Rosana era uma menina que tinha tudo para ter o mesmo destino de sua mãe: casar e tornar-se uma simples dona de casa. Era filha de um operário da construção civil. Seu pai não possuía emprego fixo e vivia pulando de um bico em outro. O salário era sempre baixo, mal dava para alimentar a família.
Sem dinheiro para pagar uma moradia descente, viviam num minúsculo barraco na favela onde todos, os pais e os três filhos, dormiam no mesmo quarto – se é que poderíamos chamar aquilo de quarto.
Além da constante miséria, da promiscuidade inevitável nesses casos, Rosana ainda era obrigada a sobreviver em meio à constante violência. Assassinatos, estupros, espancamentos faziam parte do cotidiano dos moradores daquela favela. Infelizmente ela foi obrigada a crescer naquele ambiente desfavorável. Isso, porém, não a impediu de se tornar uma bela jovem de 19 anos.
Apesar de ter freqüentado a creche nos primeiros anos e estudado numa das escolas com o pior nível de ensino da cidade, conseguiu adquirir um aprendizado superior aos de seus colegas de escola. Contudo, seu futuro não era promissor.
Após a conclusão do ensino médio, inevitavelmente teria que parar os estudos e se atirar ao mercado de trabalho ou a um casamento sem perspectiva alguma de melhoria nas suas condições.
Rosana não era bonita, sua pele negra, marcada pela catapora a impedia de usar os atrativos da beleza para mudar o seu destino. Apesar de contar com 19 anos, tivera poucos namorados. E os poucos rapazes que se aproximavam dela, na verdade, não queriam nada sério. Tencionava tão somente acrescentar mais uma a lista de garotas que haviam seduzido. Viam-na apenas como um objeto sexual. Nada mais. Devido à falta de beleza, achavam que se entregaria ao primeiro só para estar com um homem.
Quando começou a sair com alguns rapazes, de início não percebeu isso. Nem mesmo quando era procurada por rapazes bem mais velhos e até por homens maduros. Nem mesmo quando eles insistiam num envolvimento mais íntimo já no primeiro encontro. Era inexperiente e achava que os homens eram assim mesmo. Por sorte, ela resistiu por algum tempo, até que encontrou alguém esperto o bastante para seduzi-la.
Perdeu a virgindade contra a vontade aos 15 anos para um rapaz que conhecera ali mesmo na favela. Ele tinha 27 anos e, muito experiente e conhecedor da arte da sedução, deflorou a menina num barraco abandonado poucos metros de sua casa.
Foi uma experiência terrível que lhe deixou marcas profundas. Nunca fora capaz de esquecer a dor em suas entranhas dilaceradas. Após ser abandona seminua no chão empoeirado e frio como se fosse algo que perdera sua utilidade, sentindo muita dor, com o coração minúsculo, olhos vermelhos e soluçando silenciosamente, ela foi tomada por um pavor maior ao ver o sangue fluir do meio de suas pernas. Ficou chorando por quase uma hora, até que conseguisse se acalmar e ir para casa.
Daquele dia em diante, jurou para si mesma que nunca mais seria objeto sexual de homem algum. Nem que para isso tivesse que se abster de qualquer sentimento afetivo em relação ao sexo oposto. E aos 19 anos ainda mantinha a sua promessa.
Certo dia Rosana estava as sós em casa. Estava acostumada a passar quase todos os dias sem uma companhia. Sentia-se oprimida e inquieta por causa de sua condição. Não se conformava com o seu destino. Então se pôs a pensar:
“Deus criou um mundo tão maravilhoso, com tanta coisa bonita, com uma natureza tão harmônica! Como pode? Ao mesmo tempo, criar o homem tão diferente disso? Por quê o homem é assim? O que o difere dos outros animais para ser assim? Só pode ser a inteligência. É isso! A inteligência! Deus deu a inteligência ao homem para usa-la em benefício de sua espécie, mas, ao invés disso, ele a usa em benefício de si mesmo. Graças a inteligência, o homem se tornou orgulhoso, ambicioso, violento e tudo mais de ruim que possa existir. Graças a inteligência o homem subjuga o seu semelhante, maltrata os animais, inventou as cidades e os países para se guerrearem. Nenhum animal maltrata o seu semelhante, não mata por motivo fútil feito o homem. Nenhum animal é dotado de tanta crueldade como o homem. O requinte de crueldade de algumas pessoas é capaz de chocar a até mesmo o coisa ruim.”
Rosana estava deitada em sua cama, olhos fixos no teto, absorta em seus pensamentos. Sabia que não poderia fazer nada para mudar o mundo, por isso sentia-se ainda mais oprimida. Uma sensação de impotência, de nulidade a envolvia de tal forma que a vida não passava de sofrimento. Viver era sofrer. Vivia naquele mundo sofrido, desesperançado que era a favela, e aquele meio a influenciava em todos os sentidos.
“Estou aqui pensando nessas besteiras, com tanta coisa para fazer. Não adianta de nada eu ficar pensando nos problemas do mundo. Não vou conseguir resolve-los mesmo! Além de que, não fui eu quem os criou. Quando eu nasci, já estavam aqui. Quando eu morrer, vão continuar. A vida é assim mesmo. Desde que o mundo é mundo, que as pessoas são assim. Mesmo nos primórdios da civilização, quando ainda éramos um primata o homem já esboçava essas características. No momento em que começamos a nos diferenciar do macaco, tornamo-nos egoístas. O egoísmo e a maldade fazem parte da inteligência. Quanto mais inteligente uma pessoa, maior será sua capacidade para a crueldade. Sua crueldade não é falta de inteligência, é tê-la em demasia”, continuava ela em seus devaneios. Devaneios que a fazia se sentir melhor.
“Quando aquele desgraçado me violentou, soube muito bem usar sua inteligência para me seduzir, me levar para um local abandonado e me violentar. Ele sabia que ninguém ia aparecer. Ele tinha um objetivo e pensou em tudo para que seus objetivos fossem alcançados. Ele não me levou ali por acaso e por acaso me violentou. Ele deve ter me seguido, deve ter verificado se não havia ninguém por perto, deve ter escolhido o lugar e executado o seu plano. Se não tivesse inteligência, não seria capaz de fazer isso, porque não ia planejar. E mesmo que eu fosse violentada, sem inteligência, eu não estaria sofrendo com tudo isso agora, não estaria nem pensando nessas coisas. Nem adquirido medo de me envolver com alguém e estaria simplesmente levando a minha existência. Por isso acho que a inteligência é culpada de tudo...”.
Súbito, algo novo aflorou em seu cérebro. Seus pensamentos começaram a perder o sentido e a importância. Sem que ela soubesse o porque, eles tomaram um novo rumo. Então, ela já não pensava mais daquela forma.
“Quer saber de uma coisa? Ficar pensando aqui é que não vai adiantar em nada. Vou levantar, pegar as minhas coisas e sair daqui. Vou deixar tudo isso para trás, vou deixar essa vida e vou atrás de uma nova vida...”, disse ela consigo mesmo, enquanto se levantava. Foi ao velho guarda-roupa, pegou as poucas vestes que possuía, enfiou numa mochila desbotada e costurada e escreveu um bilhete de despedia para a família.
Queridos pais e irmãos,
Cheguei a conclusão que aqui neste lugar não terei futuro algum. Serei sempre mais uma favelada vivendo à margem da sociedade. Desculpem-me, mas só tenho uma vida e se não fizer alguma coisa para ser feliz, não terei outra oportunidade. Estou indo embora tentar uma nova vida. Não se preocupem comigo, porque eu sei me virar muito bem. Se algum dia as coisas melhorarem eu voltarei para buscar vocês. Se não voltar, pode ter certeza que mesmo assim não me arrependi.
Amo muito vocês, mas preciso tentar...
Rosana
Dobrou o bilhete e colocou em cima da velha mesa de madeira sob um copo de vidro para não voar com o vento. Pegou a mochila e partiu.
“Vou sentir muita falta de vocês, e vocês de mim; mas a gente se acostuma. Ainda não sei o que vou fazer, mas encontrarei uma saída. Deus não nos deu a inteligência? Não temos o direito de usa-la da melhor forma possível em nosso benefício? Se não posso mudar o mundo, então é melhor se adaptar a ele. Se o mundo é assim, só me resta seguir as regras do jogo, caso eu queira continuar a jogar. ‘A vida é um jogo’, disse alguém. Então vou entrar no jogo. E vou jogar da melhor forma possível. Vamos ver até onde posso ir...”, pensou, sentada na poltrona 27 do ônibus que a levaria para o interior de São Paulo.