Ela abriu os braços e permitiu-se rodar em volta de si mesma sentindo a chuva acariciar o rosto. Permitu-se pular sob as possas e encharcar os sapatos, as meias, os pés e até as pernas. Permitiu-se jogar o casaco à sarjeta para poder molhar os braços e se arrepiar com os ventos que acompanhavam a tempestade. Permitiu-se soltar os cabelos para que esses tocassem o rosto enquanto fazia o mundo girar por seus olhos. Permitiu-se lembrar de Gene Kelly e murmurar o ritmo de "I´m singing in the rain". Arriscou-se a sapatear por entre os postes, onde os tocava e dava a volta, em zigue-zague pela calçada. Permitiu-se a rua, sem medo de possíveis carros. Permitiu-se juntar as mãos para segurar água e lançá-las para o alto como se fosse um presente ao céu. Permitiu-se a euforia, toda a alegria contida e esquecida de um dia de chuva. Permitiu-se a liberdade e a inocência de um abrir de braços sem medo. Permitiu-se à hospitalidade transitória daquela rua que existia assim apenas na imaginação dela porque ela quis. Permitiu-se a satisfação imensurável e incondicional de fazer o que quiser, puramente, sem se questionar, sem duvidar por um instante da certeza de querer consumir seus desejos, de consumir-se a si mesma, como forma de amor, próprio...
No dia seguinte, vieram os comentários e as repreensões...
- Você sabe que não pode se dar a esses luxos. Você sabe que precisa poupar o pouco de saúde que ainda lhe resta... Como você pode querer viver assim? Seus pulmões ainda nem se recuperaram do último capricho! Uma gripe pode te matar, neste estado!
Escutou, sem ouvir e sem pedir desculpa e voltou à cama. E outro dia preencheu-se de chuva. E outro dia, ela abriu os braços. E por todos os dias que choveram, ela foi à rua dançar. Até que não pudesse mais se amar...