Olavo, desde sempre, fora mau. Invejoso também era. Chegava às raias de dar um presente a alguém só para depois roubar a pessoa, não sossegando enquanto não tivesse de novo para si aquele mesmo objeto de que se desfizera. Desde criança, foi inventando das suas, sorvendo os sorrisos dos lábios dos outros meninos, tragando o gosto de dizer “sou feliz” dos seus colegas repetidores de tabuadas na escola. Como se bebesse toda a felicidade no ar que o rodeasse para depois esvaziá-la toda na acústica solitária do banheiro.
Nessa época, aproximava-se dos outros meninos para destruir-lhes os brinquedos ou infernizá-los com piolhos despejados nas cabeleiras - dali a uns dez dias, era um tal de menino tosquiado caminhando desmilingüido por tudo o que era parte. De fazer dó.
Se para os meninos o cabelo raso era uma vergonha porque aquela carequice era o sinal mais evidente da piolhada abundante, para as meninas então, o corte de um simples palmo no comprimento do cabelo já era uma catástrofe. Ah, toda menina sempre há de adorar um cabelo comprido!
Desta vez Olavo pressentia o sol brilhando bonito, quando riu para si: “Olavo, você é ruim de doer! Tão ruim, que é bem capaz de sair da sombra e ficar debaixo desse sol todo só para se castigar!”. Mas não, Olavo não ia se dar castigo nenhum nada, que não era bobo. A Maldade lhe mostrava os dentes e rugia sob o sol a pino. Fosse insolação o quê! Não gastou Olavo procurar uma resposta aos ganidos do cachorro, bicho bobo, uivando à luz vermelha do sol, para tantos no mínimo um presságio. Não para ele. Continuou buscando no seu pensamento alguma coisa para se divertir. Veio a primeira imagem: Aninha, a menina sardenta, a dos cabelos vermelho-fogo, a dos dentinhos brancos, a dos vestidinhos engomados, nojo! Bem que a menina pedia uma reprimenda por se fazer tão doce, tão bela, tão menina. Meninas, eis outro problema! Para que elas? Para estragar brincadeiras, para rir cacarejando, para usar lacinho nos cabelos, só para isso e nada mais. Este mundo tinha tanta coisa com pouca ou nenhuma serventia. Para que certos penduricalhos? Mas, por outro lado, sem as arestas, o que restaria de magma? Tudo tinha um lado tão ruim e tão feio, que a vida mais parecia era um jegue pejado de tonelada de despojos, clope-clope-clope, num andar sem fim, até o abismo final. Cabelos! Malditos cabelos! Arames que nos pespontam, Deus brincando de fazer do homem um bonequinho de sabugo de milho. Ridículo era o homem.
Olavo tinha lá sua razão. Todo problema carecia de uma solução trágica, para cauterizar o mal de uma vez por todas, como fizeram com seu pai quando mordido por um gato raivoso. Não colocaram um tição flamejante na ferida, até matarem o mal e libertarem a cicatriz de lembrança? Qual seria o melhor castigo para amansar a fera que sorria por todos os olhos da Aninha? Desta vez, o estoque de maldade do garoto compactou-se numa única e poderosa flecha mortífera. Que estratégia usar com sua vítima? Maldades, lá muitas havia, mas sabe que não é fácil assim engendrar uma maldade ao talhe do sujeito? Que gente há que tem a cara-limpa de agradecer a doença que lhe vem, uns loucos por aí até agradecem a Deus suas desditas, vê!
A culpa agora era do sol, que brilhava demais, obrigando Olavo a se esconder à sombra da árvore. E que menino vai ficar deitado quietinho sem fazer nenhuma arte? Afinal Olavo tinha suas desculpas naturais de ser criança, e disso sabia fazer uso muitíssimo bem.
Pois, de tanto cutucar, acabou achando um broto na árvore seca: ah, tinha sim um bom castigo guardado para Aninha! O castigo seria o maior da vida dela. Foi assim que, num dia quente sem movimento, Olavo foi atrás da dona que vendia perucas. À boca pequena, essa mulher tinha perigosos capangas que esperavam vítimas cabeludas na esquina de duas ruas suspeitíssimas. Ficavam aqueles homens sempre ali, predadores. Mas também por que as pessoas insistiam naquele caminho? A cidade inteira morria de saber que aquela esquina guardava o perigo. Aquela era a esquina dos carecas, todos sabiam desde sempre. Então, por que passar por ali? Acordar o destino é procurar encrenca na certa, e quem, mesmo assim, se aventura aos escuros, azar e tanto faz. Olavo já tinha de antemão era uma boa justificativa para sua maldade. O saldo estava para lá de positivo. Nem pecado chegava a ser. Na Esquina dos Carecas, os capangas de Dona Guiomar faziam assim: um agarrava a vítima por trás, tapando-lhe a boca, o outro, com uma tesourona, cortava-lhe o cabelo até os tocos. Todo o feixe roubado ia para a perucaria da Guiomar.
E que tal Aninha de careca? Será que teria pintinhas também no couro cabeludo? Era pagar para ver. Ai, meu Deus, pura inveja de Olavo, saco sem fundo, o pior ladrão, o que tão-somente rouba para matar a mais remota alegria dos olhinhos do companheiro, agora o violador das mais secretas alegrias de uma menina. Um verdadeiro sacrilégio, crime sem perdão.
Como foi que aconteceu: lá vem Aninha, com seu pirulito, pulando fogosa, que nem cabrito. Duas marias-chiquinhas apertadíssimas esticam-lhe as sobrancelhas e os olhos. Pensando bem, a menina era um terreno fértil para toda sorte de maldades. O sujeito podia escolher por onde começar. Olavo, mau e meio, à espreita, não achou suficiente armar a cilada, ainda quer assistir ao espetáculo de camarote. Apostara com a menina que ela não teria coragem de correr por aquelas ruas perigosas até atingir a mais alta catacumba do cemitério e abrir os braços em cruz.
- Ganho o quê? – quis saber.
- Uma caixa grande de pirulitos variados, todos os sabores.
- Então me mostre antes.
- Tenho ainda de comprar.
- Pois compre então, quero só ver.
Dali a pouco:
- Aqui está.
- Três pirulitos em adiantamento.
- Ê, sua esperta, aqui estão, mas nenhum mais, hem?
- Tá.
O caminho traçado foi um que incluía o morro do cemitério, rua difícil de subir, que morria no cemitério. Tudo estratégia para Olavo dobrar a primeira esquina e pegar um atalho até a junção das ruas onde se desenrolaria o “homicídio”. Que o desinfeliz ainda queria assistir ao espetáculo de camarote.
Aninha, nem aí, já sumiu no beco rumo ao morro do cemitério.
Agora Olavo está atrás dos dois homens que fumam e murmuram suas coisas, assuntos que parecem rotineiros, como a tarefa que terão de cumprir daqui a pouco. Esses homens magros são mais homens do que todos os outros deste mundo, têm um jeito de quem sabe de si, uma resignação própria de quem conhece a verdade e por isso desdenha dos entremeios. Como aqueles capadores de porcos, acostumados a seu ofício. Vendo-os executarem seu serviço nunca se dirá de estarem praticando algum mal. Uma cara de mansos e puros.
Um dos homens tinha um tufo no bolso de trás – devia ser a famigerada tesoura de cabo dourado. A menina está perto. Mais alguns pés-de-moleque, chegará ao seu alvo. O outro homem coça a nuca displicentemente. A menina parece o chapeuzinho Vermelho, tamanha a inocência de quem não sabe que, dali a pouquinho, será ferida no seu mais íntimo coração. A ladeira é dura de subir, o sol queima para burro, o fôlego é falto, os pés doem e o gosto cítrico do pirulito mistura-se a um suor de céu de boca, saliva grossa de um esforço que transforma o caldo açucarado numa sopa melada de laranja, enchendo a boca sem descer goela abaixo, porque a respiração não deixa. Aninha só tem olhos para o seu alvo. Ela também, o alvo. Mas seus olhos querem enxergar logo o cemitério, e vislumbra desde já uma bandeira branca sorrindo lá de cima da mais alta catacumba. Por que não trouxe algum saco vazio de farinha para pendurar no pau de cerca? Mas pode enxergar a “sua” bandeira, um estandarte rebrilhando no topo do cemitério: Olavo, ganhei a aposta.
Os dois homens se despedem de seus antes. Jogam os cigarros acesos ao chão, massagam-lhes com o bico do sapato e dão passinhos curtos como se entrassem no mundo da menina e quisessem conquistá-la falando sua língua. Uns marmanjos daquele tamanho arrastando pezinhos. Mas é assim que fazem. Não dão dez passos, Olavo observa da greta privilegiada do armazém tem-de-tudo do Seu Inácio, acercam-se da menina e travam com ela algum diálogo. Qual será o tom de uma conversa numa hora dessas? Olavo pressente o desfecho e se enleva em sua maldade, com o que vem daí a pouco.
- Sai daí, menino, quase derramei água fervendo na sua cabeça! Vá procurar que-fazer.
- Seu Inácio, eu estava olhando aqui...
- Não quero saber o que olha, quero é que caia fora, que esta rua é perigosa, é uma rua morta, de aventureiros, desses homens do garimpo, não é bom para menino não.
- Só mais um pouquinho, Seu Inácio.
- Casca fora!
Desconsolado, Olavo desce o alto degrau do armazém de seu Inácio. Nem sinal dos homens, tampouco da menina. Perdera um pedaço importante do teatro. Mas ainda restava a cara espantada da menina, com sua careca deslavada, disso sabia. Paciência, ainda era tempo de rir de barriga para cima.
Contando cada pedra fincada no chão, lá vai um menino descendo a rua, assobiando de prazer ante a perspectiva do mal que terá cometido.
De repente, um choro sofrido e fino vindo de um beco. Será Aninha? Olavo se apressa em direção ao lugar, coração batendo acelerado. É ela, sem dúvida. E ruivinha da silva. Qualquer um pode notar a decepção na cara de Olavo. Os temíveis cachinhos de fogo de Aninha continuam intactos ao sabor do vento. Mas por que então ela chora?
- Não consegui chegar ao cemitério, Olavo.
- Mas, e os dois homens que...?
- Ah, você já sabe? Aqueles horrorosos me cercaram na subida do morro do cemitério, Olavo, eu já estava pertinho, e me disseram que era perigoso andar sozinha naquelas ruas. Não me deixaram continuar o caminho. E eu já avistava o cemitério tão pertinho!
- Mas não tentaram cortar seu cabelo, nada?
- Nada não, bobo, isso é de mentira. O povo que inventa. Pelo menos um pirulito você me dá? Afinal cheguei até aqui.
- Não, nenhum mais.
Nunca é tarde para uma boa maldade. Olavo não ia sair dessa de mãos abanando. Comprimiu entre os dedos o plástico barulhento do pirulito, rasgou toda a embalagem e jogou-a no chão, o plástico executando um bailado lento e gracioso até chegar às pedras pontudas e voar de novo com o vento que recomeçara sua cantiga. Os olhinhos de Aninha acompanhavam cada movimento de Olavo. E o menino fez questão de todo o ritual: lambeu o pirulito o quanto quis, depois, num gesto de posse, abraçou a caixa cheia de milhares e milhares de pirulitos multicores de multissabores e foi descendo a ladeira. De longe, o chorinho miúdo de Aninha foi ficando para trás, para trás. Um cachorro magro metido embaixo do banco da praça pôs a língua para fora e abanou o rabo. Olavo procurou uma pedra. Mas ali as pedras eram fincadas no chão, não havia nenhuma solta para quebrar a cara do cachorro. Paciência, paciência. Abaixou-se e pegou um jornal sujo de poeira, à toa, bem assim como fazem esses moleques que catam tudo o que é porcaria no chão, sem pretexto. Assim mesmo. A manchete rajada de poeira dava aviso de um crime muito violento, terrível mesmo, ocorrido numa dessas cidades enormes e modernas que só existem na televisão. Olavo fez um aviãozinho do jornal sujo e lançou-o de manchete para cima na direção do vento, sempre agarrado à sua caixa de pirulitos. Neste momento não tinha um sereno de disposição para meter o pé na cara do cachorro, que o seguia, manso.