Toca o despertador e Manfred acorda. Ainda resiste, fica mais um pouco na cama, meio que zonzo, torcendo para que o tempo congelasse e, como um urso hibernando, pudesse dormir por mais um inverno. Dá conta da realidade, já são quase cinco e quarenta da manhã, levanta-se definitivamente e se apressa para tomar um banho. Debaixo do chuveiro, já começou a respirar trabalho. Lembrou-se dos problemas que tinha que resolver e das matérias que precisava fechar, estava atolado. Eram tantos compromissos num tempo tão apertado que não podia deixar de chegar na redação antes de seis e quarenta e, para não demorar muito, decidiu que só tomaria uma vitamina antes de sair de casa. A reunião de pauta estava marcada para às sete horas e, como era uma pessoa muito profissional e dedicada, sempre tentava ser o primeiro a chegar. Refletiu, pensou um pouco melhor, relaxou e falou alto, desabafando:
- Eles que se danem, eu sou o diretor. Chego a hora que quiser.
Tomou o banho bem devagar, fez a barba calmamente e, finalmente, foi comer. Preparou um belo café, com direito a vitamina, croissant de chocolate, suco de laranja e algumas frutas. Olhou no relógio e já eram seis e quinze. O jornal já deveria ter chegado – pensou. Normalmente o lia no trabalho e, já que havia decidido chegar atrasado mesmo, decidiu lê-lo em casa. De repente, o barulho tão esperado, o entregador passava o jornal por debaixo da porta. Correu até lá e mirou logo na manchete principal. ‘‘Filha de empresário ainda desaparecida’’. Só se fala disso, parece que não tem outro assunto. É impressionante como a desgraça alheia vende jornal – pensou. Leu o jornal lentamente, observando os mínimos detalhes, percebendo se havia alguma falha gráfica, algum erro de português. Era uma pessoa muito exigente e perfeccionista na sua profissão e aquilo era a sua criação diária, a sua obra prima, e, portanto, necessitava de total atenção. Por toda essa dedicação ao jornalismo Manfred já havia sido muito bem recompensado. Depois de muito trabalho duro, conseguiu um emprego como repórter no Jornal Dacidade, onde, aos poucos, foi conquistando seu espaço e hoje é o diretor do jornal. Olhou mais uma vez para o relógio, eram seis e quarenta. Dessa vez o seu lado caxias falou mais alto e, então, resolveu partir. Arrumou-se rapidamente e mal teve tempo de se despedir da mulher, que dormia silenciosamente. Desceu correndo, pegou o carro e se dirigiu para mais um dia de trabalho.
22:29 - dia 21 de janeiro.
Na portaria de um luxuoso prédio falava um repórter do Jornal Dacidade, ao vivo, com ar sério:
- Estamos aqui, ao vivo, do prédio Le Pistache, na Zona Sul da cidade, onde estamos tendo acesso às primeiras imagens do terrível crime que aqui aconteceu. Vamos ver se encontro alguém por aqui... Ah, aqui está. Bom, qual o seu nome?
- Meu nome é Carlos Aílton.
- Você viu alguma coisa? Você sabe o que realmente aconteceu aqui com seu vizinho?
- Olha, sinceramente, ele sempre me pareceu um cara muito pacato, gente fina mesmo, e tudo isso que aconteceu me surpreendeu tremendamente. É difícil de acreditar.
- Mas, por favor, o senhor sabe de alguma coisa?
- Cheguei um pouco mais tarde do trabalho hoje e quando vi essa confusão toda, já pensei no pior Entrei em casa e minha mulher já foi logo me falando o que tinha acontecido. Eu não acredito que ele possa ter feito isso, era uma pessoa tão calma. Mas ele deve ter lá suas razões, essas coisas sempre têm um motivo sério. Matar a mulher e depois se jogar aí de cima, não é mole não!
- Ah, então, muito obrigado pela entrevista – disse o repórter. Fez o câmera focalizá-lo por inteiro, como haviam combinado, e continuou. Realmente estamos todos estarrecidos e, nesses momentos, não há muitas palavras para explicar algo tão bárbaro como isso. Esperamos que a polícia descubra o que realmente se passou aqui e que tudo seja esclarecido rapidamente. Marcelo Damato para o Jornal Dacidade especial, muito obrigado e uma boa noite.
Já fora do ar, o repórter comentou com o cinegrafista:
- Mas que vizinho mala, hein. Não fala nada de útil, não me dá um furo. A gente já ganha pouco, estamos com os salários atrasados e ainda temos que aturar essas pestes. Que bosta! – praguejou. Os dois se entreolharam rapidamente e constataram que um batalhão de concorrentes chegavam ao local. Ficaram com um sorriso na boca - é claro - , mas era, certamente, uma risada meio amarelada, afinal de contas a entrevista havia sido uma porcaria. Bom, pelo menos o furo era realmente deles.
07:17 - dia 21 de janeiro
No caminho da redação Manfred pára o carro no sinal. As ruas estavam começando a encher, o movimento de pessoas crescia, a cidade começava a funcionar e, de repente, do nada, Manfred se desligou do mundo. Ele ficou, por segundos, com a sensação de que o tempo tivesse parado, só para ele. Se recobrou, olhou para o relógio e pisou fundo no acelerador. Quando chegou e viu que a sua vaga estava lá, esperando por ele, como sempre, entrou na sua rotina. Subiu o elevador, chegou na sua sala e, de saída, soube que aquele longo sequestro apresentava novos fatos. Isaura, sua secretária, veio com a notícia:
- Sr. Manfred, graças a Deus! Parece que os sequestradores entraram em contato com a família e pediram o resgate.
- Isso aconteceu quando? - indagou. Mais alguma bomba Isaurinha? –
- Não, Manfred, por enquanto é só isso mesmo. Olha, o pessoal já está te esperando lá na sala de reuniões. Falando nisso, o que houve? Por que chegou tão atrasado desse jeito hoje?
- Não sei o que aconteceu. Passei a manhã inteira pensando na vida. Sabe como é, são tantos pepinos para resolver – respondeu. Correu para a sala de reuniões e lá encontrou com todo o pessoal. Entrou de sopetão e foi logo querendo saber maiores detalhes sobre as novidades do sequestro.
- Gil, como é que anda essa história da menina. Tá sabendo de alguma coisa?
- Olha Manfred, infelizmente, nós estamos com as mesmas informações que todo mundo têm – respondeu o repórter.
- Então, faz o seguinte. Manda uma equipe para a casa dos pais, faz umas fotos e tenta pegar algum depoimento da família. De repente, eles estão querendo aparecer, dar algum recado paro os bandidos, sei lá. Vai lá no comando dessa equipe, ok. O repórter saiu rapidamente e partiu em busca do furo. Depois que todas as pautas foram definidas, alguns membros do grupo chamaram Manfred para conversar. Quem tomou a dianteira foi Jarbas, um funcionário antigo da casa. O tom era de cobrança.
- Vem cá Manfred, como é que anda aquela situação dos salários atrasados? Tá todo mundo desesperado, a gente não vê a cor do dinheiro há três meses. Não dá mais para continuar dessa maneira, nós temos famílias. Já tem um grupo querendo iniciar uma greve. Manfred, você é o nosso interlocutor com o patrão, só você pode resolver isso.
- Fique tranquilo Jarbas. Hoje mesmo estou indo falar com o Sr. Magalhães para ver como é que anda isso. Pode deixar comigo – respondeu. A empresa passava por um período difícil, alguns anunciantes haviam deixado o jornal e a prioridade da empresa passou a ser a TV Dacidade. Houve cortes e ,portanto, Manfred começava a ficar em baixa com o pessoal. O próprio Manfred já estava com alguns atrasos e agora, para piorar, o começavam a cobrar uma postura dele.
Resolveu voltar para sua sala e pensar um pouco sozinho, estava com a cabeça a mil. Aquela vontade que tivera de manhã, voltava. Queria largar tudo e torcia para que, pelo menos mais uma vez, o tempo congelasse para ele novamente. De repente, o telefone tocou, o que fez com que voltasse para a realidade. Do outro lado da linha estava uma de suas mais antigas fontes. Manfred pouco falava e prestava bastante atenção na conversa.
- Você tem certeza que era ela? Marcos, você tem certeza absoluta disso? Então, quer dizer que viu com os seus próprios olhos. Tá, eu acredito em você, afinal nunca mentiste para mim – falou. Depois desse telefonema Manfred mudou totalmente seu humor. Estava com uma fisionomia péssima, os cabelos estavam desarrumados e os olhos vidrados. Ligou para a secretária e falou que sairia mais cedo para almoçar.
23:15 - dia 21 de janeiro
- Estamos aqui, novamente falando do prédio Le Pistache, onde temos novas e preciosas informações sobre o caso de assassinato. Aqui ao meu lado está o delegado Maciel que vai nos dizer a situação de momento – disse o repórter do Jornal Dacidade.
- Olha, o quadro que encontramos lá em cima foi o que vocês estão noticiando mesmo. Infelizmente, foi um terrível assassinato seguido do suicídio do assassino, o Sr Wilson. A casa estava toda revirada, o que demonstra que houve luta, e encontramos o corpo da sua esposa no chão da sala. O cadáver do Sr. Wilson, como sabem, foi achado aqui no chão da calçada.
- Delegado Maciel, muito obrigado pela entrevista, ela foi muito esclarecedora. Bom, terminamos agora mais um plantão de notícias e, em breve, entraremos no ar de novo para trazer novas informações sobre esse caso que está chocando a cidade. Uma boa noite e até daqui a pouco. Marcelo Damato, para o Jornal Dacidade.
14:29 - dia 21 de janeiro
Na volta do almoço, Manfred tinha um compromisso importante. Havia combinado que faria uma participação num debate sobre a economia atual do país, na rádio de um antigo colega de redação. O amigo o recebeu calorosamente e tiveram que se apressar um pouco, já que a mesa-redonda já estava para começar. Chegou a vez de Manfred falar e o perguntaram o que achava da postura de alguns políticos nacionais que estariam traindo o país ao promover privatizações bastante tendenciosas.
- Olha, sinceramente, eu acho a maior sacanagem. Esses caras têm que sair de cena, eles estão acabando com o país. Eles não entendem porra nenhuma. A verdade é que são uns desgraçados. Tomara que morram! Ah, como eu odeio esses babacas – praguejou. Todos os outros presentes não acreditavam no que haviam escutado. Como era possível que um profissional do gabarito de Manfred pudesse falar algo tão absurdo e ofensivo quanto aquilo. Depois disso não perguntaram mais nada para ele e até o liberaram antes do fim. Manfred recolheu suas coisas, pediu desculpas, disse que não estava num bom dia e se despediu.
Voltou para o trabalho e quando entrou em sua sala, foi avisado por Isaura que o patrão queria falar com ele imediatamente. O Sr. Magalhães era uma boa pessoa e Manfred tinha um bom relacionamento com ele, mas não admitia que algum funcionário seu cometesse qualquer deslize. Partiu para o encontro sabendo que escutaria um monte, já que, provavelmente, o chefe havia escutado a entrevista. Entrou, saldou-o com simpatia, na tentativa de quebrar o gelo, mas sua estratégia não funcionou muito bem. O Sr. Magalhães estava furioso. Praticamente não deixou Manfred falar e gritou com ele o tempo todo. Até quem passava pelos corredores escutava a bronca que tomava. Ele foi escutando calmamente, sabia que estava errado, contudo chegou um momento em que não resistiu mais, e explodiu:
- Olha, não me leva mal não, mas você não tem a menor moral para falar comigo desse jeito. Eu trabalho aqui há muito anos, estou trabalhando de graça há uns três meses, e a culpa é da sua merda de administração, e, portanto, não admito que fale assim comigo. Quer saber de uma coisa? Vai para o inferno! – vociferou. Manfred saiu da sala bufando, nunca havia levantado a voz para ninguém dessa forma, e foi direto para a sua sala. Ao chegar, recolheu todas as suas coisas e foi embora para a casa.
Para descontrair e relaxar um pouco, Manfred decidiu passar num bar e beber alguma coisa, afinal estava um caco e não queria chegar em casa dessa maneira. Perambulou por alguns lugares até encontrar antigos amigos num boteco perto de casa. Ficou bebendo durante algumas horas e, pela primeira vez no dia, estava totalmente relaxado. Entre uma rodada e outra, a conversa descambou para o futebol, um tema que pouco se interessava e entendia, mas, mesmo assim, resolveu dar os seus palpites também. Geraldo, um velho colega de primário, o perguntou :
- E aí, Manfred, o que acha do Diniz, aquele jogador que trocou de clube e foi para o maior rival? Que traição, né. Fala o que você está sabendo disso tudo pra gente. Você não trabalha num jornal? Deves saber de todos os detalhes, não?
- Bom, sinceramente, esporte não é muito a minha praia , mas quer saber de um negócio, esse cara é um sem consideração. Isso não se faz, é uma tremenda sacanagem. Como é que ele troca de clube assim dessa maneira, ainda mais para o maior rival. Eu comparo isso a uma mulher que está traindo o marido com o melhor amigo. Merece queimar no fogo do inferno – falou, bastante nervoso. Até ali, a conversa era calma, ninguém havia se exaltado daquela maneira, e, afinal de contas, a pergunta havia sido inofensiva. Ninguém entendeu nada e todos olharam torto para Manfred. Sentindo o clima, ele se levantou da mesa e, parecendo que tinha um compromisso urgente, saiu apressado.
21:21 - dia 21 de janeiro
Ao chegar em casa, Manfred parecia estar um pouco mais calmo. Mas, era só aparência. Assim que passou pela porta, lembrou-se do péssimo dia que tivera até então. Seus colegas o cobravam uma providência em relação aos salários atrasados, estava com várias matérias importantes para fechar e, para finalizar seu dia, havia discutido feio com seu chefe. O que poderia acontecer de pior?
Encontrou com sua mulher no quarto e a perguntou :
- Alguém me ligou?
- Oi amor, tudo bem. Não vai nem me perguntar como foi o meu dia primeiro?
- Ah, desculpe. Fez alguma coisa de especial? – perguntou, sem vontade. Aposto que fez as mesmas coisas de sempre, não é?
- Você é um jornalista nato mesmo. Fico impressionada como adivinha as coisas – respondeu brincando. Para falar a verdade, fiz exatamente o que faço todo dia.
- Eu sei, eu sei de tudo Ana – disse, com um tom amargo.
- Manfred Wilson, deixa de brincadeira. Do que está falando?
- Ora Ana, eu descobri o que anda fazendo durante as suas tardes livres. Você está me traindo, sua meretriz desgraçada. Eu já sei de tudo direitinho, botei o Alfredo na cola. Para falar a verdade, eu já estava suspeitando há muito tempo, mas não queria acreditar. Você achava que não iria descobrir, que iria ser esse idiota a vida toda ?
- Você é um imbecil mesmo, Manfred. Eu não aguento mais o nosso relacionamento. Você é só trabalho, não presta mais atenção em mim. Eu não tive alternativa, vivia sempre sozinha. Você sabe o que é isso? Garanto que não – disse, emocionada.
- Olha, me desculpa., mas isso não é justificativa para acabar com o nosso casamento assim. Eu não vou nunca mais te perdoar – falou furioso.
- Quer saber de uma coisa, por mim não tem problema. Eu não te suporto mais mesmo. Eu quero a separação, e quero agora. Amanhã mesmo vou procurar um advogado – disse a esposa. Quando ela terminou de falar e, finalmente, olhou para o marido, ficou aterrorizada. Manfred segurava a sua velha pistola na mão e, nesse momento, o tempo parou novamente para ele. Quando se deu conta da realidade de novo, já era tarde demais. Disparara dois tiros certeiros na mulher, um na cabeça e outro na barriga. Ela morreu na hora. Manfred ficou paralisado por alguns minutos, sem saber o que fazer direito. Pegou o telefone, ligou para a redação do jornal e disse:
- Isaura, manda uma equipe de TV rápido aqui para o meu prédio. Acho que tenho um belo furo. Manfred largou o telefone, olhou um pouco para o céu, admirou as estrelas, relaxou um pouco e aquela sensação voltou outra vez. Dessa vez para sempre.