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Contos-->O biscoito assassino -- 06/07/2000 - 23:10 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A tarde modorrava, alheia ao frenesi dos meninos que brincabrigavam debaixo da mesa. Eram encenações perfeitas, próprias para serem celebrizadas nos próximos cafés desta vida. Tudo podia. Menos entrar na cozinha. O cheiro do biscoito frito vinha e enchia a meninada de excitação. Daqui a pouco, a brincadeira parava e dava lugar à comilança. Um silêncio sacramental tomava conta das primeiras mordidas. Primeiro matar a ânsia, depois vinha o continuar, a degustação prazerosa. Nunca liguei para os estouros, acostumei-me a eles, a não ter que presenciá-los, porque era assim que tinha que ser. Aprendi a virar o rosto na hora certa para não ser chamada para testemunha. Dava certo.
Naquele tempo de empregadas soberanas, fortes e poderosas, eu gostava de ficar observando. Incrível a insistência delas em se fazerem felizes. Era uma cantarola o dia todo, revistas de fotonovelas lidas centenas de vezes, roupas recicladas até o rasgo impossível, cadernos de letras de músicas preferidas e anotações de pensamentos para fechos de cartas de amor. Amor: não é o nome certo. Aquelas guerreiras viviam paixões incendiárias capazes de atear fogo no corpo por um desenlace inesperado. Sua vida era sua novela. Tinha que ter alguma graça aquilo tudo, um sentido, por isso eu tinha o maior orgulho quando alguma empregada bonita e vaidosa vinha trabalhar lá em casa. Era uma movimentação o dia inteiro, risos, gritos, as emoções no topo do mundo. Elas se preparando para o grande momento de suas vidas, um casamento que as tiraria daquele universo de esperança, sepultando de uma vez por todas os sonhos ao concretizarem o maior deles.
Mas isso é assunto para outra história. O fato é que ninguém nunca se atrevera a dar a uma empregada a tarefa de fazer o biscoito. Era demais para suas carinhas mansas. O biscoito era feito de polvilho e água, ovos, óleo e sal, só. Mas o interessante é que, ao fritá-lo, ele dava uns estouros que às vezes arrojava a panela de óleo fervente para longe. Um perigo. Muitas mulheres apareciam com as conhecidas bolhas de queimaduras no rosto e nos braços, e todo o mundo já sabia: a saga do biscoito. A cozinha ficava toda respingada de óleo, o chão, as paredes, o fogão. Mesmo assim, a cara da rainha do lar era de puro contentamento ao oferecer a merenda de sabor inigualável a seus privilegiados familiares.
Grande era a fome daquela gente, fome de mostrar a vida para si mesmos, de evidenciar a prevalência do homem em face do mundo. O biscoito era um recurso eloqüente. Certo mesmo era que dona Creusa sempre lançava mão de fazer o biscoito quando algo a remexia por dentro. Era só alguém ferir-lhe os sentimentos, para ela, tão casta e meiga, acostumada a engolir um mundo goela abaixo, se dirigir mansa para a cozinha, como quem não queria nada, e começar a esmigalhar os grãozinhos do polvilho com as pontas dos dedos. Quem entrasse em seu reinado naquela hora arregalava os olhos: biscoito frito hoje! Mas ninguém, nem mesmo dona Creusa, buscava explicações em saco de farinha. Cada um cuidava de sua lida, uns mais, outros menos.
No caso do biscoito, com certeza algo ficava embutido na massa, já que a mulher polvilhava-se de um sentimento muito parecido com a ira no esmigalhar os grãos. Esse algo era difícil definir, também não valia a pena acordar possibilidades. Tanta coisa podia ser. Tanta coisa, que cansa supor o que fosse e, de novo, não valia a pena.
Enquanto derramava a água em sereno, com muita paciência, dona Creusa ia desfazendo os carocinhos, um a um, pensando nos momentos sedimentados ao longo dos últimos dias. A cabeça longe não deixava ver o desperdício de tempo de ficar ali, esmigalhando pedrinhas de goma. Um dos segredos do biscoito era justamente esse, deixar a moenda funcionar a pleno vapor, esquecer a cozinha, panelas, telhados de picumã, gritos ferozes da meninada. Lembrar-se de alguma novela, a mais antiga que houvesse. Valia também evocar uma música eterna, dessas que todo o mundo conhece, tocadas em rádios sem tempo num bar qualquer de beira de estrada. Assim era que dona Creusa trazia de volta para si seu semblante paciente de mulher silenciosa e compenetrada. Entrasse alguém na cozinha, ela logo dava o berro para sair. Aquele era um momento de reflexão, de reza. E lá ficava dona Creusa, cavoucando a goma, amontoando-a e desamontoando-a, perfurando túneis com as mãos, enquanto despejava água fininha, aos poucos, nos lugares ainda secos, na rega do deserto de areia branca que era a goma.
As dores eram muitas: desconfiança - não é bom desconfiar, melhor é investigar, porque a desconfiança desgasta, consome e não conduz a nada; começou a desconfiar, investigue ou deixe para lá. Ingratidão - tinha já virado moda reclamar de tudo e de todos, a coisa estava tão entranhada naqueles cantos de mundo que ninguém mais sabia se de fato a reclamação procedia ou não, mas o importante é que, para não ficar fora da conversa, tinha que acreditar piamente na ingratidão do mundo. Uns filhos que não agradecem o trabalho da gente, um marido que nos impede de ver nosso parente distante porque não gosta que a gente viaje.
Engraçado é que se o marido, de repente, autorizasse a viagem, ela chorava ainda mais, porque parecia que ele não gostava dela. É, o mundo tinha muitas faces, mas toda a gente queria eleger uma só e mascarar o resto. Queimar a energia do corpo é uma coisa. Gastar pensamento à toa era outra bem diferente. Algumas mulheres se socorriam de rezas, inventando novenas sem fim, promessas que exigiam duras penitências. A oficina do diabo tinha que se manter desativada. Por isso era costume louvar a mulher trabalhadeira, esperta, que acordava à aurora para começar a labuta. Tanta coisa por fazer, tanta coisa inventada para se fazer. O que não podia mesmo era a mulher ficar sentada no banco, vendo as nuvens formarem figuras na varanda. O pensamento era um troço muito perigoso. O trabalho, essa era a única face importante do mundo. E inventavam bordados para beiradas de toalhas, um tudo. No final do dia, no corpo moído, a sensação de dever cumprido.
Na sala, a meninada aproveitava o empenho da mãe na cozinha. Dia de fazer biscoito não havia mãe que se desgrudasse da massa para ralhar com quem quer que fosse, então a bagunça comia solta. A massa do dito cujo era tão pegajosa que parecia atolar também os pés da cozinheira, impedindo-a de dar um passo fora da cozinha. Depois de muito amasso e puxa-puxa, movimentos aprendidos e compartilhados por gerações e gerações, era a vez da tábua – exclusiva da cozinha, que tudo era muito higiênico -, e começavam a ser modelados os biscoitos, um a um, em círculos. Ficava bonito aquele canteiro de rodelas sobre a tábua, prestes a serem fritos na banha quente. Após essa etapa, o aviso certo, e todos paravam tudo, à espera do sinal: era chegada a hora de fritar. O momento perigoso. A panela era tampada na esperança de conter os abalos sísmicos, mera ingenuidade de cozinheira. As explosões começavam e iam se intensificando, se intensificando, sinal de que o biscoito tinha dado certo. Cada pipoco era o arrebentar da goma, fazendo crescer a massa frita. A cozinheira esperava com ansiedade o primeiro biscoito, o do teste, que era despejado solitário na banha. O primeiro pipoco era a prova do biscoito ter dado certo. Depois, viriam os outros milhares. Dona Creusa corria muitas vezes para fora da cozinha, na tentativa de evitar as temíveis queimaduras. Já se queimara tantas vezes que perdera a conta.
As pessoas, acostumadas ao barulho, ficavam de longe, saboreando as explosões, antevendo o término da espera. Nesta etapa, todos começavam a conversar animados, esperando os biscoitos já em fase final de preparo. Meia hora depois, lá vinha a cozinheira com a tigela carregada de biscoitos torrados e sequinhos, uma delícia. Comer o biscoito era comer um pedaço de dona Creusa. Não havia na massa somente o seu suor, mas também um pedaço de sua alma. Todos degustavam a merenda com um prazer infindo, achando, por outro lado, a coisa mais natural mastigar aquelas rodelas. Dona Creusa contemplava a cena, sem comer um só biscoito, como manda o costume: a boa cozinheira não se interessa pela própria comida, apenas a prepara para os outros.
Terminada a festa, agora era só limpar a praça de guerra. E dá-lhe água e sabão para tirar as manchas de óleo. Nessas alturas, as crianças já haviam retomado as brincadeiras, os homens já teriam ganho as ruas atrás não sei de quê, o dia acabava.
Se dona Creusa corresse, ainda dava tempo de rezar o terço na igreja.

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