Enquanto o Plano Cruzado nascia das entranhas da equipe econômica para a vida dos brasileiros, uma menina nascia das entranhas de sua mãe para o mundo; uma menina tão brasileira quanto aquele plano: parda, fraca, de futuro inserto e relegado ao sofrimento, ao descaso e ao desgosto.
Mas, por obra ou não da mão divina, aquela menina teve um destino oposto ao do plano; talvez porque seus pais, apesar de toda a adversidade e a miséria, fossem mais competentes que os pais do Plano Econômico. Enquanto ele dava sinais de desidratação e enfraquecimento; ela por sua vez, apesar da miséria e pobreza de seus pais, resistia heroicamente a fome e a escassez de dinheiro. Em poucos anos, ela foi crescendo e tomando consciência de sua condição. Ao contrário, o outro se debilitava e o cheiro da morte rondava seu nome – uma morte lenta, sacrificante de milhões de inocentes.
Antes mesmo que aquela menina começasse a articular as primeiras frases, aquele que nasceu num berço de ouro, filho da ilustre nata política e econômica, desceu à cova e caiu no esquecimento; afinal não era o primeiro e nem seria o último.
Aquela menina não; foi crescendo, crescendo... e chegou praticamente ilesa aos 14 anos, tornando-se uma bela adolescente; uma menina quase negra, de cabelos crespos, duas jabuticabas na face e lábios formando ângulos que nem Euclides seria capaz de descrevê-los. Ocultos pelo bustiê, dois pequenos e inefáveis seios, que nem Zeus seria capaz de criá-los, brotavam. No demais, todo o resto formava uma orquestra majestosamente inebriante. E se tudo aquilo não era um conjunto mais perfeito que a melhor filarmônica do mundo, não era por causa do seu corpo – todo perfeição --; mas devido as suas roupas quase sempre desgastadas, desbotadas e remendadas devido ao prolongado uso; vestes usadas até não poderem mais ser remendadas. Para pessoas pobres, sem condições financeiras nem mesmo para ingerir o mínimo necessário de calorias diárias, as roupas não são para embelezar o corpo, mas tão somente para cobrir as partes pudicas.
E foi assim que Roberto a encontrou.
II
Quando Roberto nasceu, o país ainda não estava passando por mais um frustrante plano econômico; os problemas eram outros. Era o auge da repressão aos opositores da ditadura militar. E todo aquele momento inexplicavelmente influenciou o comportamento daquele garoto. Desde pequeno fora um menino amedrontado e desconfiado, como todos a sua volta. Uns mais outros menos; contudo, todos eram temerosos. Na medida do possível, evitavam uns aos outros. Pouco se sabia sobre os movimentos de resistência e grupos armados que tentavam combater o regime militar uma vez que o governo censurava todas as informações. Todos, porém, sabiam que qualquer um poderia ser preso e acusado de pertencer ou colaborar com esses grupos. Essa situação de terror era visível no seio daquela família de classe média.
Roberto, apesar de ter praticamente de tudo, comer e vestir do melhor que se poderia encontrar em um grande centro urbano como São Paulo, não era um menino feliz. Era como se algo o perturbasse internamente, deixando-o em conflito consigo mesmo. O seu comportamento não seguia os mesmos passos da abertura política em que o país lentamente atravessava. Completara 14 anos no ano em que o último presidente militar entregava o poder a um civil – ano de grandes mudanças, alegrias e tristezas, ano em que a democracia quase morreu no parto. Era um adolescente de boa aparência: olhos e cabelos castanhos, pernas longas e atléticas. Não despertava, por sua vez, o interesse das meninas e ele não conseguia aproximar-se delas; mantinha-se tão fechado quanto o país nos anos de sua infância.
Na escola, quase sempre tirava as melhores notas e era constantemente elogiado pelos professores. Foi justamente a sua inteligência que despertava algum interesse das colegas de classe. E seus primeiros relacionamentos com essas colegas só aconteceram após elas tomarem a iniciativa e após muita insistência. Roberto tinha dificuldades em se abrir com as pessoas e pouco falava de si. Era como se tivesse medo de revelar algum segredo escabroso ou algo parecido. Os diálogos entre ele e seus interlocutores eram sempre envoltos por largos espaços de silêncio. O que, não raras vezes, irritavam suas pretendentes fazendo-as perder o interesse por ele. E assim, sentia-se rejeitado.
Mas, se por um lado não conseguia se relacionar com a pessoa amada, por outro extravasava suas frustrações e seus desejos entre as quatro paredes do banheiro formando a imagem submissa de suas namoradas. E assim realizava suas fantasias sexuais. Era como se ele sentindo-se incapaz de compartilhar com suas amantes todo aquele desejo, criasse um mundo de fantasia onde aqueles desejos pudessem ser realizados sem pudor, sem limites e sem causar danos ao outro.
Os anos foram passando e, pouco a pouco, foi se soltando, tornando-se menos inibido, permitindo uma maior interação com o meio.
Se não bastassem suas dificuldades, ainda vivia no seio de uma família preconceituosa, onde as namoradas do filho eram vistas como interesseiras, inferiores e inadequadas. Isso tudo porque era filho de um grande empresário, dono de uma rede de magazines, e neto dum grande fazendeiro, produtor de soja no interior do Paraná. Muitos dos preconceitos foram herdados por seus avós, depois por seus pais e por ele; principalmente os que referiam às pessoas de pele escura. Estas eram vistas como pertencentes a uma raça inferior, cuja utilidade era para trabalhos ignóbeis.
Juntando tudo isso, fizeram-no chegar aos trinta anos na virada do milênio solteiro e sem perspectiva de um casamento futuro. Vivia na casa dos pais como se fosse ainda um adolescente incapaz de ser independente.
E foi assim que Marinalva o encontrou.
III
Marinalva fora ajudar a mãe a fazer faxina na casa dos Pinheiros. Rosicleide comparecia duas vezes por semana naquela mansão; e estava, pela primeira vez, levando a filha. Marinalva ficou encantada com a beleza e o luxo daquela casa. Usava naquele dia um bustiê azul claro, uma mini-saia jeans, ambos desbotados e desgastados pelo tempo, e calçava chinelas havaianas.
-- Que casa mais linda, mãe! Parece até um sonho! -- exclamou a filha.
-- Eh verdade, filha! Pena que são tão miseráveis e parece que sentem nojo da gente.
Assim que entraram na casa, pegaram imediatamente no serviço; havia muito que fazer.
Roberto já tinha saído quando elas chegaram. Dirigia-se ao escritório de onde eram administradas todas as filiais do Magazine Pinheirão. Passava toda a manhã no escritório conferindo os pedidos que chegavam das filiais e enviando-os aos departamentos competentes para fazerem as compras. Depois, pegava os cheques assinados pelo pai e despachava-os para o departamento de compra, a contabilidade e para o pagamento de boletos bancários.
Por volta do meio-dia retornava a casa para almoçar.
Ao cruzar a porta da frente, deparou-se com uma menina de joelhos diante da mesa da sala, limpando-a delicadamente, como se cuidasse de um recém-nascido. Seus olhos se cruzaram e uma sensação diferente tomou conta de si. Seu olhar foi parar nos dois pequenos seios dela. Era como se daquelas pontas emanasse uma força estranha que tolhesse seu raciocínio, que reduzisse a capacidade de discernir a diferença social entre eles. Aquela força era tamanha que, em poucos instantes, instigou-lhe pensamentos impuros. De seus lábios partiu um sorriso inescrutável fazendo com que Marinalva abaixar a cabeça desconsertada.
Ele subiu as escadas em direção ao seu quarto com o olhar para baixo, na direção daquela inocente menina. Ao alcançar o último degrau, parou alguns instantes e ficou contemplando os gestos graciosos de Marinalva. Só parou de fitá-la quando ele tangenciou o pescoço para o lado, os olhos para o canto esquerdo e flagrou-o admirando-a. Ficou envergonhado e entrou no quarto.
Marinalva sentiu-se desconsertada; e seu coração acelerou, causando-lhe uma quentura inquieta e desconcertante. Não pôde mais, no resto do dia, dedicar-se aos afazeres com a mesma atenção que antes. Em sua cabecinha inocente, inexperiente e pura, começaram a surgir sonhos mirabolantes.
Roberto não compartilhava dos mesmos sonhos.
Assim que entrou em seu quarto, dirigiu-se para o banho antes de almoçar. Este foi mais interessante que os últimos; uma vez que as fantasias com aquela desconhecida banhavam sua mente. De tais fantasias absurdamente irreais, surgiu um deleite maravilhoso, um ápice que quase o fez perder as forças e cair. E daqueles devaneios libidinosos, despertou a vontade de conhecer de forma desmedida aquela menina.
IV
Não a encontrou mais na sala; contudo, ao adentrar a cozinha com a desculpa de apressar seu almoço, deu de cara com ela guardando diversas latas de produtos em conserva no armário.
Assim que ela meneou o rosto e o viu tão próximo de si, sentiu uma sensação magistralmente maravilhosa; e daqueles olhos surgiu um brilho fortíssimo. Era um brilho tão intenso que raios invisíveis chegaram a Roberto, fazendo-o tomar consciência das sensações que lhe despertava.
Ele deu outro sorriso malicioso. Ela percebeu o sorriso, mas sua inocência impediu que visse as intenções abjetas em tão inocente gesto.
-- O Senhor deseja alguma coisa? -- arriscou ela a perguntar, interessada em ouvir a sua voz.
-- Só queria pedir para colocarem o almoço na mesa -- disse. -- Qual o seu nome? -- inquiriu ele, em seguida.
-- Marinalva. -- Ela parou o serviço e desceu da cadeira. -- E o seu qual é?
-- Curiosa você hem!... É Roberto -- disse, aproximando-se perigosamente dela, como se fosse toma-la nos braços e beijá-la.
Seus instintos clamavam por isso, mas era um homem tímido, astuto e cauteloso. Não era do tipo que se atira sobre a fêmea assim que a conhece. Não, ele não era assim. Já havia perdido parte da timidez e o temor de se aproximar de alguém, mas uma força o continha. Somente quando tinha o controle total da situação é que permitia que seus instintos afluíssem desmedidamente.
O conflito instinto-timidez, vez ou outra, quase o levava ao desespero, obrigando-o a desaparecer por alguns minutos e conter aquilo. Quando os devaneios não eram suficientes para conter seus impulsos, usava a arma mais poderosa que dispunha: o dinheiro.
Às vezes, saia por volta das dez da noite e ia ao centro de Santos, em busca de alguma jovem prostituta para satisfazer seus instintos animalescos. Alugava seus corpos por algumas horas e, durante esse período, realizava as mais diversas taras e perversões, como se os corpos daquelas mulheres, desprovidos de qualquer sentimento ou dignidade, fossem apenas instrumentos de prazer.
Quando ficou frente-a-frente com Marinalva, sentiu tamanha exaltação que pensamentos impuros tomaram conta de sua mente. E, entre esses pensamentos, constava o fazer de conta que ela era uma daquelas prostituas. Chegou a abrir a boca para insinuar qualquer coisa, mas no instante em que ia fazer, Rosicleide surgiu na porta. Perguntou pelo almoço e saiu sem olhar para a filha da faxineira.
V
Marinalva estava enfeitiçada. Tinha certeza de que aquele homem se interessara por ela. Não sabia nada sobre ele; encantara-se, porém, de tal forma que nem percebeu o quanto era mais velho. Talvez porque ele não apresentava a idade que tinha. Chegou a deduzir que ele tivesse uns vinte anos.
Quando nos interessamos por alguém, cobrimos-nos de perguntas acerca da pessoa almejada. Qual é o nome dela?, Quantos anos ela tem? Será que é comprometida? O que ela achou de mim? Onde mora? O que gosta de fazer?... São tantas e tantas perguntas sem respostas, que nos dá a impressão de que levaremos muito tempo para encontra-las. O que não deixa de ser verdade. Por vezes, não encontramos respostas para todos esses questionamentos. E com Marinalva não poderia ser diferente.
Enquanto terminava a limpeza da cozinha, vez ou outra, desviava a atenção para a porta, na esperança de que ele surgisse. Passou-se meia hora e nada. Ela principiou a achar que ele não viria mais à cozinha e não o veria nos próximos dias. Um aperto no coração a murchou e inquietou-a deveras. Queria vê-lo, nem que fosse por uma fração de segundo. E num instante sua cabecinha inocente perdeu a inocência. Maculou uma desculpa para abandonar seus afazeres e circular pela casa à caça de Roberto.
Chegou à sala e não havia o menor sinal dele. Ficou apreensiva. Teria ele voltado para o trabalho? Ou estaria ele em seu quarto? Nova dúvida aparou sobre ela feito uma bruma. Era como se o tivesse perdido para sempre. Foi à sala de jantar e também não o encontrou. O prato em que almoçara ainda jazia sobre a mesa. O silêncio reinava naquele local. Voltou à sala e ficou estática por alguns instantes, olhando às escadas, em direção aos dormitórios. Queria desesperadamente galgá-las, mas o medo de que fosse descoberta e repreendida deixava-a incerta e insegura. Seu pequeno e insignificante coração palpitava violentamente, parecia querer soltar-lhe do peito.
Parada ali não poderia ficar. Teria que voltar aos afazeres ou arriscar degraus acima. Foi o que fez. Levou a mão trêmula ao corrimão e ascendeu lentamente, pisando em ovos, degrau a degrau. A cada passo, sentia seu coração acelerar mais e mais, suas pernas fraquejarem e suas mãos tremularem como se acabara de ver um fantasma.
Por fim, alcançou o corredor. Assim que se deu de encontro com a primeira porta entreaberta parou para escutar. Não ouviu o menor ruído; e, pela fresta, projetou a cabeça para dentro do quarto a fim de averiguar se ele estava ali. E não estava. Aquele não era o quarto dele; era o das duas irmãs mais novas. Ela pensou em desistir e voltar. Todavia, respirou profundamente e foi até a outra porta.
Foi descuidada e não parou para ouvir sons vindos daquele quarto. Esse foi seu erro. Assim que levou a mão à maçaneta e projetou a cabeça para dentro como havia feito anteriormente, deu-se com Roberto acabando de se vestir. Levou um tremendo susto e ficou paralisada, sem ação; seu corpo gelou e seus olhos envidraçaram.
Roberto também se assustou. Ao vê-la, porém, soltou um mordente sorriso e disse:
-- Entre!
Ela pensou em recuar e sair correndo; mas que explicação daria por ter saído dali daquele jeito? Além do mais, ele não teria coragem de fazer-lhe algo de ruim. Não passou pela sua cabeça o grau de comprometimento e as conseqüências ao aceitar o convite. Para Roberto, a subida dela até seu quarto, sem que fosse convidada, não indicava somente que estava interessada nele - isso ela já sabia de antemão -; mas que não era uma menina de bons modos. “Ela deve ser dessas negrinhas de favela que sai de casa a noite, se esconde nos becos e se oferece para os meninos como cadelas...”, pensou ele mais tarde.
Nestas frases estavam embutidos preconceitos de toda uma classe a qual pertencia. Quantos como ele não pensam da mesma forma? Quantos acham que, aqueles que moram em favela, são ladrões ou prostitutas? E quantos ainda pensam que o negro não é um ser igual a eles? Quantos ainda acham que o negro é inferior e que deve ser tratado como animal? Muitos e muitos. Ah!, quantos gostariam que as favelas fossem muradas, assim como um gueto? Bem mais do que temos coragem de admitir. E Roberto não era só mais um desses, como pensava ainda pior.
-- O que me faz honrar a presença de tamanha beleza em meu quarto? -- inquiriu ele.
Ela hesitou por algum momento. Depois respondeu:
-- Eu... eu... vim ver se o senhor estava precisando de alguma coisa.
Roberto estava convicto de que aquilo fora apenas uma desculpa para ir atrás dele. “Eu vou pegar naqueles peitinhos... Aposto como ela não vai se opor e nem contar para a mãe...”, pensou ele, ao encostar a porta.
-- Estou precisando que você me dê um beijo -- volveu ele, tomando-a nos braços.
Surpresa e hipnotizada, deixou-se cair nos braços dele. E, quando os grandes lábios dele tocaram os seus, sentiu um frenesi partir das profundezas de sua alma atormentada e ir subindo como uma chama, percorrendo seu corpo: uma chama pungente. Pensou que desmaiaria. Não desmaiou, porém; apenas não teve forças para reagir. E o deixou invadir sua boca e se apossar de sua pura alma como um espírito maligno.
Marinalva era apenas um instrumento em suas mãos. Aproveitando-se disso, escorregou a mão direita por baixo do pano. Tal qual um alpinista, escalou tateante e ansiosamente a íngreme montanha negra até encontrar o tão desejado cume. E a montanha foi coberta pela bruma de sua mão. Ao envolvê-la tão densamente, aquela bruma parecia dançar sobre a montanha. Dir-se-ia que Vulcano brincava com aquela bruma, fazendo-a bailar em todas as direções.
Ao afastar seus lábios, viu quão bela e encantadora estava Marinalva de olhos cerrados. Queria perdê-la ali mesmo, naquele instante. Precisava fazer isso; algo dentro de si implorava por isso.
Só não o fez por ser muito arriscado; alguém poderia pegá-los na cama. Tinha que tirá-la daquele quarto antes que dessem falta dela. Antes, porém, queria contemplar os pequenos seios dela. Por isso, empurrou o bustiê para cima. Antes que ela o cobrisse novamente, ele levou-lhe os lábios e o sorveu.
-- Ai!... Paara... -- balbuciou ela, voltando-se a si e puxando as vestes para o lugar. -- Seu tarado!
-- Eu quero... -- começou ele a dizer. Parou, porém, quando a viu sair do quarto como se tivesse visto um fantasma. “Eu ia só dizer que queria sair com ela...”, pensou ele logo depois.
Caiu na cama e ficou deitado, olhando para o teto, absorto em devaneios. De seus lábios, emanava um sorriso malicioso, perverso e imundo. De seus pensamentos lascivos, cresciam o desprezo e o preconceito enraizados por uma educação à margem dos novos tempos. “Bem que eu sabia que aquela negrinha era coisa fácil... Quando é que ela ia ter a oportunidade de se deitar com um cara decente? Talvez nunca!...”