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Contos-->Fleuma -- 01/10/2002 - 11:02 (José Maurício de Oliveira Neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“Raiva nas trevas, o vento
sem se poder libertar
estou preso ao meu pensamento
como o vento preso ao ar.”

Fernando Pessoa


Era um recipiente raso, retangular, todo feito de vidro transparente e com quinas vivas. Cheio até dois terços de sua capacidade com água clara. Do lado direito uma luminária de pescoço longo e bojo vermelho clareava todo o ambiente. Do lado esquerdo, um bloco de papel pautado para anotações, lápis preto, borracha macia e uma pequena calculadora eletrônica. Na borda do tanque, preso por um grampo de metal, ficava um pequeno motor elétrico cujo fio de energia percorria as laterais do vaso e se conectava a uma pequena caixa com duas pilhas que alimentavam o engenho. Na caixa um pequeno dial possibilitava uma regulagem da quantidade de corrente elétrica que trafegava no fio, através de uma resistência variável. Ao motor prendia-se uma longa e curva aste metálica que numa perfeita parábola projetada pelo espaço, finalizava no centro geométrico do pequeno lago com uma esfera prateada.
Eu usava uma calça jeans “boca de sino” desbotada e rasgada no joelho, camisa de gola “rolê” por baixo de um jaleco branco, digo, “bege”. Usava uma pulseira onde brilhava um pequeno tridente de cabeça para baixo dentro de um círculo com a inscrição lateral: “Paz e Amor”. O jaleco era corroído na manga esquerda pela displicência juvenil e por ácido sulfúrico do laboratório de química e a distancia do sabão e da água o tornava extremamente fétido. A sala era arejada, clara e continha seis bancadas idênticas onde seis crianças de cabelos longos e despenteados aguardavam ansiosas os beijos das primeiras namoradas, as explicações do mestre e mais um acorde frenético de Hendrix contrapondo João Gilberto para iniciar o experimento.
O professor, dedicado e simpático, andava por entre os equipamentos, discorrendo sobre as maravilhas da física moderna ao que intercalava com algumas reflexões relativas a experiência do dia, onde estudaríamos os efeitos das ondas e suas refrações e reflexões relacionando-as posteriormente com as características das ondas eletromagnéticas, sensuais, luminosas, políticas, sonoras e sentimentais, com postulados de Krishnamurti e David Bohm, preparando assim a salada fria que anunciava o prato principal de uma geração convalescente dos exílios e torturas.
Ao acionar o motor elétrico, a esfera que pairava acima do centro do lago se aproximava do espelho d’água e tocando-o provocava uma onda circular que crescia e se afastava de seu centro, diminuindo sua força e sua crista a medida que se aproximava das laterais do recipiente. Novamente a esfera que nesse momento voltava ao seu ápice, tornava a descer até tocar a superfície do líquido formando uma nova onda. Formavam-se assim, círculos concêntricos, círculos que tinham mistério e movimento, que tinham início e fim, que tinham vida e tinham morte. Círculos cíclicos com cristas e vales, com invernos e verões, alegres e tristes mas sempre cíclicos. Os vales eram as sementes das cristas que geravam novos vales, que apesar de novos eram idênticos no tempo e no espaço. Mas eram sempre novos vales e novas cristas.
Usando equações matemáticas, pensávamos dominar aquelas pequenas ondas, descobrindo sua energia, sua altura, sua força, seu comprimento e usando “Lambdas e Deltas” construíamos mundos imaginários onde as fórmulas substituíam as gotas e os números reduziam a natureza a traços de grafite nas pautas paralelas do caderno de notas. Ali estava desnudado o enigma da alma humana, ali o ponto de partida para alcançar o universo. O professor acompanhava atento cada aluno e sua experiência, conferindo cálculos, orientando desvios e sugerindo saídas inteligentes para percalços do caminho, para transpor as pedras do caminho, e no caminho haviam pedras, como haviam pedras no meio do caminho. Era o tempo de Drummond.
Tudo transcorria como previsto e calculado a não ser por um instante, um breve intervalo de tempo, um lapso temporal quase insignificante onde um funcionário da escola bateu suavemente na porta, abriu-a, chamou o professor com um aceno silencioso, aproximou seus lábios calmamente de seu ouvido, murmurou algo inaudível aos nossos cérebros curiosos de criança e foi esperar do lado de fora do laboratório. O professor com muita serenidade e calma procurou com os olhos por entre águas, rumores, motores, curiosidades, luminárias, ansiedades, pilhas, sorrisos, osciloscópios, olhares e fios um rosto. Meu rosto. Aproximou-se devagar e me pediu para acompanha-lo até o lado de fora da sala. Desliguei cuidadosamente o motor. A grande aste parabólica foi diminuindo seu compasso numa medida inversamente proporcional as batidas do meu coração que aumentavam de velocidade com uma aceleração constante. A aceleração continuou até atingir uma velocidade limite onde minha respiração, ofegante, mantinha-se com dificuldade e minhas glândulas sudoríparas tentavam, em vão, regular a temperatura do meu corpo que oscilava procurando destemperadamente um equilíbrio.
Acompanhei descompassadamente o funcionário da escola que me escoltou até a entrada principal do prédio, onde meu irmão mais velho me aguardava acompanhado do pároco do bairro onde eu e minha família residíamos. Foram palavras curtas, enigmáticas e pouco sinceras. Nosso pai não passa bem. Nossa mãe nos quer juntos em nossa casa. As palavras decoradas e meditadas cautelosamente, escorreram secas pelos lábios trêmulos e adubaram lágrimas contidas nos olhos de meu irmão. O padre, nos encaminhou ao carro e dirigindo por entre palavras que só ele ouvia, levou-nos para casa num percurso longo. Longo demais. O maior trajeto percorrido em minha vida, onde o tempo perdera sua relação com o espaço e a velocidade distendia meu silencio.
Minhas emoções incontidas se dissipavam concêntricas e meu pensamento numa freqüência indefinida tocava minhas lembranças dispersando-as pelo espaço e revivendo-as pelos altos e baixos, pelas alegrias e tristezas numa película interminável que priorizava deliberadamente as cenas de meu pai. Ele ria, chorava, bebia, comia, cantava, brincava e dormia prostrado em sua cama. De terno, gelado, chorado. Nunca reparara como são belos os defuntos com suas faces tranqüilas e relaxadas. Nele, a tranqüilidade bem retratava a profundidade, prudência e calma de quando as águas corriam fortes enrolando moinhos.
Minha casa ainda possuía as mesmas paredes e quadros e quartos e camas e vísceras, mas as pessoas eram silenciosas e estranhas. Eram vizinhos, primos, tios, tias e amigos que repentinamente preenchiam nossa intimidade e me impediam de abraçar minha mãe que chorava baixinho e não me deixavam chorar com seus “não chores”, “é a vida”, “ele está com Deus”. Porra, eu queria era chorar ! E bem alto !
Uma onda de frio envolveu meu corpo e eu me calei. Minha mãe-de-misericordia-rogai-por-nós e minha irmã-que-recorremos-a-vós se debatiam num vale-de-lágrimas, meus irmãos se ocupavam com os preparativos mortuários e eu silenciava.
O enterro decorreu tranqüilo como manda o figurino, uns chorando contidos, outros incontidos, amigos com flores e velhas com velas e ladainhas, o padre rezando sua missa negra com seus óleos sacros e suas águas bentas, as carpideiras, o cimento vedando o concreto que o encriptava, as flores misturadas a terra macia, a procissão que desaguava na cova depois de refratar pelas catacumbas, a grande muralha de gavetas ósseas, eu fugindo por entre túmulos para tentar chorar sozinho. Mas nem uma gota umedeceu meus olhos.
Andei sozinho pelas ruas internas do grande cemitério por entre numes e demiurgos até transpor o portão principal que se enraizava em frente a entrada do velório. Lá dentro dois olhos negros de um grande amor pontuavam um rosto de pele macia e lábios sangüíneos que me atraíram e me tocaram sugerindo um consolo. Uma onda de calor anunciou instintos que, entre cristas, pulsavam genitores e gerados, anunciavam distancias entre vales onde brilhavam novas e quazares, anunciavam “lambdas” onde giravam mesons que rotacionaram meus olhos. Respirei fundo, deixei os amigos, a namorada e desci a ladeira que se esfregava pelo comprido muro do cemitério, uma rua iluminada por estrelas que vendiam seu brilho por um pedaço de tempo, de sexo e bares que ofereciam coquetéis de travesseiros ao som de luzes vermelhas. Vermelhas como o sangue, que nas suas idas e vindas, povoavam meus membros enquanto meu pai dormia. E eu descia a rua do cemitério, insípido e crasso.
Assim como o inverno é necessário para encubar as sementes do outono que germinarão e florescerão na primavera, o silencio e a solidão foram sementes e adubo, foram os vales que geraram as cristas da bonança. E com que felicidade chega a primavera! Com que alegria as ondas atingem a praia. E como foi natural dominar o tempo, cobrir o espaço e controlar a velocidade das afecções no laboratório da minha casa. Muitos ciclos se fizeram e muitos paradigmas se foram, enquanto o físico se debatia entre cristas e vales procurando uma formula para a felicidade e o matemático se perdia na perfeita e exata ilógica humana.
Passou a vontade de chorar, passou a criança, plantei sentimentos e germinaram novos corações. Dez anos depois eu aspirei forte e chorei num divã. Alto e em bom som. Que catarse !
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