Enquanto andava pelas ruas do velho centro, Marília pensava na vida. O vento gelado zunia em seus ouvidos, ligeiramente protegidos por um fone de ouvido, pelo qual ouvia suas músicas preferidas. Era bom morar no centro, o sossego dos fins de semana compensava o caos dos dias úteis, a vista de seu apartamento, linda. A janela de seu quarto se abria para o Vale do Anhangabaú, e por ser no décimo andar, o barulho dos ambulantes chegava baixinho, com os vidros fechados quase não a incomodava. E depois de quinze anos, a bem da verdade, ela já havia se habituado com o zum zum zum da cidade, era como música para seus ouvidos.
Por isso a tristeza daquela manhã. Era a última. Andava pelo centro, pensando na vida, cantando baixinho as músicas preferidas que ouvia, tentando não chorar. Observava as pombas, o céu azul de inverno, as nuvens branquinhas... quando ela veria isso de novo? As construções, deterioradas pelo tempo, mas ainda belas. O velho prédio da Light, O Teatro Municipal, a Catedral da Sé, aquilo tudo fazia parte de seu dia-a-dia, de sua história, de seus quinze anos. E agora ela tinha que ir embora.
O pai recebera uma proposta de seu patrão, um aumento considerável de salário e muitos benefícios se ele fosse trabalhar na filial de Goiás. Como único provedor de renda da casa, que para sustentar a esposa e a filha fazia malabarismos financeiros todos os meses, não pensou muito. O custo de vida em Goiânia seria menor, seu salário melhor, daria para morar em uma bela casa, com quintal, talvez uma piscina para aplacar o calor do centro-oeste.
Mas Marília não queria casa, não queria piscina, nem vida melhor, queria sua vida de sempre, seu quarto com vista para o Vale do Anhangabaú, o movimento intenso do centro. Marília não queria a paz da cidade pequena, não ia gostar, não ia se adaptar.
Voltou para casa com passos arrastados, sem saber se queria ou não chegar. O pai havia sido claro: tinham de sair de casa às onze, para que pudessem pegar o vôo das duas da tarde tranqüilamente. Na porta de seu prédio, um táxi, o porta-malas aberto, dentro, toda a bagagem, toda sua vida, sua história. Entrou no carro e viu sua infância dando adeus. Uma lágrima escorreu por seu rosto. Já não era a menina do centro. O centro já não mais a pertencia. Um palavrão cheio de raiva escapou de seus lábios, abaixou a cabeça e chorou. Chorou sem vergonha de quem a olhava torto no aeroporto, chorou até pousar em Goiânia. Sua casa, num bairro arborizado, até que era agradável. E a janela de seu quarto se abria para um lago. Algo dentro dela disse: não vai ser melhor, nem pior, vai ser diferente. E este lago me pertence.