Só os muxarabiês verdes dormiam, as janelas de Teresa. No escuro da sala, Filipe sentado à mesa tomava seu café de começo de noite, enquanto Teresa arranjara um conforto no sofá antigo, refestelada entre almofadas, as pernas esticadas sobre o banquinho de herança da vovó Lita. No colo, um prato com um pedaço de bolo de chocolate e uma xícara de café vazia. A borra do café lhe sorria figuras deformadas no fundo da xícara, num convite para a decifração de enigmas, mas não haveria enigma nenhum enquanto o livro que dava conta desses mistérios perdurasse ausente, fora do alcance dos olhos. O livro podia estar em tanto lugar que acabava não estando em lugar nenhum, e cansava pensar nos seus possíveis destinos, dava uma sensação de uma só e única impotência. A borra do café continuava a sorrir figuras - figuras deformadas -, mera coincidência de um simples café mal coado. Por quantas e quantas vezes Teresa se veria encurralada pela realidade, parecendo estar sempre desprevenida para os momentos que lhe vinham!
O pensamento inaugural foi cedendo lugar a outros menores, que vinham numa colagem malfeita, uns lá e outros cá, em desrespeito a qualquer nexo, fosse de tempo, fosse de encadeamento, sem uma mínima lei a respeitar. Um aguilhão distraído ia puxando a trama de sentimentos profundos, e de repente todos os detalhes adormecidos vinham à superfície, então acabava sendo terrível não se contentar com a visão primal da coisa, aquela visão que puxa pelo nosso apetite sem nenhum mensageiro que venha despertar o coração, esse senso que vem montado no primeiro olhar, com a cor que se vê, sem o contorno costurado, e ficar puxando o fio solto do pensamento para desenredar a trama toda, matando, ponto a ponto, toda a harmonia.
Deixasse os mortos descansarem na sua santa paz. O passado ficasse lá sem deixar rastro, sem querer sair no faro de coisas que já teriam passado, sem querer bulir com o destino. Era como se um terrível monstro dormitasse, ou no máximo fizesse sua sesta, diariamente, coisa de no máximo duas horas.
A idéia era esta: o monstro dormia, e enquanto ele não acordasse, Teresa tinha de matar seu tempo, inventando um rol de coisas para fazer. Tanta pressa, antes que a fera estremunhasse. Teresa tinha de repetir ladainhas, rezar o santo ofício, e com isso ia se arrastando nesses cordões a ver se dava conta de embrulhar as bruxas e fantasmas que inventavam de lhe avassalar e de lhe querer uma mulher de puro siso.
Se lhe fosse dada a primazia de fazer escolhas, Teresa bem que preferia sua loucura costumeira, tranqüila e pacífica, o acomodar do corpo no gasto do sofá acostumado com sua anatomia. Ela se sentava naqueles estofados, desestofados no lugar certo, e ficava mais pacificada, como se o corpo encontrasse sua cova em vida e ela se consolasse em saber que não era espectro de si mesma, mas antes um esqueleto com boa carnação, que sabia gastar bancos e por isso mesmo, devia, afinal, existir em carne e ossatura naquela sala no santo momento em que o relógio desse suas badaladas angustiosas, gritando o tempo que faltava a ouvidos moucos que nele viam apenas um penduricalho de parede, nada de dentes e antenas imantadas.
Teresa, assim sentada, com as pernas meio inchadas de tanto não se sentarem durante o dia num sacrifício que ela própria se impunha, recordava-se, mesmo que sem querer, de tudo. E por mais que se lembrasse de tanta coisa, o que rezava e pedia era sempre esquecer e esquecer, e não se lembrar nunca mais de nada. Queria se renovar a cada minuto, queria ser uma nova Teresa, sempre pronta a refazer a maquiagem, a trocar de vestido. Assim, já não escutava aqueles tique-taques sem fim do relógio, assim já não lutava contra a idéia de admirar a beleza para depois se contentar com a lembrança do que vivera e amara. Agora vinha à idéia tanto lugar possível para se esconder o bendito livro de enigmas, tanto canto de poeira, mas Teresa não ia se levantar nunca daquele sofá gasto para sair à cata do que quer fosse. Aquele momento era de procuras e buscas, meu paladar primeiro. Talvez não fosse nem isso - o paladar -, mas o descanso de quem lidou o dia inteiro, e agora enfim achou uma posição ideal para o corpo em seu espaço e não quer largar esse aconchego de jeito nenhum. Nada tiraria Teresa daquele estado de recomposição de seu corpo e jeito, sua descoberta de si, enquanto mordia sem esforço um pedaço do bolo de chocolate. O sabor era insuspeito, conhecidíssimo, não era preciso adivinhar condimentos, nada. Nenhuma surpresa, nem boa nem má, apenas o mastigar conhecido de sempre repetia a infalibilidade da receita. De vez em quando a vida reservava uma novidade ao bolo, quando Teresa tinha de improvisar ingredientes ou quando fazia várias tarefas ao mesmo tempo e acabava errando na receita. Quando isso acontecia, tinha de inventar algo que a salvasse do inferno que é uma receita infalível se esboroar ou, pior ainda, solar a paixão da cozinheira a paladares cruéis. Às vezes inventava um novo nome para o bolo que, feito de maneira diferente, era outro bolo, já que de outra textura, o que significava novo sabor também.
Teresa cumpria seu lanche sem precipitações, degustando pedaço por pedaço, lentamente, suas conhecidas quitandas. Calmamente, ia mastigando, vendo como tudo aquilo era ela, como tudo aquilo era uma vitória sobre as adversidades todas, como conseguia compor aquela alquimia até conseguir reduzir todas as angústias e amores a rosquinhas e biscoitos. Não sentia palavras, o sentimento vinha e permanecia sentimento, enquanto durasse o sabor da quitanda, o café quente e forte, a mesma marca entrando na sua casa há anos, sem nenhuma concessão a comerciais desse ou daquele café de grãos saborosos.
Lançou um olhar lento e premeditado ao marido, sentado a sua frente na mesinha redonda de quatro cadeiras. Ele tinha os mesmos cabelos viçosos e espessos, escuros como o breu da noite, seu cartão de visitas. E Teresa cansou-se de pelejar por apagar idéias e arvoramentos, acabando no entanto, nesse jogo de subterfúgios, por ressuscitar visões toldadas de seu passado – recortes -, que vinham e voltavam em flashes, num jato de desodorante spray apertado com força. As imagens iam aparecendo uma e outra, e não se tiraria nunca uma máxima daquela história. Lógica nenhuma no despreparo.
Teresa não ficou fazendo comparações. A seu modo ainda era feliz, mais talvez do que supusera fosse um dia. Riu consigo. Ingênua naqueles tempos. Filipe era mesmo sua cara-metade, e, dessem a ele os paramentos de um príncipe consorte, ele se desimcumbiria de seu mister com desenvoltura – o rapaz tinha presença. E Teresa riu gostoso, desta vez um riso sonoro.
Tanto se entregou a este enlevo que baixou a guarda e começou a supor um rosário de coisas. Filipe como se assustou, mas depois recobrou aquele olhar sereno de quem ainda não voltara, ele também, dos últimos devaneios. Sua mente vagava no silêncio de noite caindo, e ele, à falta de música, estaria flutuando distante, talvez até ainda meditasse sobre os últimos acontecimentos do dia, talvez relembrasse os compromissos que deixara para trás, que não conseguira trancar à volta da chave na fechadura. Confortante mesmo era saber que estava de novo em casa, e todos os problemas nesta vida aqui dentro não iriam além de pequenos consertos domésticos.
- De que você ri? - perguntou, sorrindo (seu jeito).
- Estou comparando você aos príncipes que eu idealizei. Ei, mas não pense que a comparação tenha-lhe sido desfavorável! Afinal, você é mesmo um príncipe, veja só, com esses cabelos que eu adoro! - e passou os dedos abertos sobre a cabeleira negra de Filipe, assanhando-lhe o cabelo bem-comportado .
- Não faça isso, droga! Você sabe que eu não gosto que me desarrumem o
cabelo!
Filipe não brincava mesmo. Nervoso, fincou os pés no chão, afastando a cadeira com o corpo, e levantou-se de súbito, tomando o rumo certo do quarto. No seu prato ficaram restos de um pão de batata, uma fatia de bolo de chocolate, ao lado da xícara de café forte, como ele gostava. (Teresa adorava deixar sua marca em tudo o que fazia. Sempre ria dizendo, quando alguém lhe perguntava o que havia posto naquele arroz delicioso, que era uma gota de seu suor. Com o tempo, foram parando de lhe fazer perguntas, porque afinal ninguém gosta mesmo de historietas sem sal.)
Teresa bem que quis levantar-se instantaneamente ao marido, como sempre fazia, já que o tempo a fizera acostumar-se a adivinhar os ímpetos do moço com a velocidade de um controle remoto. Desta vez, as pernas lhe pesaram ainda mais, e ela não foi atrás de nada. Estranha essa hora. Neste momento, meu Deus, uma bomba de hiroshima não faria Teresa levantar palha do lugar em que se encastelara mansa e sonsamente. Cumpria. Mastigava um pedaço de bolo porque tinha de mastigar aquilo. Se precisasse se levantar para pegar aquele costumeiro copo d’água para o marido, acho que morria. Se dependesse dela para qualquer coisa que exigisse sair daquela posição de pernas esticadas e cotovelo esquerdo descansando sobre o braço do sofá, aí então é que era melhor desistir. Naquele instante, engraçado, ela perderia todas as guerras, as surdas e as escandalosamente apregoadas, em benefício de seu conforto piegas e baixo. Era tudo tão casado, que ela não tinha coragem nem para questionar o porquê daquela indisposição. Que bom deixar rolar! E por mais que ainda tentasse se auto-avaliar, essas coisas, não conseguia trazer idéias ao campo de luz onde se escondia agora.
Nada era inédito nesse acontecimento. Essa atmosfera já soprara antes, num dia em que, talvez pelo excesso de tarefas diárias, viera a mesma inapetência a correr em busca de boas passadas de mão na cabeça de seu “ursinho” Filipe.
Enquanto permanecia na sala - a cadeira afastada da mesa onde antes havia um marido tomando seu café -, Teresa já não apertava desodorantes do passado nem pensava nos deveres de afagos do presente. Agora o que lhe vinha à idéia era o amanhã de sexta-feira, dia de fazer a faxina para passar o fim de semana tranqüila, ao lado do príncipe-urso. E por ali foi ficando, o pensamento rabiscando uma folha em branco, assim e assim, o pensamento comendo solto entre o conserto da cafeteira e o banheiro que precisava de uma boa escarafunchada entre os azulejos, também desta vez não vou atrás dele, que durma sem mim. Teresa aguardou por um minuto o certeiro chamado de Filipe. Silêncio absoluto.
Poucos dez minutos, o ronco manso vindo do quarto. Sossego, uma tarefa a menos. Ah, Filipe, se soubesse que o amor às vezes cansa tanto, tanto! Ainda bem que dormiu, amanhã vejamos. Teresa sentia um certo receio de entrar no quarto e acabar por acordar o marido que dormia pesadamente, a considerar o ronco já prolongado. Entre tantos esforços de pensares e decidires, Teresa baixou a cabeça sobre o peito cansado e cedeu ao sono também.
Acordou com o barulho pesado de um mundo que desabava lá fora. Ligada na tomada, saiu correndo a fechar janelas, evitando que raios entrassem pela casa trazendo o mal. Mas chuva aquilo não era.
“Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...”
Máscaras de papel machê escondiam feições gregas de terror, confetes e serpentinas rodopiavam em chuva sobre as cabeças cantantes e ridentes, aquele coro sem harmonia de vozes em desespero ouvia-se de longe, e vinha vindo, vinha vindo até explodir num grito só, aqui e ali algumas vozes retardatárias se ouvindo distintas. A multidão dava medo quando vinha nessa marcha, engolindo tudo, se comprimindo, se agüentando junta, espremida pelas ruas estreitas. Naquela hora uma criancinha devia estar escondida debaixo da cama. Mesmo os adultos que acompanhavam de suas janelas a movimentação patética de algo que já passou e, ressuscitado agora, movimentava-se embalsamado, faziam de conta que se emocionavam com aquele quase vandalismo, lá longe trios elétricos explodindo na praça central, num encontro de cores e sons pontiagudos.
Teresa sentiu uma pontada no calcanhar, como se tivesse pisado num prego. Nem se deu ao trabalho de abaixar para verificar, pois conhecia aquela fisgada que lhe vinha em lugar do usual arrepio. A vida lá fora em ebulição, num grito, a vida aqui dentro trancafiada entre muxarabiês. Atirou pensamentos a esmo, lembrou passagens do início, mas não acertava o acorde com a melodia. Meu Deus, como de repente as coisas pareciam repetidas! O dia de hoje parecia arremedar o de ontem. Tudo tão amarrado, previsível. Como tinha medo de que um dia isso viesse a acontecer, e agora... Lembrou-se da conversa ensaiada que presenciara desde menina, a mãe rezando ave-maria, o pai respondendo padre-nosso, num desafio macabro. Com ela isso não seria, tinha se prometido. Só que de tanto ensaiar esquecimentos, já não se lembrava das palavras exatas entoadas à promessa de outrora, por isso agora se deixava navegar na vaga daquela hora morta de aguardo do fim do dia.
Suas roupas tinham se tornado brancos uniformes. Pôde notar que ultimamente vinha se interessando por roupas alvíssimas, e não havia sabão em pó nem água sanitária que dessem jeito no branco ideal que vinha buscando. Por que tanto empenho?
Estaria se punindo, se matando, dia a dia, sepultando aquela imperfeição tão gostosa que experienciamos quando provamos uma coisa pela primeira vez e agradamos do sabor. Pareciam irremediavelmente esgotados seus prazeres. Ou teria ela própria matado todas as possibilidades de a surpresa aparecer? Ou teria se amestrado tão perfeitamente que hoje nada mais lhe ganhava uma ruguinha de sorriso? Era assustador. Faltava-lhe coragem para abrir baús antigos e folhear papéis amarelecidos e sujos. Parecia estar fuçando mausoléus, exumando uma felicidade sepultada desde cinco longos anos.
Mas infeliz não, não era. Tinha uma felicidade sonhada, planejada uma vida inteira. Mas, por Deus, enfim, não teria sabido sonhar? Um vazio imenso gritou-lhe oco e Teresa sentiu uma náusea. Mesmo assim, nem de longe a vontade de se debulhar em lágrimas. Deixasse o carnaval de rua chorar por ela, que mais? Pior do que a infelicidade era essa vida morna, sem precipitações, esse limo em que vegetava sua sobrevida. Anulara-se, e sua dor não tinha par naquele carnaval que fervilhava nas calçadas de pesados tijolos de pedra. Sombras de pés coloridos rodopiando e se arrastando vinham-lhe à mente, aquele carnaval lá fora parecia não temer nenhuma chuva. Via um borrão de tintas misturadas escorrendo daquelas silhuetas fantasmagóricas, magras e altas, escorregadias, na tempestade que jorrava, mas nada aplacaria a luz dos olhos crescidos e vibrantes que se desprendiam das almas em procissão. Tinham um santo ofício a rezar naquelas vielas íngremes, aquela era sua apoteose, seu sacrifício de viver no fluir do vento que soprasse e rodopiasse esqueletos no meio certo do redemoinho, sem a vista de nenhuma brisa mansa.
A vida estagnara-se quando se fizera mais plena. O enxoval de Teresa, montado ano a ano, enfeitava fundos de bandeja, agulhas ainda trabalhavam seu tempo com alguma habilidade, tudo ainda cheirava a sachês de alfazema, o mesmo perfume anos e anos. A vida era um longo ensaio. Mas ensaio para que final? Aí é que estava. Um ensaio para uma peça sem nenhum enredo, no máximo para um documentário de curta-metragem. As falas pareciam mal decoradas, os gestos gastos. Tudo naquela casa falava-lhe aos ouvidos. Não era no banheiro que sempre chorava suas mágoas? Isso há cinco anos. Nunca mais pingara uma lágrima de seus olhos. Mesmo assim, era no banheiro que ela cantava e representava para o espelho novos olhares e trejeitos para... não havia para quê. Apenas ensaios.
A mesa redonda de quatro cadeiras que comprara a preço de ocasião, que sorte!, a mesa de centro que custara os olhos da cara, o sofá que era melhor nem lembrar, viera com um arranhão porque o vendedor não concordara, de jeito nenhum, em trocá-lo... as colchas bordadas a mão, algumas lembrança da falecida Dona Lita, a saboneteira, os copos para visitas, os copos para uso dos de casa... o tapete! Era assustador, era sem volta, era fato consumado. O arrastar da serpente, condenada por Deus no paraíso... a árvore da ciência, o fruto proibido... provara o gosto cedo demais, agora só restava amargar um fim cor-de-rosa pelo resto de seus dias, sem esperas, sem contas nos dedos, sem unhas roídas, sem fios de cabelos soltos pelo chão, vagando escondidos. Filipe era um companheiro de infortúnio, passageiro do mesmo navio de luxo naquele cruzeiro vagaroso bordejando o porto seguro, sempre com terra à vista.
Aquele corpo entre as cobertas parecendo feito de gesso, aquele corpo era de Filipe. Preferiu nem lembrar em que conceito tinha aquele ser noutros tempos, mas agora... preferiu não comparar a ansiedade de antes com a certeza da felicidade de agora. Levantou uma ponta de coberta que pendia da cama e foi vasculhando, sem perceber direito o que fazia, aquele corpo inocente a tanta angústia sua.
Filipe acordou súbito e quase gritou de susto ao observar diante de si aquela estátua depredada de jardim sem dono. Arrepiou-se e sentou-se, numa pergunta. Graças a Deus, muito embora tudo em Teresa cheirasse a nada, a moça ainda tinha um sorriso muito bem ensaiado para dissipar qualquer sombra de dúvida.
O carnaval ia longe agora. Atrás, ficara o rastro de uma barrela multicor. Nenhuma nuvem no céu.