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Contos-->SEM QUÊ NEM PARA QUÊ -- 01/10/2002 - 14:55 (MIGUEL ANGEL FERNANDEZ) |
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SEM QUÊ NEM PARA QUÊ
Mais pra gordinha, seios acima da média e traseiro arrebitado, sempre atraiu a atenção dos homens. Ela aprendera isso com a experiência, ainda adolescente; gostava disso e gosta. Descobrira essa atração e aprendeu a gostar de fazer o que todos eles desejavam fazer com ela. Um homem mais velho, folgazão de idade indefinida, vizinho no mesmo prédio de apartamentos onde crescera, lhe ensinara a arte; assim a ele se referia; ao sexo e ao quanto de divertimento podia encontrar nele. Nas horas extras, ensinou-lhe também a querer fazer, como uma ocupação exercida com talento voluntarioso. E o campo inicial de treino experimental foi no mesmo prédio. Depois de um bom tempo de muitos entretenimentos e poucos dissabores, foi através de línguas viperinas e ciumentas que chegou até os ouvidos do pai aquele adestramento com os moços do prédio. E os não tão moços. Como fulano, cuja esposa era dona de uma das tais línguas que alastrou a gota d água para justificar a banimento do convívio com seu pai, que, de tão severo e viúvo, preferiu lhe pagar o aluguel num outro lugar a ter de aturar o embaraço de ter filha assim. Assim? E ecoou pelas escadas: Desavergonhada!
Mas esses eram ecos respingando em águas passadas, coisas da juventude. Agora não; com o tempo e a vida, aprendeu a evitar alguns aborrecimentos, como esposas e doenças venéreas. E depois de dois abortos, jurou não deixar isso se repetir. Aos trinta e poucos anos, quando operou dos ovários, foi menos por tumor benigno e (secretamente) mais por sossego e lipo. Evitar contrariedades, as que podiam ser poupadas sem aviltar nem a si nem a ninguém, era um de seus slogans. O prazer, sua bandeira. Inclusive à(na) mesa, culpada pelos quilos a mais que às vezes alargavam sua cintura. Nada que dieta de alguns dias não conseguisse fazer voltar ao diâmetro da semana anterior.
Recebera religiosa e mensalmente dinheiro do pai, até este falecer. O imóvel herdado nem quis rever, contratou imobiliária para tomar conta. Preferia assim, um pagava o outro, e este, onde morava, metade em espaço e custos, esta diferença lhe proporcionava rendimento suficiente. Por que ela não era de gastar com frivolidades. Só e quando as contas ficavam apertadas demais, pedia ajuda a alguns amigos, homens. Que amiga não tinha nem nunca teve. Mas quando o fazia era por necessidade urgente, coisa rara. Devolvia em espécie. Mas no seu estilo, e eles assim preferiam: único, pessoal, divertido e discreto. Afinal, a maioria era de homens comprometidos. Coitados.
Ananita era assim, uma mulher quase pura, devassa, libertina, costumada em sexo e descomplicada.
Não tinha preferências muito exigentes a respeito da maneira de fazer sexo, da aparência ou idade da pessoa. A excitavam também as situações eróticas que podiam ser divertidas, às vezes mais compensadoras que a penetração propriamente dita. Como estimular homens dentro de ônibus apinhados, roçando o traseiro nas suas virilhas. Ou espicaçar os coitados dos garotos da vizinhança com a exibição de seus seios ao léu na sacada do apartamento. Lunetas brilhavam ao Sol e à Lua quando nua se pavoneava por elas. Ou fazer sexo oral nos locais mais curiosos ou perigosos de serem surpreendidos, ela e o dono do que tinha na boca:
na sala de um cinema;
na casinhola do vigia de prédio ou casa em construção;
atrás do balcão do zelador;
no descanso de escadas entre andares;
debaixo da mesa de um bar;
no ambulatório de fábrica;
na sala de consultório de médico/dentista;
no banco traseiro de táxis ou dianteiro, com o motorista do próprio. Estes, da mesma forma que os outros profissionais, cada um na sua área, nada lhe cobravam pelo serviço prestado. Ela era muito popular nos pontos de táxis na periferia de sua casa. Muitos deles, quando a vêem passar, fazem questão de oferecer-lhe carona.
Os técnicos chamados para concertar os mais diversos problemas da casa, a esses, ela seduziu quase todos. Menos um, que pediu para chamá-lo de Sarita.
O que arrumara o videocassete nada cobrou por isso: se contentou em assistir a um filme pornô bem junto dela;
o homem que deixou em estado de novo o aparelho de som, um tango sensual bem apertado com Ananita nua em seus braços, e não se fala mais nisso;
nem aquele que, depois de consertar o chuveiro, testou seu bom funcionamento tomando banho junto com ela. Enfim, todos consideram o sistema de pagamento muito satisfatório. Na sua maioria, telefonam de vez em quando para saber se está precisando de algum serviço novo ou revisão do anterior. E ela diz que sim, mesmo sem precisar, só para se divertir e alegrar o outro. A maioria homens infelizes de tão casados. Coitado, ela pensa, e responde "sim, pode vir".
Ananita era assim, uma mulher quase pura, devassa, libertina, costumada em sexo, descomplicada e popular. E puta, mas sem vergonha.
Mas...
Essa solidariedade entre ela e as pessoas iria mudar. Sem quê nem para quê, num abrir de pernas e fechar de olhos, um fim de semana inteiro passado com aquele homem não fora o suficiente. Tão feliz e encantada se sentira ao seu lado que nem percebeu o perigo, quando a segundafeira lhe fez sentir um vazio nunca antes sentido. Foi um dia que não existiu. Na terça, quando foi atrás dele procurá-lo, mastigando um pretexto qualquer, mesmo sendo a primeira vez a fazer isso, não se deu conta da gravidade da alteração que estava ocorrendo. Ao não encontrá-lo onde o conhecera, o aborrecimento foi tanto que bem poderia ter sido um alerta, mas ela dispensou o indício naquele mesmo dia, com uma risadinha e um "pode vir" a um técnico tão solícito como tesudo.
A quarta-feira não existiu.
A quinta-feira começou a doer logo de manhã. O Sol irritava: fechou as cortinas. O rádio e suas músicas pareciam chiados: desligou. O café, frio; o leite, natento de fervido; o pão, amanhecido; a margarina, sem gosto. Todos no lixo.
Almoço: arroz, feijão, salada e filé ao lixo.
Sobremesa: garrafa de vodka.
Ceia: o nunca experimentado tédio, porque impensado (não se dava conta Ananita, que era medo de aquele homem não a encontrar se ela saísse da casa. Ou então a encontrasse, sim, mas trepando com alguém. Por isso, e pela primeira vez, amigos e técnicos empedernidos ouvem como resposta: "hoje não vai dar". Começara, pela primeira vez, a esperar um homem. Específico.)
Graças à ansiedade de Ananita, a sextafeira deu um pulo e caiu atropelante no sábado de manhã. Daí, a seu mando, o Sol desapareceu do firmamento em poucos minutos. E a noite se ascendeu com a varinha mágica em forma de campainha, tocando uma nova música: em allegro vivace e cantabile. Seria ele atrás da porta, sabia. O corpo, coberto com seu vestido mais estimado e debochado, o anunciava com sua respiração anelante, o tremor nos joelhos, suas mãos úmidas, a língua umedecendo os lábios pintados, os olhos sem conseguirem se fixar em nenhum objeto em particular. Não era o bastante? Sem dúvida: deslizou até a porta, nem olhou pelo seu visor, apenas a abriu.
O homem estava lá. Com sorriso e garrafa em uma mão, na outra, uma flor vermelha.
Ananita, no esplendor da alegria, pegou a garrafa, cheirou a flor e beijou o sorriso. Específico.
Noite de sábado, o carnaval de volúpia, em todas suas formas, lavou os tédios e as aflições. E engravidou Ananita de alegria nova. E diferente, porque nunca degustada igual.
Domingo em allegro molto vivace, maestoso, segundo dia de carnaval.
Segunda-feira, a alegria foi abortada no momento de aperceber-se sozinha na cama ao acordar. Doeu. Depois, atarantada com a ausência, dormiu a ressaca até terça-feira.
Não teve terça-feira.
Na quarta-feira, medo. Agora nem mais atendia as chamadas: para quê? Amigos e técnicos obstinados continuariam a ouvir: "hoje não vai dar".
Quinta-feira de manhã: medo, solidão e promessa.
Quinta-feira de noite: medo, solidão, promessa e lágrimas.
Do medo: a dependência sempre evitada, instintivamente, mesmo sem conhecê-la.
Da solidão: seu corpo e sua mente sentem faltar pedaços.
Da promessa: acabar com a dependência.
Das lágrimas: por medo de não querer evitar esse sentimento, mesmo que doa, agridoce.
Então nasceu a pergunta fazendo chiado de pneumonia no seu peito: aquilo seria amor, paixão?
Ananita percebe estar só, pela primeira vez.
Quem vai lhe devolver o perdido?
Os coitados dos técnicos?
Os coitados dos motoristas de táxi?
Ou os coitados dos moleques vizinhos?
"Coitada é Ananita", pensa ela. "Ai...", suspira.
Sexta-feira nunca existiu. Evaporou-se na névoa da aflição.
O sábado e o Sol entram pela janela; igual a um flash barulhento, a luz acorda Ananita, e o sábado inunda tudo de expectativa. Dia do recreio.
Ananita toma banho, ouve música sem ligar o rádio, anda pela casa nua, se mostra pela janela para quem quiser ver, come, bebe, canta, dá uns passos de dança, mas sempre junto com sua nova companheira: a Expectativa.
A tarde vai caindo e Ananita, deitada na cama, está cansada de receio. E sua nova companheira, alimentada pela sua ânsia, fica mais forte a cada minuto. E, barulhenta! Se mete em toda parte, lhe serve bebida, lhe indica o quê vestir; atrevida! Lhe mostra a imagem no espelho e ri de seu corpo, debocha das banhas, dos seios caídos, do cheiro de suor. Chata! Lhe garante: ele não virá, porque ela está feia. Porque é uma puta sem-vergonha que não o merece...
Já é noite. Impertinente, sua amiga Expectativa vai se tornando agressiva, enquanto lhe serve constantemente mais bebida. E lhe canta a media voz:
Quem é esse cara? Onde, com quem ele vive, de quê? Que tem que ninguém tem? É lábia? É pau? É língua? Nem sabe! É o fim da picada! Tem coragem para lhe pedir para não mais ir embora quando o Sol raiar... ficar com ela para sempre? Aqui, nesta putaria mixuruca? Entende metade das poucas palavras que ele diz? Jurou alguma vez amor, paixão ou coisada assim? Prometeu algo? Responde, gorda ridícula!
Como resposta, Ananita jogou-lhe a garrafa vazia de vodka na boca escancarada e quebrou o espelho, depois desmaiou... ui!... sobre os cacos.
Silêncio em adágio.
Domingo, Ananita jogada no chão por cima dos pedaços do espelho, tão imóvel, parece morta. E tem sangue no rosto. Uma pequena poça debaixo do rosto serve de tênue travesseiro... Chega! Não vale. Fim do domingo.
Segunda-feira, ela está um caco, maior que aquele incrustado no seu rosto que ela arrancou aos poucos com a pinça de depilar. Mas deixou sua marca em cima do lábio, perto do narizinho. Apesar de seu esforço e vontade, fragmentos de sua agora inimiga se arrastam pelos cantos. Ela tenta ignorá-los. Cuida da cicatriz no seu rosto com curativo. É melhor assim. E coisa feia ficou.
"Coitada, Ananita", suspira ela. "Ai...", geme duas vezes.
Em poucos minutos e muita dor, já é noite e ela sai para a rua.
No ponto de táxi na periferia de sua casa, alguns motoristas a vêem passar, e perguntam: "Essa ferida na cara"; "Esse sumiço todo"; "Quem fez isso?"; "Quem é o cara?"; "Vai pro ambulatório"; "Se pego esse nojento"; "Sobe, eu te levo"; "Não viu? Coitada, nossa Ananita".
Quase madrugada volta do prontosocorro. Dói a ferida debaixo dos curativos. Dói o corpo. Os olhos. O peito. Dói até abrir a porta e entrar.
Deitada na cama, pergunta a media voz: Aquilo é amor, paixão?
"Ai...", suspira ela. "Como dói...", geme três vezes antes de dormir.
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Miguel Angel Fernandez©
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Miguel Angel Fernandez© |
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