Estava eu escrevendo um conto para o “concurso de contos do beco”, sofrendo como um jumento pela falta de criatividade. Lá estava eu, sentado na minha escrivaninha e olhando fixamente pra um espelho situado à frente da mesa, quando percebi algo de diferente no meu reflexo.
Meu reflexo movia-se de forma mais lenta e descompassada da realidade. Eu buscava fazer movimentos furtivos para surpreende-lo, e consegui. Sem o menor pudor, meu reflexo coçou a narina e, do lado de lá, debruçando-se sobre a mesa, passou a olhar-me com provocação. Senti um meu plexo ser golpeado pela emoção.
Quer algo de mim, amigo? perguntei a ele, tentando dissimular minha tensão bebendo um pouco de água. Pergunte a você mesmo, respondeu-me o reflexo, posicionando-se do lado de lá com a mão levada à base do queixo. Acredito que isso seja um tanto surreal, respondi recolocando o copo cuidadosamente na mesa sobre um livro. Talvez, mas o importante é que isso está acontecendo e você deve aproveitar a oportunidade. Que oportunidade? perguntei ao meu reflexo, mostrando certa irritação. A oportunidade de se conhecer, sem barreiras para consigo mesmo. Julgo sua pessoa muito intempestiva, coloca-se à minha frente sem meu conhecimento e posiciona-se para analisar-me, respondi cruzando os braços sobre a mesa e aproximando-me mais do meu reflexo. Meu reflexo, neste momento, recuou um pouco e, limpando na superfície posterior o embaço causado pela minha respiração, respondeu: Caro amigo, você que me colocou deste lado, sem que eu pedisse e, além do mais, não acredito que esteja eu a analisar você e, sim, sendo analisado.
Após alguns segundos pensando, anui com a cabeça e vi meu reflexo curvar-se, sentado, como se fosse pegar algo no chão. Vi a parte posterior da sua cabeça e, pela primeira vez, pude admirar-me pelas costas. Ao levantar-se, meu plexo foi golpeado por uma descarga gélida que me descompassou a respiração. Eu estava bem mais novo agora, tinha no mínimo dez anos a menos, neste momento toquei o meu rosto e busquei inutilmente um espelho nas paredes laterais para me ver. Olhei minhas mãos: nenhuma mudança. Porque este terrorismo para comigo? Perguntei, incapaz de esconder minha submissão perante esta metamorfose refletida e ele respondeu: Não está vendo que sou você, pura e simplesmente você, seu reflexo, o reflexo de seus desejos e temores.
Senti, neste momento, compaixão de mim mesmo, ali do outro lado, jovem, traços lisos sobre a pele mais corada, nariz fino e desprovido de cicatrizes. Vi no punho direito do meu reflexo uma pulseira de pano que me chamou a atenção. Claro que eu me lembrava dela: tinha sido comprada na banca de um camelô. Ao perceber meu olhar aturdido para seu punho, meu reflexo falou: Está lembrado dela? e levou o pulso à frente, girando-o em cento e oitenta graus. Lembro, claro, mas ela não pertence a você, respondi, percebendo que estava sendo tomado por uma sensação de delírio. Pertence ao seu passado, respondeu empertigado meu reflexo, voltando a olhar para o seu próprio punho. Os valores mudam, respondi, sentindo que o rubor tomava conta das minhas faces e minhas panturrilhas a formigarem. Seu passado é seu reflexo. Hoje, aí deste lado, nada mais é que o reflexo de ontem, que aqui deste lado é hoje, falou meu reflexo.
Senti então a necessidade de retomar minhas forças para combater com meu passado. Sei perfeitamente onde estou, o presente é o que me importa, você já passou e o futuro cabe só a mim, nunca caberá a você, respondi, cerrando o cenho. Talvez nem a você ele pertença, caro amigo, talvez ele pertença à natureza e à forma com que você foi e está sendo formado, respondeu meu reflexo com gestos púberes e desdenhosos.
Neste momento, em busca de desvendar toda a situação, lembrei-me que, às minhas costas havia um espelho, fixado na porta do guarda roupas. Em um movimento lento e mecânico fui virando-me para trás, girando somente o corpo e fixando o olhar no meu jovem reflexo. Pode virar sem medo, a não ser que tenha medo de ver você mesmo, falou meu reflexo com a segurança de um adolescente.
Quando já torcido na cadeira, olhei o espelho às minhas costas, ele estava limpo, sem refletir nada mais nada menos que a própria escrivaninha e o espelho que ficava à sua frente refletindo um jovem dos seus quinze anos. Voltei-me para o espelho frontal e vi meu jovem reflexo com um sorriso maroto nos lábios dizer: Você está lá e também está aqui, só não quer ver.
Neste momento, virei-me, fixando o espelho traseiro e busquei na sua forma retangular uma imagem. Vi então, brotando do bordo inferior do espelho, um reflexo como que se levantando, mostrando as costas curvadas. Foi levantando-se e girando, posicionou e me olhou firmemente nos olhos com um olhar que eu conhecia muito bem.
Era meu querido pai.