Não podia compreendê-lo. Por incontáveis vezes levara, ainda que trôpego, frescas rosas brancas ao cemitério, para depois passar trancado no sótão durante horas. Ao realizar tal ritual, meu avô parecia determinado. Natural eu o fosse, já que lutara na segunda guerra mundial. Mas aquela rotina semanal assemelhava-se a uma obsessão, que me deixava intrigado.
Ele poderia ter incertezas... Como eu as tinha. Ao me olhar no espelho, não via nada além de um jovem de olhos e cabelos claros, cujos pais e avós eram todos morenos. Acreditava ter sido adotado, por vezes. Chegava a pensar que não era filho de meu pai, devido às semelhanças físicas que tinha com minha mãe.
Estes pensamentos sombrios tomavam minha mente quando meu avô, mesmo contrariando as objeções de minha mãe, subiu mais uma vez ao sótão. Diferentemente do costume, desceu de lá rapidamente, trazendo consigo uma surrada caixa de sapatos. Com o olhar sério, a deu à minha mãe, apenas dizendo que todos iriam entender. Deixou nossa casa, parecendo dirigir-se novamente ao cemitério.
Minha mãe sentou-se, então, à mesa da sala, franzindo a testa. Ansioso, eu logo tirei a caixa de suas mãos e a abri. Acima de cartas, cartões postais e cadernos, havia uma velha fotografia, na qual meu avô, ainda jovem e fardado, sorria ao lado de uma mulher loira. Era grande a semelhança entre ela e minha mãe, que se assustou ao ver o retrato.
Remexendo a caixa, vi um cartão postal dedicado ao meu avô, Josef Toyfried, e um outro à uma mulher, chamada Franci Schmisch. Deixando-as de lado, peguei um dos cadernos – o mais surrado – e passei a folheá-lo. Era a letra do meu avô que tomava suas páginas, que traziam datas da época da segunda guerra. Parecia ser um diário.
Curiosos, eu e minha mãe começamos a lê-lo. Nas primeiras páginas, meu avô relatava seu triste cotidiano de guerra, na qual, mesmo sendo jovem, lutara como capitão, devido à sua competência. Os relatos no caderno passaram a ser mais freqüentes depois que meu avô declarou ter conhecido uma enfermeira alemã. Ele dizia que ela tinha sido mandada para o campo dos aliados – no qual meu avô lutava – com o fim de cuidar de alguns prisioneiros de guerra alemães.
Meu avô a descrevia detalhadamente, o que me fez perceber que a alemã era a mesma mulher da fotografia. Aos poucos vovô declarou-se apaixonado por aquela mulher forte e corajosa, a quem chamava de Fran. Ele condenava-se por estar amando uma inimiga, mas imaginava que ele agia dessa maneira por sentir saudade de minha avó, morta há alguns anos. Parou de queixar-se ao perceber que era correspondido.
As páginas, então, passavam a relatar um amor fulminante, que sobrevivia às escondidas. Meu avô fazia planos de casar-se com a enfermeira, após o final da guerra. Minha mãe lia o diário avidamente, impressionada com as revelações que ele trazia. Ao ver que a enfermeira engravidara, mamãe teve de levar as mãos à boca, para conter o grito que quis soltar.
Diferente de minha mãe, eu continuei a ler o diário. Em 1943, a criança nasceu. Era uma menina, quem meu avô e a enfermeira preferiram mandar com um soldado para EUA, querendo protegê-la da guerra. Tirei os olhos do papel. Minha mãe também nascera em 1943.... Voltei-me para o diário.
Meu avô relatava tristemente que sua amada havia sido mandada para a Itália, longe de onde ele se encontrava. A partir daí eles passaram a se comunicar por cartas e cartões postais. A grafia de meu avô foi ficando pior, o que ele mesmo explicou: tivera o braço direito baleado em uma batalha. Estas passaram a ser cada vez mais freqüentes, tornando rara a correspondência entre meu avô e a alemã.
Percebi uma diferença de tempo muito grande entre as últimas datas. Um relato ainda tratava da guerra; o próximo já era do ano de 1946. Nele meu avô dizia que fizera algo terrível, afirmando que não se mataria somente para criar a filha. Ocorreu que, no último ano da guerra, mandou soltar bombas em uma cidade da Alemanha, matando milhares de pessoas. Uma semana depois recebeu o último cartão postal da amada alemã, Franci Schmisch, avisando que havia ido da Itália para a cidade da Alemanha que meu avô mandara bombardear. Ele a havia matado, imaginando que ela ainda estava na Itália.
A lágrima que escorria no meu rosto molhou as linhas do caderno. Em meio à hipocrisia da guerra, meu avó matara a mulher que amava. Nem teve a chance de mandar-lhe o último cartão postal, já escrito, que acabou guardando dentro da caixa. Eu o segurava nas mãos.
No último relato do diário, meu avô dizia que conhecera uma boa mulher, com quem iria se casar e criar a filha que tivera com Fran, sem nunca revelar à menina que foi sua verdadeira mãe. Ao ler isto, meu coração pareceu querer saltar de meu peito. Minha vó era... A alemã! Tudo ficou claro em minha mente.
Descobri as origens de minhas características físicas; e mais do que isso, descobri o universo de sentimentos que se escondia por trás dos olhos secos de meu avô. Após aquele dia, suas idas e vindas ao cemitério cessaram, assim como as preocupações de minha mãe. Um pouco antes de morrer, doze anos depois, meu avô revelou que ia ao cemitério apenas para jogar pétalas de rosas ao vento, pedindo incessantemente perdão à sua amada.