Houve um tempo em que as mazelas da boemia se restringiam à ressaca e um ou outro entrevero na noite.Entrevero que acabava transformando-se em causos e recordações bem humoradas, contadas de noite em noite, de bar em bar.
Hoje é diferente. Entre tantos e tantos riscos, doenças e violência, todos, indistintamente, à noite, somos bêbados desconhecidos.
Quando a boêmia ia do bar para a embriagues, passando pelos prazeres quase inocentes, o maior risco estava em chegar em casa e alguém, ainda acordada, com um enorme sermão em uma das mãos e um perdão ainda maior à outra, exigir que um banho gelado findasse o êxtase da Passárgada.
O bar, nesse tempo, era o universo parlamentar de cidadania, um estabelecimento onde a cidade bebia, namorava, traia, conhecia, elegia e derrubava, conhecia, encantava, esquecia e amaldiçoava.
Neste clima de exercício social, o bar ia até a resistência e a paciência do bodegueiro findar, mais ou menos, por volta da uma e meia da madrugada. Ai as portas iam abaixando, uma a uma, até que o indefectível convite de: “até amanhã”, encerrava o expediente.
Foi nesse tempo, naturalmente num bar, que Policarpo conheceu o Bennio.
Policarpo o descrevia assim;
- Bonachão, ponta firme, declamador dos melhores, de quebra, artista de cinema, diretor de filme, um grande boa praça, tão boa praça que, mesmo sendo de parcos recursos, abundavam-lhe amigos e belas mulheres, escritores, jornalistas, cronistas esportivos, políticos e populares, todos, eram de pronto íntimos do Bennio.
O primeiro encontro dos dois, foi numa noite em que um grupo animado cantava e discutia a gestão pública com tanto entusiasmo que nem se viu a uma e meia chegar e o Zé Latinha veio com o indefectível: “Até Amanhã Pessoal”.
Entre os convivas, Laís, uma morena pra lá de jeitosa, reclamou:
- Mais Zé, eu bebi até agora, estou com fome, não dá pra sair ao menos um tira gosto?
Exausto e autômato, Zé alegou o adiantado da hora e repetiu:
- Até amanhã pessoal.
Mais que de pressa o Bennio tomou a palavra e sacou:
- Com fome ninguém dorme, vamos pra minha casa e eu queimo a lata com uma gororoba qualquer.
Ajeitamos todos nos carros disponíveis e, em uma quase passeata, aportamos muro à dentro na casa do Bennio.
Na varanda, um violão, duas redes penduradas, uma mesa pesada de bancos compridos, uma pia enorme dando para o quintal e um fogão a lenha ao fundo.
Tudo muito despojado, mas muito aconchegante.
Enquanto o grupo cantava e bebia, Policarpo, entrão como sempre,aproximou de Bennio que ao fogão, enchia nossas bocas de água, com o aroma especial que emanava das panelas de ferro tosco.
- Torresmo, milho verde, ervilha, lingüiça de porco, feijão cozido, cebolinha verde, pimenta de cheiro, alho, uns pedaços de frango que estavam na geladeira, azeitona preta, um punhado de uva passa, banha de porco e carne de lata, duas medidas boas de arroz, refoga bem pra ficar soltinho...
Como a ensinar, Bennio ia falando com Policarpo e mexendo a panela, sem perder o fio da conversa e o acompanhamento das musicas que o grupo entoava.
Agora cobre tudo com a água fervente e tampa pra cozinhar.
Alguns minutos depois,...
Estava pronto.
Cheiroso, bonito, soltinho, e o melhor:
Definitivamente, gostoso de mais...
O aroma era delicioso, mas nada se comparado ao sabor.
Laís, encantada com a iguaria, e com os dotes do Bennio, largou se em perguntas:
- Como isso?
- Como aquilo?
- Como que chama?
Chamar aquela delícia de improvisado era demais, então o Bennio explicou:
- Isso é comida de puta pobre que depois de não faturar nada a noite inteira, chega em casa de madrugada com fome, joga na panela tudo que encontra e faz um virado.
Desse dia em diante, vez e outra, como quem manda e não pede, Policarpo intimava o Bennio a fazer o Arroz de Puta Pobre para encerrar nossas noitadas.