Domingo de carnaval. Mais ou menos seis horas da tarde. As ruas do centro de
Salvador estão lotadas. Engarrafamento de gente, trios elétricos, cordas de
bloco. Nesse cenário é que encontramos Fernanda. Idade entre 20 e 25 anos,
alta, magra, tida como bonita pelos padrões da moda. Fernanda vaga incerta
pela avenida procurando o bloco. Chegou tarde ao centro da folia. Esteve num
almoço, em casa de amigos. Bebeu, cheirou lança, experimentou maconha, na
"onda" brigou com o namorado. A última coisa que se lembra: um tapa e cair
da cadeira. Depois disso, lampejos de memória. Um carro, pessoas no carro, a
ida para a "cidade". Se vê na Avenida. O chão sobe e desce. Sons? Apenas uma
confusão no fundo da mente. De vez em quando, Fernanda ouve uma musica que
cantavam para ela quando criança:
Ô raia o sol suspende a lua/ Olha o palhaço no meio da rua...
Não. Não combina com o oioioi do axé, ou o quebra, mãinha do pagode. Mas ela
ouve. E vê... Vê anjos barrocos flutuando acima do trio elétrico...
- É esse o meu bloco...
Anjos barrocos? Não, cantores e bandas, mas é o que ela enxerga. Anjos
flutuando. E um portal lhe aparece na frente do trio.
- Deve ser a tal porta do céu. Morri. Overdose... Não devia... Morri...
Encaminha-se para o portal quando percebe mãos dos "armários" que fazem a
segurança da frente lhe segurarem e vozes gritando:
- Sai pra lá, moça.
- Não posso. Deixa eu entrar. Não foi overdose, foi acidente. Mereço o céu.
- Tá louca.
- Não estou. Morri.
A discussão segue acalorada quando uma voz de rapaz jovem soa macio:
- Deixem que eu cuido dela. Venha comigo.
E ela segue o desconhecido. Mais novo do que ela um pouco. Olhos esverdeados
e um lindo sorriso.
- Estou procurando meu bloco.
- Já passou. Vai ser dificil encontrar no meio desta confusão. Venha.
E de repente, estão em segurança na Praça da Piedade. Não sabe as horas, nem
quem é o desconhecido que lhe beija suavemente e lhe oferece para levá-la em
casa.
Tomam o ônibus na estação da Lapa.
-Está frio... Esquisito, está frio...
O ônibus está semi-vazio. Ela se senta na janela e o desconhecido a seu
lado. No balançar das rodas, cochila vendo a paisagem monótona e semi-escura
das áreas da cidade onde a folia nem chega perto. E então, reconhece, está
perto de casa. Dá o sinal de parada e nessa hora, volta-se para o lado. O
lugar vazio. Vira-se para o cobrador:
- Cadê o cara que estava comigo? Saltou e não percebi.
E a resposta do cobrador: "Moça, a senhora tomou esse coletivo sozinha. Não
tinha ninguém lhe acompanhando, não".
Arrepiou-se da cabeça aos pés. Mas, ainda assim pensou que cobradores nunca
reparam em quem paga a passagem. Por via das dúvidas olhou sua pochete
escondida no short do abadá: todo o dinheiro, documentos, tudo lá. Não foi
roubada.
***
O carnaval continuou. Fernanda procurou o rapaz no bloco segunda e
terça-feira. Chegou a vê-lo por um instante na segunda. Ou pensou que viu.
Ao conferir de perto, era apenas alguém parecido.
Na quarta-feira de cinzas, ao ler o jornal, uma notícia sobre o assassinato
de um folião do seu bloco. Por volta do meio-dia, num sequestro relâmpago
quando saia de casa para brincar o carnaval. Dezoito anos, olhos claros,
dentes perfeitos e um belo sorriso. A foto, não deixava dúvidas...
(a protagonista jura que esse caso aconteceu realmente)