Na minha infância, precisamente na escola primária, eu vivia um mar de confusos sentimentos, até então, intraduzíveis para mim. Meus colegas expressavam os seus com futebol, brigas de rua, banhos no rio ou roubando frutas no sitio do Coronel Firmino. Eu me sentia muito mais um espectador do que um protagonista do meu cotidiano, embora algumas vezes (confesso) eu participasse desses atos. Toda uma nova geração que era fã de “He-Man” e “Caverna do Dragão” agora assistia a volta dos seriados japoneses à tv brasileira e perdia horas em discussões sem sentido para saber quem era melhor: “Jaspion” ou “Changeman”. Debates que sempre terminavam com a esperança de um dia ser exibido um suposto episódio em que eles lutariam entre si – algo que jamais aconteceu. (Eu preferia “Lion Man”, mas como a tristeza não agradava aos meus amigos não havia com quem eu pudesse conversar sobre aquela amargura nipônica).
No segundo semestre aguardávamos ansiosos pela chegada das estagiárias. Era o momento em que alimentávamos nossas fantasias pueris, impossível de serem saciadas em uma escola de professoras consideravelmente bem mais velhas. A aplicação de brincadeiras na sala de aula nos aproximava mais do conteúdo escolar, e em momentos de puro exibicionismo todos se esforçavam para obter notas melhores. Chegada a tão esperada hora, a diretora nos apresentou um estagiário. “Um estagiário?”. “Deve ser um engano”. “Não pode ser”. “Onde está a estagiária?”. Mas era verdade. Ele se chamava Jorge e era um negro alto, forte e muito elegante. Contrariados, e sem outra opção, tivemos que aceitar. Em pouquíssimo tempo, aquele estagiário inicialmente rejeitado, conquistou todos nós. Extremamente educado e inteligente. Conhecedor dos mais diversos assuntos, suas estórias nos fascinava e contagiava. O anúncio do fim da aula, que era seguido por uma correria para casa em busca da TV, foi trocada por mais um pouco do carisma daquele, já para nós, professor.
O Professor Jorge fez algo por mim, provavelmente indiretamente, que deu sentido a necessidade de tradução que eu buscava sem saber. Apresentou-me a Poesia. Ele, que escrevia belos versos, também falava com muita sensibilidade e propriedade sobre outros poetas. Instantes de palavras, silêncio e emoção. (Quando assisti, três anos depois, ao filme “Sociedade dos Poetas Mortos” foi inevitável a identificação). Neste mesmo ano, com a sua valorosa ajuda, venci um concurso estudantil de poesia. Desde então minha vida ganhou uma visão singular e muito particular de tudo que me rodeia.
* * *
Recentemente, ao chegar no meu trabalho, um homem de postura curvada, esquelético (a roupa praticamente o engolia) e gestos lentos, tentava sem sucesso abrir a porta principal. Rispidamente perguntei: o que deseja?
- Dona Telma trabalha aqui? – a voz vinda quase como um sussurro respondeu com uma pergunta a minha. Ao olhar aqueles olhos quase sem brilho percebi quem se tratava. Aquele homem, ainda jovem, sofria de algum mal degenerativo que lhe presenteava uma imagem que em nada lembrava ele próprio. Sem saber o que fazer, e sem saber se dizia que o reconhecia, respondi apenas: Não, não trabalha aqui. Arrastando os pés no chinelo e a cabeça escondida num chapéu ele se retirou, enquanto eu o observava mais um pouco antes de submergir nas minhas recordações...
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