Sobre a caixa d’água do edifício olha mais uma vez para o relógio. Mal consegue enxergar os ponteiros na noite escura. Espera a meia-noite. Essa hora inexistente: limite imponderável entre um dia e outro... continuando a ser noite. Tenta divisar o local da queda premeditada que os seus míopes olhos não alcança. 23h55’. Tempo longo de espera. Tempo angustiante para pensar nas coisas que serão deixadas.. Não olha para o céu: ainda que de lá nada mais espere. Teme um olhar de reprovação à sua negação de futuro: ainda que não mais acredite. Não olha para o céu. Persiste no conceito materialista. No seu livre-arbítrio. Na posse do seu próprio corpo. É seu o corpo. Veio consigo. Veículo defeituoso e feio. Projeto falido, envelhecido. Sem nenhuma utopia de eternidade. Quer livrar-se dele. Do corpo. E de todos os olhos do mundo. No fundo, ainda acredita num outro plano. Livre de matéria, egoísmo, preconceito, opressão. Quer livrar-se de tudo. Quer abreviar sua remetida ao alto. Daí jogar-se do alto ao chão. Somente assim é possível. Fraqueja um pouco. Chora. Mas se restabelece, paradoxalmente, com o próprio fracasso. Pensa nas três coisas básicas que, dizem, normatiza a vida. Que, dizem, faz valer a pena. Jamais escreveu um livro (sequer gostava de lê-los). Jamais gerou um filho (nasceu infértil). A única árvore plantada nem chegou a brotar. Aí se encontra: rival do mundo. Insípido. Inconseqüente. Triste feito um violino sem cordas. Um vaso sem terra e sem flor. Olha novamente as horas: 23h59’. Um minuto e tudo finalmente estará terminado. Sem qualquer aviso. Sem qualquer adeus. Sem qualquer remorso. No fundo, espera alguém (quem?) que venha lhe impedir. Que lhe dê importância. No fundo, ele é assim, como todos. Falível. Covarde. Mas não se mostra. Afungenta os pensamentos. Não olha para trás. Veio só ao mundo. Viveu só. Partirá só. Olha o relógio pela última vez: meia-noite...