Era uma noite de inverno. Uma neblina caia sobre as árvores, molhando a vegetação. Tinha ido ao cinema; assistira a um filme de terror e a minha mente estava ainda sob o impacto da emoção, as aventuras e desventuras daquele impiedoso assassino ainda martelavam minha cabeça. A rua estava quase deserta. Era uma rua de bairro pobre, sem calçamento, sem alinhamento das casas e a um de seus lados passava um valão que mais servia para coletar dejetos das residências. Para facilitar a entrada nas casas, existiam umas passagens de madeira sobre o valão, a que chamávamos de pinguela. Ao entrar naquela rua, pareceu-me que o ar estava mais úmido e um frio de mistério. As arvores balançavam de leve as suas folhagens e havia no ar um cheiro de mato muito acentuado, provocado quem sabe, por estarmos iniciando a primavera. Havia um silencio e a não ser as arvores nada se mexia,
Em dado momento, naquela penumbra apareceu uma senhora, sua voz era angustiante, parecia-me estar já a algum tempo naquele lugar se congelando pelo frio; pediu-me um favor, que a ajudasse a abrir o cadeado de seu portão; estendendo sua mão, entregava-me umas chaves enfiado em chaveiro. Quando toquei a sua mão, senti um calafrio que me envolveu dos pés a cabeça. Tirei minha mão. A minha ração foi tão mecânica que meu gesto fez com que as chaves fossem atiradas longe. A mulher reagiu indagando o que fizera? pois como, agora, acharia as suas chaves. De imediato e me refazendo do susto comecei a procura-las, abaixado-me naquele capim molhado, chegando mesmo a entrar dentro da vala; por sorte, logo encontrei as mesmas e as devolvi à mulher que a este tempo já me espinafrava acusando porque eu estava com tanto medo dela e caso não quisesse abrir o seu portão ela aguardaria algum outro para o fazer. De fato, eu estava com muito medo e decidi então deixá-la e seguir meu caminho. Ao dobrar a primeira esquina, aquele sintoma de frio foi esvaecendo e meu corpo voltou a temperatura normal, acabando, assim os tremores que sentia.
No dia seguinte, passando no mesmo lugar, pois, era o caminho sempre usado para chegar a estação de trem; por curiosidade, resolvi rever aquele local. Andei até o final da rua e não consegui localizar a pinguela e nem o portão. Voltei, e novamente procurei, me certifiquei de que não havia aquele portão e nem a passagem de acesso. Estava a poucos metros um morador, vizinho e, contei-lhe a história da noite anterior; ele ouviu atentamente. Respondeu-me com algumas perguntas. Disse, não é você a primeira pessoa que me conta esta historia. Morava em uma casa que existiu naquele lote uma família. Aquele tempo tinha ali um portão e uma pinguela de acesso ao lote. O portão vivia sempre fechado com um cadeado pelo lado de dentro. Uma noite, não se sabe a razão, houve uma confusão muito grande. O desfecho de toda a confusão, resultou na morte de quase toda a família. O pai matou dois filhos. A mãe, dona Irene, tentou correu para a rua. Demorou-se ao abrir o cadeado do portão e foi alcançada pelo marido que estava possesso de loucura. Antes que ela transpusesse o portão a esfaqueou pelas costas, jogando-a dentro do valão voltando para dentro do lote, fechou o portão com o cadeado.
Mesmo agonizante, dona Irene tentou voltar para dentro do lote, mas não conseguiu pois sempre escorregava na lama do córrego e tornava a cair, até que perdendo as forças ali mesmo morreu.
Ainda hoje, ela aparece às pessoas pedindo para abrir o portão e pelo que vejo, ninguém consegue ajuda-la.
Condoí-me muito com a história que me foi contada. Passei o dia preocupado com aqueles acontecimentos. Indaguei a outras pessoas e me confirmada a historia da tragédia daquela família.
Aquilo me preocupou bastante e não saia da minha cabeça a vontade de ajudar aquela alma penada. Na noite seguinte, fui ao cinema ver um filme com Boris Karloff. Era de tremer na cadeira; ele aparecia fazendo o papel de múmia e as cenas horrendas satisfaziam o desejo de enfrentar o horror. A sessão cinematográfica terminara por volta das vinte e duas horas. Tomei o caminho de minha casa. Parecia-me que a noite estava mais fria e tenebrosa; a geada caia com mais intensidade; a rua mais deserta ainda. O meu coração estava a mil, era um batimento descontrolado, mas havia algo de sobrenatural me chamando para a aventura.
Dado momento, vislumbrei um vulto naquela escuridão. Parei! O vulto caminhava em minha direção; correu-me pela espinha dorçal um calafrio e por mais que meu cérebro comandasse uma ação para correr, as pernas não obedeciam, batia uma contra a outra. O vulto se aproximava e a pouco mais de dois metros ouvi aquele cordial boa-noite. Era um transeunte que circulava por aquele momento. Ainda tive forças para responder o cumprimento. Meus batimentos começaram então a se normalizar; as pernas já se moviam; o friozinho da coluna já estava passando, um alivio tomou conta de mim e me deu coragem para prosseguir.
Olhei para o lado e lá estava o portão e a pinguela. Desta vez, havia um auto-controle; parecia-me melhor preparado para o que desse e viesse e, de fato veio. Ali estava dona Irene com as chaves na mão pedindo que lhe abrisse o cadeado. Corajosamente, agarrei aquelas chaves, atravessei a pinguela, coloquei o braço sobre o portão e do lado de dentro do lote abri aquele cadeado. Senti uma emoção tão forte ao realizar aquela tarefa. O portão estava aberto.
Dona Irene, vagarosamente, quase arrastando os seus pés, atravessou aquela pinguela, entrou no portão, fechou-o. Olhando por cima, olhou-me com um olhar de ternura e gratidão e desapareceu na escuridão da noite.
No dia seguinte, ao passar pelo local, certifiquei-me se havia realmente alguma pinguela ou algum portão. Não havia.
Sempre que voltava do cinema, após ver um filme de terror, recheado de fantasmas, monstros, mulas sem cabeça, lobishomem e outras figuras do espectro, passava por aquela rua nunca mais vi aquele portão, aquela pinguela e nem dona Irene.
Acho que ela deve estar descansando ao lado de seus filhos.
E que descanse em paz.