Mais um dia de finados. Eu faço sempre o mesmo percurso: levanto da cama, oro, saio de casa e vou ao cemitério. Logo na entrada, nos portões de ferro grosso, vendedores de flores quase se pegam para vender flores aos visitantes que conversado entram e conversando saem de volta à suas casas.
Logo que adentro o cemitério uma leve brisa me roça o rosto, fazendo com que meus cabelos tremulem suavemente pelas têmporas e fronte. Com um maço de margaridas na mão, lá vou eu, andando e analisando os transeuntes. Todos estão tristes, cabes baixo e contemplando os monumentos. Cada monumento retrata uma pessoa, uma historia perdida ou passada, um universo que outrora foi vivido e fez-se existente. Monumentos de mármore se misturam aos de cimento queimado, que por sua vez se misturam os morros de terra. Determina-se ai a casta social que cada finado pertencia, as histórias se misturam e os universos se entrelaçam em uma ciranda veloz e barulhenta.
Ao pé de um túmulo de mármore, chora uma senhora que está de mãos dadas com uma garotinha, provavelmente sua neta. Logo à frente, aguçando os ouvidos, posso ouvir o comentário de duas mulheres: Não foi morte natural- dizia a mais velha, olhando por sobre os óculos- foi um acidente. A ouvinte olhava fixamente para o jazigo.
Ainda caminhando, obstinado em visitar o túmulo 1665, fui caminhando entre os gerânios e margaridas. Este dia de finados estava diferente, eu sentia a tristeza no ar. Quase todos choravam, alguns lamentavam movendo a cabeça de forma negativa.
Rodeado de tristeza e infelicidade, neste momento fui tomado por uma angustia indescritível. Meu plexo congelava minha alma, e meu espírito murmurava tristeza.
Porque tanta tristeza, eu me perguntava. Todos os que jazem aqui estão melhor que nós, que vivos estamos, pensava com os meus botões. Ao meu lado uma senhora derretia-se em prantos, a tristeza da senhora contagiou uma garotinha que estava ao lado que também começou a chorar.
Neste instante, quase dominado por um estado de torpor, fui surpreendido por uma música alegre. Parecia uma alegre sinfonia, vinha do lado leste do cemitério. Voltei os meus olhos para a direção de onde vinha o som, desviando das cruzes e das capelas pude observar um aglomerado que se formava ao canto do muro. Fui me aproximando, era uma tenda com uma placa de madeira, um letreiro que dizia: Bar- cantinho das flores.
Meu semblante esboçou um sorriso confuso, aturdido e mau definido, fui me aproximando. Várias pessoas conversavam e bebiam, do lado de dentro da tenda um casal animado servia os comes e bebes. Sem afinidade com os freqüentadores do recinto, se é que se pode chamar assim, encostei-me ao balcão colocando sobe ele as margaridas.
- Aceita uma bebida, cavalheiro- perguntou-me um dos serventes.
- Aceito, claro. O que tens para servir?
- De tudo um pouco- respondeu-me
- Veja-me uma cerveja, bem gelada- o sol era escaldante.
Ao tomar o primeiro gole, busquei uma visão panorâmica do cemitério. Os túmulos estavam a ser visitados, mulheres e casais choravam aos pés dos jazigos.
- O senhor vem sempre por aqui?-perguntou-me o servente.
- Todos os anos- respondi com olhar de muitas perguntas.
- Nunca te vi-ele falou perscrutando minha face.
- Engraçado, também não te vi.
Dominado pela curiosidade, tomei um outro gole e perguntei:
- Como pode ter um bar funcionado aqui dentro, no dia de finados?- perguntei rapidamente e sem volteios.
- Porque? Não pode?- ele respondeu.
- Pensei que não
- Olha caro amigo, veja todas estas pessoas que aqui estão. Você vê alguém chorando?
Olhei todos que estavam no recinto, todos alegres e sorridentes. Voltei-me ao servente:
- Sim... vejo todos contentes.
- E eu vou lhe perguntar novamente- ele me fixou o olhar debruçando sobre o balcão- olhe todos os outros aos pés dos jazigos. Vê aquela senhora grisalha?-ele me apontou um tumulo de mármore, aos pés deste chorava uma velha de joelhos.
- Ela está sofrendo, perdeu um ente querido- falei buscando defender um sentimento alheio.
- Esta pessoa, vem aqui para trazer tristeza. Algumas delas vem freqüentemente, choram e vão embora, outras vêm uma vez no ano para cumprir um ritual pré-adquirido.-ele me falou com certa fúria.
- E vocês todos, o que fazem?- perguntei tentando encurrala-lo em sua própria conclusão.
- Nós, aqui, fugimos daquilo ali- respondeu-me apontando outra senhora que chorava aos pés de uma capela- fugimos da tristeza que eles trazem no coração e nas carnes.
- Vem aqui buscar conforto - falei de forma tolerante.
- Sim, perfeitamente- ele respondeu anuindo com a cabeça- agora, eles, se confortam e incomodam os mortos.
Encerrando o assunto, perguntei:
- Qual seu nome?
- José Dias Paião- ele respondeu de forma categórica e enfática.
- Quanto é a cerveja?
- É brinde da casa, deixe as flores e tudo bem-ele respondeu com um sorriso nos lábios, e recolheu as flores.
Retirei-me do recinto esbarrando em algumas pessoas, uma delas me chamou a atenção. Era um homem alto e calvo com olhar bovino. Um breve comprimento com a cabeça e fui embora. Refletindo sobre tudo o que tinha visto e ouvido caminhei para meu destino, um túmulo. Lembrei de que tinha deixado minhas margaridas no bar, se é que aquilo era um bar, e então decidi voltar no dia seguinte para a visita pois já tinha visto sofrimento de mais neste dia.
Ao acordar, no dia seguinte, me dirigi para o cemitério. O local estava bem calmo, nem uma pessoa a chorar aos pés de capelas e morros de terra. Igual a ontem só a brisa que tornou a me roçar a face. Com outro maço de margaridas fui até o local de destino, o túmulo de papai.
Ao me aproximar do túmulo pude ver o que me parecia as pernas de um indivíduo que estavam encobertas pela aresta do jazigo. As calças eram esfarrapadas e sujas, era um mendigo que dormia. Saltei o obstáculo e me dirigi ao jazigo do papai, depositei as flores sobre o frio mármore. Contemplando o monumento comecei a refletir, esbocei uma oração mas não deu certo, fiquei com as reflexões. As lembranças de quando estava com ele, as pescarias que juntos fizemos e também as visitas aos mortos nos dias de finados. Lágrimas brotaram nos meus olhos, uma saudade tocante me falou por dentro em forma de tristeza. Sentimento de perda.
Neste momento me lembrei do dia anterior, lembrei das palavras de José Dias Paião, o dono do bar. Limpei a pequena quantidade de lágrimas que estavam na minha face, pois não queria entristecer meu velho pai. Beijei o gélido mármore, agradeci por tudo de bom que ele me deixou e parti. Pulei novamente o mendigo e, com as mãos nos bolsos, fui me retirando com a intenção de passar no bar obtuso do José Dias Paião.
Andei poucos metros e um túmulo me chamou a atenção. Era um túmulo de cimento queimado que continha uma foto emoldurada com cobre, olhei fixamente a foto, estremeci como um epilético. Eu conhecia aquela pessoa, já a tinha visto, magro com a cara ossuda e olhar bovino. Eu tinha visto ele ontem, no bar, disse para mim mesmo. Olhei em direção de onde o bar estava, desviando e buscando um ângulo que fugisse das cruzes e estandartes góticos. Fui cortando e costurando os túmulos. Nada do bar.
Fui ao ângulo obtuso do muro, onde ainda ontem estava fixado um movimentado bar, havia somente um imponente jazigo de mármore com um maço de margaridas em cima. Aproximei do Túmulo sentindo as batidas cardíacas me balançarem o tórax. Olhei o Túmulo, reconheci as flores, eram as minhas que ontem deixei no bar.
Olhei fixamente para o túmulo onde pude ler em letras de cobre escritas em estilo góticas: Aqui jaz José Dias Paião, morreu sorrindo porque acredita em algo mais e pede para que, aqui, só tragam alegria.
Um sorriso brotou no meu rosto, nada de lágrimas. Bati com os nós dos dedos três vezes no mármore e disse: