausência prolongada. Sentiria a dor da perda, o que já seria muito.
Manobrou o carro um tanto afobado, saiu da Afonso Pena, pegou a Avenida do Contorno seguindo direto até à casa da mãe.
- Velha teimosa! – Pensava enquanto estacionava o carro - No Bairro da Floresta era uma das duas últimas casas com moradores. Todo o resto virara comércio ou dera lugar a edifícios.
Abriu-se a porta.
Entrou beijando a mãe com carinho. Ela lhe pareceu estar bem. Aparentava boa saúde.
Sentados, Manolo meio esparramado no envelhecido sofá grená, olhava para a mãe com alívio por vê-la bem.
Notava agora detalhes dela que nunca notara antes. Tinha o rosto um tanto alongado, a boca era um corte horizontal mas ainda carnudo para a idade. Alguns fios de cabelos brancos haviam conseguido escapar da tintura que ela insistia em usar... velha vaidosa!
De repente a mãe parou de falar. Manolo teve um pequeno sobressalto ao retornar de seus pensamentos. Por um momento ficou com a impressão de que a mãe o olhava com um olhar diferente. Um triste olhar, meio que de despedida. Sentiu um leve calafrio quando notou aquele olhar. Por um breve momento teve a certeza que seria ela.
- Vou fazer um café – disse a mãe se levantando, ainda ágil – Vamos para a cozinha.
- Mãe! – ponderou Manolo – posso fazer algumas ligações telefônicas daqui enquanto faz o café? Depois darei uma ajuda na conta.
- Que isto, meu filho? Telefone à vontade e não se preocupe com a conta. Já já trago um café quentinho.
- Obrigado – agradeceu Manolo - puxando para si a mesinha com o telefone.
A amaldiçoada sensação continuava forte. Manolo estava sentindo a alma muito inquieta.
Ligou para Marina. Estava melhor que nunca.
Osório estava de licença médica. Ligou para a residência. Apesar de tossir feito uma locomotiva à carvão, ele insistia que estava bem. A voz rouca e enfraquecida dizia o contrário.
Dona Judith deu gritos de alegria com a ligação. Reclamou da ausência. Prometeu deliciosos biscoitos. Estava é muito bem. Efusiva mesmo.
E as ligações foram se sucedendo...
Manolo já perdera a conta das ligações quando a mãe retornou com o café.
Terminado o café, levantou-se, beijou a velha com afeto e saiu, sentindo-se bem mais leve. Não que excluíra a mãe de suas suposições. Poderia receber a notícia a qualquer momento. Aliviado estava por have-la visitado.
Lembrou-se dos amigos ausentes.
Nathália se bandeara para os EEUU e poucas notícias dava. Natal, às vezes.
O inquieto Francisco Teixeira, o “Chico Pimenta”, que de tudo reclamava, especialmente do governo, do país, de sua cidade, de seu bairro, de sua rua...
Chico era brigado com a humanidade. Sempre agressivo e estressado, brigava no trânsito, vivia correndo e comendo muito mal. Ah, Que vida tinha o Chico!
Um dia jogou tudo pra cima e foi tentar achar o lugar perfeito no Peru. Coisa do Chico mesmo, logo o Peru! Deve estar reclamando que peixe é uma comida horrorosa e pegando no pé dos filhos dizendo coisas assim: - Vim para cá no sacrifício, por causa de vocês e vocês não querem nada com a dureza. Foram mal acostumados. No meu tempo....
- Ah, meu Deus – pensou alto Manolo - Esse “no meu tempo” é a coisa mais idiota que já vi.
Trocava mails com Chico muito espaçadamente. Um por ano, talvez.
Recordou-se de Celso, o Vaselina. Entregava a vida para ficar bem com todos. De elogios fáceis, sempre afetuoso e fazendo enorme força para parecer delicado, polido, educado e atencioso. Teria sido um político de sucesso.
Meteu-se num projeto na Zona Franca de Manaus e por lá está enfurnado até hoje. Costuma ligar de quando em vez. Tremendo pai coruja, fala o tempo todo sobre os filhos. Um bom amigo, mas aquele assunto monocórdio dava uma tremenda canseira.
E a empedernida sensação continuava intensa.
- Que posso fazer? – perguntou Manolo a si mesmo – vai acontecer de novo, nunca falhou, é inevitável – consolou-se.
Olhando o relógio verificou que já passara das 18:00h. Não voltaria mais ao trabalho.
Essa era uma das delícias de ser executivo em multinacional. Desde que se dêem os números que querem, horário e presença física passam a ser apenas meros detalhes.
Direto para casa.
Manolo morava só. Solteiro por pura opção.
Via nisto muitas coisas boas. Uma era não ter horário para entrar nem para sair.
Na verdade Manolo detestava horários, amava a liberdade pessoal e adorava viver assim.
Seu Joaquim, o porteiro lhe doou um vasto sorriso e se aproximou:
- Ei Doutor! já ligaram para o senhor 3 vezes hoje. E sabe de onde? Do Peru! Uma mulher de voz bonita... olha o número aqui – disse - estendendo-lhe um papelzinho amarelo.
Manolo sentiu-se empalidecer. Gelou-se.
Recostou-se no fundo elevador, depois de apertar o número 16.
Respiração acelerada, pulsação alta, pernas trêmulas: - Eu sabia, eu sabia, eu sabia... – murmurava.
Subiu carregando consigo a enorme e desconfortável sensação.
Rodou a chave uma volta. Porta não cedeu. Rodou a Segunda, afobado. Abriu.
Fechou a porta com cuidado e virou-se para caminhar rumo ao telefone.
Sofreu um enorme susto: havia um cavalheiro, elegantemente sentado no sofá individual.
Magro, alto, trajava roupa de talhe finíssimo. Terno, camisa, gravata, meias, sapatos, colete... tudo branco. Um branco resplandecente e cintilante.
Antes que Manolo conseguisse sair de seu torpor, o cavalheiro levantou-se com um afável e sereno sorriso nos lábios. Como alguém vindo diretamente da Idade da Elegância, estendeu delicadamente as duas mãos para Manolo.
Manolo sentiu que a sensação se esvaíra.
Depois, a escuridão...