Foi pelos meados da década de sessenta que o doutor Elton Fagundes de qualquer coisa, que vou omitir porque o nome da família é muito conhecido, arrumou seu primeiro emprego. Recém formado em engenharia de minas, sonhava com um grande emprego, mas ficou feliz com o que achou, o de rodar o sertão baiano e adjacências procurando um certo minério.
Seu trabalho basicamente era o de dirigir um velho jipe e coletar espécimens. Uma pedra aqui, e anotava cuidadosamente as coordenadas do local, um pedaço de rocha ali, e tudo ia para o papel, cuidadosamente. A cada semana, se estivesse perto de algum local onde houvesse correio, mandava a encomenda, um monte de pedras e o relatório.
E o dinheiro, o suado salário, era recebido a cada vez que ia à capital.
Ficar em hotel, nem pensar! Tinha medo dos carrapatos, das baratas gigantes, e principalmente da água. Em suas andanças, pouco saneamento básico tinha visto, e assim preferia viver de frutas, descascadas, e de comida em lata. Água, só mineral.
Após dois anos nesta vida, já conseguira o suficiente para pensar em se casar com Cacilda, construir uma casa agradável, e conseguir um emprego na cidade. Por isso resistia.
De noite parava o jipe, armava uma barraca, acendia um bom fogo, e preparava a comida, que muitas vezes era apenas sardinha com farinha e bananas.
Banho, só de rio.
E foi numa destas noites que o doutor Elton, após jantar, deitou-se na cama de campanha, e pensou em dormir até ao nascer do dia. Em geral o fogo espantava as onças, pequenas, e as raras cobras. Era uma noite estrelada, e ele deixou a barraca meio aberta, para apreciar o céu, e pensar na Cacilda.
Estava entre dormindo e acordado quando viu o primeiro homem, um caboclo curtido de sol, chapéu de couro, olhando para ele e apontando uma arma de cano longo.
Elton tentou dar um pulo, quando viu mais três.
―O senhor é doutô? ―o sertanejo perguntou com voz firme.
Santo Deus, será que ele tinha feito algo de errado? Procurava não interferir em nada com a vida daquele povo sofrido, evitava pegar até um umbu num umbuzeiro, para não se dar mal...O que teria feito? E o que devia responder?
―O senhor é doutô?― o homem insistia.
Elton resolveu ser mais macho. Afinal, tinha a consciência limpa, por que se apavorar?
―E posso saber o porquê da pergunta?
―Vai falando, moço, eu não tenho tempo, é doutô ou não é?
Elton pensou que dizendo que era doutor, aquelas quatro personagens teriam mais respeito por ele. Daí foi firme em sua resposta:
―Sou, sim senhor, e com muito orgulho !
O homem que apontava a arma sorriu satisfeito.
―Então, o doutô vem comigo.
O engenheiro se pôs em pé, e arriscou?
―Para onde? Por que? Posso saber?
―O senhor não disse que é doutô? É ou não é?
―Soi sim ! E dos bons !
―Pois então, pode pegar sua malinha com os ferros, e vamos indo !
Elton pensou que estava num pesadelo. Sardinha estragada, coisa de lata, bem que a noiva tinha recomendado.
Mas o pesadelo estava lá, apontando para ele a arma, com mais tres que traziam as peixeiras na cinta.
―E onde é que está sua mala, homem de Deus?
A voz do sertanejo estava mais calma.
―Tem três dias que minha mulher tá sofrendo, agora vamos andando que é meia légua só.
Elton tremeu. Então era isso ! Pensavam que ele era médico. Tentou consertar o mal entendido.
―Meu amigo, o senhor está cometendo um erro. Sou doutor sim, mas doutor engenheiro. Não sei nada de medicina. Sou outro tipo de doutor.
―Olha aqui, moço. Você respondeu que era doutô, e agora está querendo escapulir? Ou vai ou morre ! E de que tipo de doutõ que é não me interessa.
Na iminência de um grande perigo, qualquer um é dentista, médico, mecânico, seja lá o que for. O melhor é tentar fugir depois, porque ninguém de juízo perfeito enfrenta quatro sertanejos no meio da noite.
―Está bem, vamos lá, disse, enquanto colocava numa pasta o compasso, uma pequena pá, uma pequena picareta, régua, esquadros. Na pior das hipóteses, uma picareta serviria de arma.
E lá se foram pela mato a dentro, o doutor Elton, o marido da mulher doente, e os outros três que nunca se soube se eram ou não mudos.
A casa feita de adobe era mal iluminada a querosene, e lá dentro duas mulheres rezavam, enquanto mais duas atrapalhavam a sertaneja, que gemia em cima do catre, com a barriga de nove meses.
Foi aí que ele quis fugir mesmo! Um parto ! Tudo pelo amor de Deus, mas um parto? Se fazer passar por doutor médico numa outra circunstância, ainda era possível, mas dar conta de fazer uma almazinha sair de dentro da mãe.... E se ela morresse? E se a mãe morresse? A resposta era clara, ele morria também, que dúvida...
E não tinha mais escapatória. Era morrer ou morrer. Pensou em todos os sacrifícios do pai para mantê-lo na escola, pensou na mãe, orgulhosa do filho doutor...Ah, que horror, nem era bom pensar agora na palavra doutor...
Sem nem ver como, foi deixado sozinho no quarto com a mulher, e as outras duas que, seriam parteiras....?
O marido ficou à porta. Para qualquer emergência. Não sem antes falar:
―Maria Madalena, agora você tem cuidados de doutô, pode se aquietar...
Elton tinha que pensar rápido, e só conseguia pensar numa coisa. Inteligente ele deveria ser, senão não seria engenheiro. Puxa, quem tem competência para um curso pesado como o que fizera há de ter inteligência para pensar numa solução. Fazer o parto, nem pensar, pois ele nem tinha idéia do que fazer.
Mas Nossa Senhora do Bom Parto foi generosa com ele e com a coitada da Maria Madalena. Uma idéia !
Virou-se para as duas outras mulheres e perguntou:
―Vamos lá, me falem como está a situação.
As duas quase se atropelam querendo falar com o doutor. Mas foi o suficiente para ele saber que as duas eram parteiras de longo curso. Assim, a referida Nossa Senhora colocou-lhe palavras na boca.
―Tudo bem, as senhoras estão procedendo corretamente. A senhora, dona Madalena, espere só mais um pouquinho, que já vai ouvir os berros....( Que não sejam os meus, ainda pensou...)
Agora eu quero que deixem a dona Madalena descansar um pouquinho, que a natureza e eu tomamos conta, mas fiquem aqui para me ajudar...
Tudo o que ele sabia de parto era o que vira em filme americano, e sabia que as tais contrações iriam ficando cada vez mais próximas uma da outra.
Fez pose:
―Como é que estão as dores? perguntou à parteira mais velha.
―Assim, assim, disse a velha...
Não disse muito, pensou...
―Pois agora vamos olhar pelo relógio, e enquanto isso, podem ir esquentando a água.
Não fazia a menor idéia de para que serviria água fervendo num nascimento. Mas achou que era uma boa idéia dizer isto.
A velha saiu para mandar as duas rezadeiras ferverem água, e o marido cochichou:
―Como é que tá indo?
E a parteira:
―Ói, seu Clodomiro, com doutô junto, num há minino que nun vingue...
O sertanejo lançou-lhe um olhar confiante.
E Deus ajudou, acredito que porque queria para Elton um destino melhor que morrer no meio da noite, no sertão, se passando por médico. A natureza ajudou, Madalena pariu um caboclinho gordo, berrando que nem um bezerro.
A companhia de pesquisas minerais teve que arrumar outro engenheiro...A moça do cartório estranhou o nome do menino, Doutô Elton, mas gosto dos pais não se discute.
O doutor Elton foi escoltado de volta à barraca já convidado para o almoço do dia do batizado, ao qual não compareceu, pela razão simples de que mal o sertanejo e sua turma desapareceram de suas vistas, ele usou o resto do estoque de água mineral para se lavar da melhor forma possível, queimou a calça e a cueca, o motivo é óbvio, e engatou a primeira no jipe, pegando todos os caminhos mais rápidos para se escafeder dali para sempre.