Acordar no começo do dia e dar de cara com um amarrado de flores vermelhas. Emoção sem preparo, não lhe parece, dona Lia? Mas acorde, vá lá atender sua campainha e receber o presente anônimo. Flores vermelhas de um encarnado rubro de paixão, com direito a cartão e tudo. O entregador sorri seu meio-sorriso de costume, acreditando piamente ser o portador da mais pura felicidade - sua maneira de sentir-se rei. Em seu ensaio, esboça maneiras fidalgas, diria até que é um rei disfarçado de arauto, rindo de sua desgraça ao mundo.
Abra lá sua bolsa, moça, e dê um pouco de claridade a essas pobres notas adormecidas que há tempos não comercializam, uma gorjeta é de bom-tom, não lhe parece?
Ah, esse seu corpo em luta contra a balança, você não gasta um tostão com comida, o que não deixa de ser um bom truque. Sua avarenta, aventura-se a fazer até suas próprias unhas, a costurar suas roupas de lençóis guardados há tantos e tantos anos. Egoísta, sim, devia colaborar com os ofícios do mundo, nada de engraxar sapatos com aquela graxa instantânea, nada de boa sorte tchau e nenhum agrado.
O entregador lhe sorri aquele sorriso sem mostrar dentes, em agradecimento à nota miúda que repousa em sua mão. Agora, sim, hora de fingir indiferença, de não se dobrar em nenhuma reverência.
Lia nem bem esperou o rapaz descer as escadas do terceiro andar, para rir de felicidade. Uma explosão! Ria pelos olhos, cabelos, pele, tudo por tudo. Cirandeou no meio da sala com aquelas flores tão rubras, de um vermelho escuro, incomum, pelo menos à treva das janelas que não traziam nenhum sol. Num ovo de apartamento, aquele buquê deveria ter duzentas mil rosas, chegava a ser uma afronta a seu mundo. Ela se sentia tão formiguinha abraçada àquele exagero. Que momento único! Tinha era que namorá-lo até a última gota, sem fim. Depois, bem... também, não queria pensar em nenhum depois, que as flores estavam tenras, plenas de seiva, ávidas de emoções. Abraçou-as como se deve fazer nessas horas e sentiu uma pontada aguda e fina bem no peito. Felicidade, dor difícil de ser experimentada, mas Lia era osso duro de roer, não queria render-se a um primeiro sentimento, então fingiu a si mesma não sentir nada. O espasmo vinha mais e mais forte, e nesse instante a emoção do recebimento do amarrado de flores já quase ia voando longe pela vidraça mal aberta, procurando o bom coração que presenteara seu dia sem data nenhuma, por isso mesmo o presente mais presente da face da terra. De repente, seu mundo pareceu tão sujo e confinado, ela própria um porta-cabides vestindo chapéu e malha fria de mangas caídas mansas até o meio dos braços. Uma tristeza viver assim, mas essa a vida que me coube, essa a rota que não pedi mas que me veio de bandeja. Saltar da carroça no precipício sempre fora muito “de plástico e fast-food”. Todas as tentativas tinham sido inférteis, e quando isso se sucedera ela se vira num mundo fantástico, povoado de bocas dentadas, escancaradas em gargalhadas, batons e ruges. Melhor integrar-se, como uma bactéria, à colônia de figuras, abraçando-as e dançando com elas, compondo uma nova paisagem, muito dentro dos conformes, algo que funcionava magnificamente bem, um outdoor de coca-cola de tão previsível, sem a menor sombra de avaria. Dava segurança? Dava. Mas cadê que ela era ela naquele mundo sem pausa no meio da festa? Não me voe, emoção de flores rubras, rosas-paixão, símbolo incontestável, que o cartão me dará todas as respostas.
Mas ainda não era chegada a hora de desnudar o papelzinho que se emaranhava nas folhas verdes. Se ainda nem resolvera onde colocar as rosas! Reparou, nessa altura do campeonato, que não tinha um vaso sequer, uma jarra – desesperança?
Apelou para o balde rosa sob o tanque na área de serviço. Abriu a torneira e deixou a água correr gelada. À sua frente, Lia só enxergava agora interrogações e mais interrogações. O balde já transbordava, e ela ali, passeando seus rumos. No balde rosa, rosas rubras e viçosas, e enquanto isso, tanto aquilo e por quê. Lá foi Lia para a sala pegar o amarrado de flores. Plástico, laço, frufru e dentro de cada rosa um botão do início. Primeira coisa que farei quando conseguir desbravar esse embrulho será cheirar o perfume.
Lia corta e desfaz laços, desmancha a embalagem e lá vai o cheiro no buquê: huuuuummmm! Mas lá no fundo, sorridente e cruel, o cartão. Sai pra lá! Ainda não.
Ela se programa toda em sua agenda fictícia para as conseqüências do presente. Já é capaz de sentir um certo nojo pelo desconhecido que lhe mandou as flores. Acha até ridículo, até pré-histórico essa atitude de ir a uma floricultura, escolher um buquê qualquer, depois a embalagem, depois escrever o bendito cartão. A dúvida de quem tinha sido o benfeitor não vinha ao caso. Tinha que romper com isso. Tinha que viver o fato. E o fato era que recebera flores numa segunda-feira sem data, primeiro reinado das rotinas semanais, todo o mundo acordando sonolento, desacostumado com a crueldade de ver a felicidade escoando pelos dedos da madrugada que anuncia a Segunda-feira. Definitivamente, aquele não era um bom dia para alguém enviar flores, tampouco para recebê-las. Mas já que assim tinha sido, que remédio? Agora vinha-lhe à lembrança a campainha soando na toda, acordando-a de uma noite quase sem dormir. Pensou na primeira sensação de quebrar a cara do porteiro, sabia que era ele o madrugador inconveniente, só podia. Esse moço gostava de perturbar a vida da gente só para ver a cara de quem lhe abria a porta. Gostava de brincar com a impotência dos outros diante de sua solicitude eterna de porteiro. Uma droga! Amarras demais nesta vida. E essas flores no balde rosa, onde é que penduro meu coração?
Lembrou-se do ritual que alguém praticara, indo à floricultura e comprando-lhe as flores. Não: primeiro a pessoa teria tido algum sentimento com relação a ela, depois teria engendrado uma forma de aproximação, para, depois de muitas que muitas tentativas, ter chegado ao caminho das flores. Podia ter sido também tudo por acaso, sem premeditação, a pessoa seguindo os passos naturais para fazer com que o amarrado enfim chegasse até ela. Agora estava ela ali, fora de seu eixo, muito bem, conseguiu logo no início da semana me deixar atônita, tá certo, mas não vai ficar barato.
Ritual por ritual, Lia entendeu que deveria fazer jus ao prêmio, e jeito melhor não conhecia do que banhar-se na banheira de hidromassagem que consumia água mais do que uma piscina, um despropósito. Onde estava com a cabeça quando se fizera aquela extravagância? Mas aos poucos fora se convencionando: após um sonho bom, mergulhava de corpo e alma na banheira. Vale dizer: cada felicidade merecia um banho à luz de velas, povoado de todas as espécies de sabões e óleos perfumados. Ficar em infusão por boa hora, sem culpa, como um prêmio. Se mereço a felicidade que me vem, então posso usar a banheira com tudo a que tenho direito. E assim se estendia preguiçosa às vezes toda uma tarde.
O dia de hoje era dia de banheira. Sem dúvida que estava feliz. Preparou seus condimentos a gosto, toalhas de enxoval trancafiadas em baús de segredos, cheirosinhas de alfazema, quentinhas tivessem sido passadas naquela hora, sachês mil. E a chinelinha fresca de lacinhos e folhinhas miúdas. Enquanto prepara o palco, vai digerindo o momento, vai se convencendo de que as flores são para ela, sim, que aquele abençoado cartão, um espinho naquele buquê sem espinhos, é mesmo para ela, para nenhuma outra, e que o remetente seja alguém muito do fundo do peito. Nada de fulano nem beltrano, que seja o próprio cara sem rosto de muitos sonhos sonhados, acordados e retomados vida afora. Sou eu, sim, e é você para mim.
De olhos fechados na água esperta é fácil enxergar com acuidade o buquê. Sem dúvida, sou alguém para alguém. O mais é água e espuma.
Depois de tanto merecimento, vá lá a coragem de abrir o cartão: “Com essas flores, meu amor sincero” - sem assinatura. Coração, pulso, pernas, barriga, umbigo. Eu e essa toalha, lá vai a notícia do rádio em ondas curtas, esse grito que não ligo, o que mais vier que venha, ah, meu Deus! O linguajar do bilhete sinaliza um sonho. Alguém em códigos e fantasias. Hora de sonhar mais quinze minutos. Hora de desvendar: cadê a etiqueta da floricultura? Floricultura Vitória Régia. Lindo nome! Endereço difícil, mas fácil é a primeira desculpa, tanto faz ser hoje, agora ou nunca mais.
As flores parecem bem acomodadas no balde rosa. Acho até que não preciso trocá-las de vaso.
Vestida de vermelho, inspirada pelas rosas e pelo coração que carrega pendurado no pescoço, Lia abandona seu quarto-minguante e segue para a garagem pegar o carro e saracotear até a floricultura. Sentimento muito baixo, indigno do presente que abriu o dia, mas nem tudo tem coerência nesse mundo mesmo. Engarrafamento que me mata, um belo dia as pessoas ganharam rodas e perderam a cabeça, que mundo! Dentro de mim floresce um buquê de rosas vermelhas, e eu aqui neste deserto de cata-ventos. Mas quer amor sem batalha?
Dentro da floricultura, Lia abre de novo a carteira polpuda à luz do mundo, retira notas bêbadas e suborna a moça que lhe confirma ter vendido as rosas. Bolas para a ética, para tudo. A vendedora, com aquele ar de vendedora e nada mais nesta vida, vai soltando o verbo em gotas, devagar, na esperança de valorizar a jóia que traz nos lábios - um moço mediano, moreno, calça jeans, camiseta branca. Elegante? Não a ponto de merecer o adjetivo. Sapatos? Não reparei. Como? Pensando bem, sapatos clássicos, pretos. Óculos? Não. Bigodes? Não. Então, um detalhe, pelo amor de Deus. Sim, a voz, uma voz de locutor de rádio.
Não era pouca coisa. Lia adorava sonhar com mensagens ao pé do ouvido, então ia bem um radinho de pilha prensado no ombro. Pensava no grito de gol, na alucinação do homem pequenino e moreno, desabafando sua semana no Maracanã domingo. Não, não ia sujar sua imagem com esse chuvisco. Pensava no improviso de anos e anos, alguém especial que não existia no seu diário, mas que passaria a fazer parte de sua vida a partir de agora. Voz de locutor de rádio, quem poderia ser?
No trabalho, esquadrinhou o prédio inteiro, todas as repartições, em busca. De vez em quando lembrava-se das flores, lindas e rubras, boiando no balde rosa. Noventa por cento do tempo pensava era em quem as enviara, não exatamente nelas enfeitando sua sala. Num dos muitos corredores da empresa em que trabalhava, topou com os olhos de Maurício, na esquina entre o serviço de pessoal e a diretoria-geral deparou com Fábio, foram tantos e tantos supostos e prováveis. Procurava um homem? Procurava uma voz. De locutor de rádio. Em seu trabalho é que não acharia ninguém que merecesse o título. Um vizinho do prédio em que morava? Um colega do curso de marketing? Ninguém. Voz de locutor de rádio.
Quando voltou para casa, Lia voltou o pensamento para as flores, que pareciam sonolentas. Começavam a murchar. Não era hora disso, o sonho mal começara. O cansaço do dia fora enorme, aguçado pelo dispêndio da busca sem trégua. Na sala mesmo, foi se despindo, primeiro os sapatos, depois a meia, a roupa peça a peça, sala afora. No banho já arquitetava uma forma de eternizar seu presente até o encontro ao vivo e em cores com o seu locutor de rádio. Deveria prensar as flores entre jornais, secando-as ao eterno. Finda a busca, aí sim, aproveitaria para viver o absoluto.
Pelo menos era o que pensava agora, enquanto a água do chuveiro caía espaçada, numa chuva de vento. A um canto, a banheira majestática, ávida de óleos, sabões e águas.