Uma blusa pendurada pelo debaixo no varal é tudo o que resta da última noite. De ponta-cabeça, estoura uma lágrima de sabão, para sempre e nunca mais ( a vida tem desses momentos que não se pertencem nem a si nem a nada). Minha vida andorinha equilibra-se em varais brancos, querendo transpor o ninho da cidade convulsa que me sorri lá de baixo. Gostaria de ser leve como o ar e não ter bagagem nenhuma. Mas até onde posso chegar sem meus cremes e perfumes? Desse jeito, acabo é quebrando sem querer todos os espelhos ao digitar a senha espelho espelho meu.
Por detrás dos meus varais de bandeirolas, sei que grita o susto de um céu azul... azul... azul... Sei de brisas, cheiros. Tantas bordas para recortar até chegar ao miolo. Acontece que o tempero da vida está no fútil. No miolo, está a tranca, que dá voltas na chave, sem volta. Cada momento que passa é um rasgo na pele, corpo se esfolando vivo na socava da pala. O tempo amassa com raiva o rascunho borrado, fazendo dele uma bolinha compacta, miudinha, quase uma obra de arte. Jogada no lixo, a bola de papel ainda dá sinais de vida, se desfazendo devagarinho, esboçando uma tentativa, mas no final se cansa e amolece agastada, não é assim?
Devo explicações: a vida hoje me amanheceu inusual. Não veio tímida no rastro da cortina nebulosa da primeira manhã. Abriu-se em explosão de prata em pleno meio-dia, sem nenhuma culpa de preguiça e, ainda por cima, descarada, com a pele queimando ao sol.
Do labirinto de meus varais, manejando baldes e sabões, olhei para cima, e meu coração zabumbou de susto com aquele céu azul, azul, azul – belo, mas de uma beleza alheia, não minha. A meus pés, a cidade – essa devoradora de casas e prédios, trituradora de paixões, ilusões, amores, autodigerindo-se e transmudando-se, num remoer sem fim nem começo. Dei fé de que eu estava no topo do mundo, num território de bandeiras brancas e bolhas de sabão, minha alma imune à metrópole fumê de tubos de ensaio barulhentos, de vidas cifradas em mensagens engolidas sem mastigar, exercitadas muito mais do que entendidas. Essas pressas! - a mesma correria do doido Juca, que pendia a cabeça para a direita e, rindo toda a sua pureza, varava a noite correndo e depois dormia o dia inteiro. Fazia assim para não perturbar as gentes, num recurso. O Juca era mesmo muito puro, e já agora, ao me lembrar dele, vejo que a metrópole, envolta em torres de fumaça, é, no fundo, uma estação de águas com tudo o que houver de mais cristalino e diáfano, bem ao estilo do que sempre foi o Juca.
Neste instante pouso meu pensamento na blusa úmida pendurada pelo debaixo no varal. Blusa de fuxicos, fumaça de cigarro e hálitos mentolados dessa gente que luta ferozmente contra a verdade de seus fluidos e bafios. Não existirá na face da terra água e sabão que clareiem minha alma amarrada na trama retorcida dessas anáguas. Batizei esta roupa numa festa que chamo - não só eu, mas todo o mundo - de “reunião”. Tudo me caiu bem. O que significa que vesti com eficiência meus principais defeitos.
Dentro de casa, ainda agora, um mundo em devassa me espreita. Aqui nesta plataforma de varais, sou alguém ao largo, um móbile pendurado, ao vislumbre de um mundo intramuros, vida cercada de vidro por todos os lados. Vida inventada sem ser vivida. Mas afinal não é mesmo uma delícia ouvir conversas displicentes? Sentar-se invisível num bar e misturar-se às outras vidas sem ser notada? Ventos de liberdade me sopram as orelhas e não os cabelos, pois tenho um lenço me apertando as idéias e os cachos. Ventos. Sussurros. Corações lacrimosos.
Lá na sala, a deusa insone despiu sua capa e enfim dorme. Aqui na cozinha o que sei é que todos os convidados foram embora, me deixando a barriga cheia de espuma diante da pia de tralha suja. Devem estar dormindo agora suas ressacas. Aquele prato intocado, não é nada não é nada, é minha alma escoando lixo abaixo. Terá sido essa a paga de quem me recusou uma conquista. Minhas delícias cabem bons elogios, mas se alguém quis perder o prazer de saboreá-las, problema de quem? Meu não é.
Ontem à noite, linda de morrer, inatingível deusa do Olimpo, abençoada estrela de alma misteriosa, musa de todos os epítetos, apelidos e alcunhas, a cada sopro nos ouvidos eu prosseguia meu passeio em meio ao levantar de copos em brindes, até ninguém ter mais o que comemorar e finalmente todos os olhos baixarem genuflexos ante o copo vazio. Nessas horas eu despejava tudo o que minava água corrente de mim, sem trégua, embriagando corações aflitos sem pai nem mãe, órfãos soltos no mundo. Eu passeava com desenvoltura pelos trilhos das conversas, equilibrando circunstâncias com a mesma destreza com que agora equilibro vestes em varais. Minhas mãos ontem à noite levantavam bandejas cheias de taças transbordantes sem que eu me descuidasse um minuto do indefectível sorriso - não está faltando nada?, essas coisas. Fui mesmo perfeita.
Foi um festim macabro, momento premeditado de erguer estátuas de gelo em homenagem a nós mesmos, ao som de muita música, para evitar interrogações - falar o que quiser e responder se quiser o que quiser. Teve de tudo: as inevitáveis panelinhas rindo e gesticulando, fazendo pose, todo o mundo contando sua saga, uma historieta de carochinha, no máximo uma novela das oito. Fumaça e ecos de alegrias subindo até o teto, depois o medo de alguém avistar uma falha na encenação e gritar a descoberta. Mas quem daria trela a tais enlevos? Vai mais um uisquinho no copo? – e todos os gritos contidos pegavam carona na fumaça dos cigarros, dissipando-se por outros rumos.
Ainda bem que tive lá meus minutos de sobriedade para caprichar no reboco da fachada. A pretexto de um nada, corria para o banheiro em busca do rímel escorregadio. A primeira imagem que me vinha era sempre a espelhada em meus olhos e, mesmo não gostando nada do que via, eu tinha tempo de sobra para me ressuscitar.
A propósito, toda festa precisa ter sua casamata. Melhor: todo lugar exige seus bastidores. Por exemplo, não deu certo com o Lu, porque, face a face, em banquinho de praça, chupando picolé, não dá. Ainda mais porque os olhos do Lu não piscam jamais, ao passo que os meus ardem se eu quiser tomar queda de braço com os dele. O Lu tem um jeito de falar que sei que é ensaiado, uma fala mansa, quase sussurrada, o rapaz sabe seduzir. Tenho certeza de que terá sido ele que me deixou o prato cheio, sem uma garfada molhada na saliva, esse prato que agora despejo na lixeira. Uma ofensa, Lu, eu não mereço. Outra encenação sua? Se quis me ferir, então por que veio? E, já que veio, não tocar na comida, se quer mesmo saber, não me comove. Apenas me ofende, numa vergastada de cabo de flor. Saiba que estou gargalhando da fome que você não terá passado, agüentando de pé, heroicamente, no tablado até às cinco da matina com o estômago oco. Azar o seu.
A sala vai acordando devagar de sua penumbra, num ritmo bem diferente do carnaval dançado lá fora pela roupa branca nos varais solares. Será eterna minha fadiga só de pensar que tenho que limpar cada cantinho da festa que se despediu há poucas horas. Perto do vaso ocre cheio de flores secas do cerrado, ainda vejo a sombra da Lúcia conversando bom papo com a Su e o Michel. Escuto a risada gostosa dela, reconheço aquele seu movimento de jogar os cabelos para trás quando ri com gosto, cabelos de escova, diga-se de passagem, admiro de longe sua roupa de festa, veste prontinha para caber em qualquer palco. Su, meio rindo, meio ouvindo, meio tudo, criatura morna, indecisa naquele vestido azul-marinho coladinho aos quadris, que não combina nem um pouco com ela. Espremida numa camisa de força, não merecerá aplausos. Michel é todo uma jaqueta de couro preta vestindo um manequim qualquer. O vaso ocre, transbordante de flores secas do cerrado, está agora nu, sem a Lúcia, a Su e o Michel para fazerem as vezes de refletores. Mas afinal quem ilumina o quê?
Da próxima vez, contratarei uma impessoal diarista para dar conta do serviço sujo. É tortura demais recolher restos do que passou e fim acabou. Angústia maior ainda é imaginar que talvez haja uma nova “reunião” – ou muitas outras -, mas que fulano não virá porque casou, o outro porque foi transferido, o outro porque estará no seu oásis, enquanto nós permaneceremos parados no tempo e perdidos na hora, ainda festejando, festejando, depois que a música tiver parado, a gente dançando sem som nenhum que não o de nossas vozes destoadas, sem se dar conta de que já estamos mortos.
Como dói recolher os discos, remasterizados e repetidos! Essa mania que me vem em perseguição, independente de minha vontade, essa maneira que tenho de cravar um tema musical em cada cerimônia! Sempre hei de encontrar um jeito bom de chorar pelo resto da vida os paetês e purpurinas da noite que não brilhou. Pesa dentro de mim a lembrança de cada esforço que fiz para cada conquista. O vinho preterido, a música ignorada, os comentários venenosos, esqueço tudo na primeira chuva. Revigorados e bem-nutridos, reescrevo a cada estação roteiros antigos, para meu repasto diante da miséria presente. De fato, não tenho um corretor mágico que possa apagar uma vírgula de minha história. Mesmo assim, sei que sou capaz de criar mosaicos a partir de cacos e refugos, tocar a vida que me insiste. Se meu genoma não fui eu que escolhi, tampouco o nó do arremate serei eu a apertar, e essa impotência dói fundo. A vida pertence aos ciganos, nômades, erráticos. Que sou eu senão uma bailarina solitária levando tábua a festa toda?
Lá fora a roupa pendurada ameaça voar dos varais e ganhar o mundo, aqui na sala a poeira de ontem continua sua festa de plumas coloridas, relutando em escapulir das frinchas que lhe sorriem. Assassinando a vida, lá vou eu, ponto-com, ponto-fim.