Então falou Deus todas estas palavras, dizendo:
“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”
I
“Não terás outros deuses diante de mim.” Êxodo 20:3.
II
“Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.” Êxodo 20:4 a 6.
III
“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.” Êxodo 20:7.
IV
“Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou.” Êxodo 20:8 a 11.
V
“Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.” Êxodo 20:12.
VI
“Não matarás.” Êxodo 20:13.
VII
“Não adulterarás.” Êxodo 20:14.
VIII
“Não furtarás.” Êxodo 20:15.
IX
“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.” Êxodo 20:16.
X
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.” Êxodo 20:17.
E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando: e o povo, vendo isso, retirou-se e pôs-se de longe.
E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale Deus conosco, para que não morramos.
Começava a dominação do homem pelo homem...
I
“Não terás outros deuses diante de mim.”
Êxodo 20:3.
Andorra la Vella, Andorra
Sr.Ludwig era um homem como qualquer outro. Tinha seus desejos, suas alegrias, seus medos, suas filosofias e, principalmente, sua fé. Como um “bom católico” que dizia ser, freqüentava sempre aos domingos as missas. Um “bom católico” freqüenta a missa somente aos domingos. Pois é direito do homem pecar a semana toda e conseguir a sagrada salvação aos domingos. Esta salvação vinha pelo homem escolhido por Deus, o padre, que salvava as almas do inferno apenas com uns dois ou três sermões. Como era tedioso ouvi-lo! Sr.Ludwig desligava da missa os pensamentos e vagava por outras terras. Não era só ele que fazia isso, crianças cochilavam confortavelmente nos colos de seus pais que faziam um incrível esforço para prestar atenção às palavras santas.
“Se para estar ao lado Dele devo fazer isso, que assim seja.” – pensava Sr.Ludwig. Afinal o homem deve se submeter aos anseios de seu Pai e, agradecê-lo, por não abandoná-lo no mundo como fez ao seu filho mais amado. Os conformados pensam: “Essa é a cruz que Deus me deu.” – mas Sr.Ludwig não pensava assim, ele simplesmente pensava: “Um dia terei meu lugar ao lado Dele.”. Tentando se livrar da verdade, ele agora cantava um dos muitos hinos que a Igreja imprimira nos folhetos da missa. São lindos! Têm uma rima paupérrima mas alegram o coração.Têm uma letra sem mensagem mas causam emoção. Sr.Ludwig era um “bom católico” que sabia todas de cor. Mas sua parte preferida da missa era quando o padre, talvez por modismo ou por não saber mesmo, abria a bíblia e lia alguns trechos desse magnífico livro escrito pelas mãos que derramam sangue, as dos homens. Era emocionante ver os olhos do Sr.Ludwig úmidos. Eram lágrimas tão verdadeiras! Somente poderiam ser comparadas com as de Maria ao perder a virgindade para José. Ao ver o sangue que escorria de suas pernas, ela pôde perceber que carregaria o filho de Deus em seu ventre.
Mais enfadonho do que a missa era o final dela. Na porta das Igrejas, as beatas conversavam com aquela alegria e motivação que só uma boa dose de Deus poderia causar: “Domingo que vem estaremos aqui, fulano”, “Com certeza virei. Nunca falto à missa de Ramos...”, “Se Deus quiser eu virei...”, acho que isso basta para compreendermos o espírito do domingo na vida daquelas pessoas. Sr.Ludwig cumprimentava todos seus conhecidos e seguia para casa contente em ter se livrado de seus pecados, contente por poder pecar de novo durante a semana e ter a certeza de que seria absolvido novamente no domingo.
Nas ruas tranqüilas de seu bairro ele caminhava sem demora. Passava na padaria mais próxima para beber seu café e comer seu pão-de-torresmo, depois seguia novamente. A missa terminava às oito e meia da manhã. Sr.Ludwig notava que não havia jovens nas ruas neste horário – “Em vez de se confessarem ficam em casa dormindo, pobres almas...” – repetia para si todos os domingos. Ele era um “bom católico”. Sabia de seus deveres com Deus. Assim como a maioria das pessoas que sentem o peso da idade, Sr.Ludwig ia à Igreja em busca de salvação. Havia se divertido muito em sua vida: jogava, bebia, freqüentava a casa de cortesãs, brigava, fumava, enfim, fazia tudo o que todos fazem na juventude. Era um simples homem, um homem simples. Sua casa não tinha grandes mordomias (sua vida como funcionário público não lhe rendera muito conforto), era velha, a pintura mostrava que longos anos passaram-se sem que ninguém a refizesse, mas era a sua casa. A mesma casa que o abrigava há trinta e nove anos. A mesma casa que um dia teve o brilho das crianças que corriam em seu quintal. A mesma casa que viu os pais chorarem ao perceber que seu filho casado iria se mudar. A mesma casa que Sr.Ludwig amou a Sra. Judith e a viu num caixão em seu velório. Sr.Ludwig morava sozinho agora. Era um homem feliz, apesar de tudo.
Repetia o ritual todos os domingos: missa, padaria e casa. Num desses domingos após pedir – “O de sempre, sim” – Ele viu um homem estranho sentado próximo ao balcão. Era um homem que expressava ansiedade, pressa em tudo que fazia. Ele devorava seu pão enquanto lia o jornal daquele dia. Sobre o balcão também havia uma enorme pilha de livros. Uns seis ou sete, como pôde contar o Sr.Ludwig. Olhava curioso para aquele homem pois nunca o tinha visto antes no seu bairro. Vestia-se de uma maneira um tanto vulgar para a mente de Sr.Ludwig: um paletó amassado, uma camisa de cor chamativa e calças que estavam com alguns buracos. O homem ao desviar o seu olhar para pegar a xícara de café, reparou que Sr.Ludwig olhava-o espantado.
- Sente-se mal, senhor...
- Ludwig é meu nome. Sr.Ludwig.
- Sr.Ludwig, então. Algum problema?
- O senhor não é destas partes, estou certo?
- Certíssimo. Sou duma cidade que fica a quarenta quilômetros daqui. Vim para visitar meus pais.
- Vejo que o senhor é estudado (Sr.Ludwig adorava dizer essa palavra). Formou-se em quê?
- Sou sociólogo e no momento estou estudando a religião dos homens.
- Ah... que ótimo! Um homem que está estudando o cristianismo. Posso te informar que...
- Eu disse religiões. Não há só a cristã ou católica como o senhor a chama. – disse o homem interrompendo as palavras do Sr.Ludwig.
- E qual outra existe? – indagou Sr.Ludwig em tom irônico.
- Diversas, meu senhor, diversas.
- Pois não conheço outra.
- Isso não me surpreende...
- O que disse, meu rapaz?
- Não disse nada. Bem, tenho de ir embora. Foi um prazer conhecê-lo.
- Tudo bem. Mas gostaria que o senhor viesse me visitar algum dia desses. Para me explicar melhor sobre essas outras religiões.
- Uma outra hora, talvez. Até logo. – respondeu o homem e saiu.
Passaram-se alguns meses sem que o tal homem fosse visto novamente pelos olhos do Sr.Ludwig. “De certo já voltou à sua cidadela” – afirmava ele ao dono da padaria que havia recebido aquele homem tempos atrás. Sr.Ludwig retornara a sua pacata vidinha. Vivia da aposentadoria, de seus jogos de dominó com seus velhos amigos, de sua solidão e de suas missas.
Após se confessar com o padre num certo dia, Sr. Ludwig recebeu um convite desse mesmo - “Venha na quinta-feira ao salão da Igreja, Sr.Ludwig. Haverá uma palestra sobre religião dirigida por um rapaz de uma cidade vizinha. Será muito bom para as pessoas ouvirem o que ele tem a dizer.”
Na noite de quinta aconteceu a palestra. Diante de diversos olhares, aquele mesmo homem que falara com o Sr.Ludwig outro dia, explicou a história de outras religiões. Explicou o judaísmo, o islamismo, o budismo, o paganismo... entre outras. Terminou a palestra com alguns olhares de reprovação, outros de admiração e, como no caso de Sr.Ludwig, olhares de interrogação. Na saída do evento, Sr.Ludwig parou o jovem rapaz.
- Olá, meu jovem. Lembra de mim?
- Hum... recordo-me pouco, desculpe.
- Sou o senhor que você conversou na padaria há alguns meses...
- Ah, sim! Como está o senhor?
- Estou bem, graças a Deus.
- Que bom. Percebi que o senhor não entendeu muito bem a palestra, Sr. Lu...
- Ludwig.
- Sim, Sr.Ludwig. Amanhã terei tempo para aquela conversa que te prometi.
- Que maravilha! Passe lá em casa por volta das dez e meia, tudo bem?
- Sim, se o senhor me der o endereço... – respondeu o rapaz, sorrindo.
- Oh, mil perdões. Deixe-me anotar... vejamos, uma caneta...ah, obrigado!... Pronto, prontinho.
- Obrigado, Sr. Ludwig. Amanhã farei uma visitinha. Até.
- Até.
Na manhã seguinte (quinze minutos atrasados como contou nosso velho) o homem bateu palmas em frente ao portão. Depois de ter sido recebido com palavras gentis do Sr.Ludwig e tomado duas xícaras de café, o homem começou sua explicação.
- Bem, deixa-me mostrar uns recortes...
- Qual sua religião, meu rapaz? – interrompeu Sr.Ludwig sem se importar com os recortes.
- Não tenho – respondeu calmamente o homem.
- Como não?! Mas acredita em Deus?
- Acredito em Deus, mas de outra maneira, senhor.
- Outra maneira? Como... como pode? – tornou a perguntar após ser surpreendido pela resposta do rapaz. Os olhos do Sr.Ludwig transbordavam uma inquietude. Dessas inquietudes que os “bons católicos” demonstram ao terem sua fé contestada.
- Não acredito em um ser Todo-Poderoso que comande minha vida. O único Deus que conheço é aquele que me alimenta e abriga: a Natureza.
- Na-tu-re-za?! – falou Sr. Ludwig sem perceber que sua voz alterara-se.
- Sim, como o senhor se alimenta?
- Ora, de frutas , legumes, verduras, carnes...
- Essas coisas vêm da natureza, ou estou enganado, Sr. Ludwig? – sorria o homem ao debater-se com a ignorância típica da fé Cristã.
- Isso tudo vem Dela. A própria madeira, que os homens consumiam para o fogo e construíam abrigo, é de uma importância enorme! Essa madeira também vem da natureza – tornou a dizer o homem, sem dar tempo para respostas do velho.
- Certo, certo. Mas não acreditar que Deus veja o homem é demais!
- Sr. Ludwig, apenas disse que não acredito em algo que me comande. Sou livre. Nenhuma força maior se encontra em minha vida, ou na sua. Se existisse essa tal força, não existiria a fome que destrói o mundo, não existiriam as guerras que as mães tanto temem, não existiriam as diferenças sociais, resumindo, não existiria tristeza!
- Mas...mas – confuso dizia o Sr. Ludwig ao ter a mente se abrindo para a realidade.
- Desculpe, Sr. Ludwig, mas essa é a minha opinião. Eu respeito a sua. Espero que respeite a minha também.
- Respeitarei.
- Sr. Ludwig, posso provar que as tais “Palavras de Deus” não foram ditas por Ele, mas sim inventadas pelo homem.
- Prove!
- Na Antigüidade havia os povos dominadores e os povos dominados. Devido às conquistas territoriais, os povos dominados passaram a ser escravizados. Qualquer tipo de revolta por parte deles era duramente destruída pelos dominadores. Os dominadores eram politeístas. Quando, finalmente, os dominados conseguiram sua liberdade, seu povo criou uma série de regras que deveriam ser obedecidas. Foram os dez mandamentos. Neles continha o medo ao qual foram expostos por centenas de anos: o medo dos dominadores e seus diversos Deuses. Nada mais normal que, no primeiro mandamento, os homens que escreveram as regras, proibissem qualquer ligação com o passado. Sabe de qual mandamento falo, Sr. Ludwig?
- Sim, eu sei.
- Poderia me dizer?
- Não terás outros deuses diante de mim – disse tristemente o Sr. Ludwig.
- Aí está a sua prova! – sorriu triunfante nosso sábio rapaz.
II
“Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos.”
Êxodo 20:4 a 6.
Lisboa, Portugal
Sob a luz amarelada de uma vela, Antônio escrevia. Colocava nos papéis todos seus pensamentos. Sua mão trêmula denunciava seu passado...
Português nascido em Coimbra, Antônio trabalhava no continente africano. Fazia o tráfico de escravos para o Brasil. Sua convivência com as mais diversificadas tribos africanas, contribui para o aprendizado espiritual. Aprendeu o amor pela natureza. Conheceu as divindades africanas. Respeitou os seres que nas florestas caminhavam, que na água nadavam, no ar voavam e no fogo se suicidavam. Não demorou para que Antônio assimilasse a cultura africana. Converteu-se. Como todo pagão, amava as esculturas representativas da natureza. Neste mundo viveu durante anos.
Devido a problemas internos da metrópole, o exército português teve de ser aumentado. Na África, não demorou para que novos portugueses se juntassem aos demais. Cardeais vieram de Lisboa para fiscalizar o tráfico, a Igreja era forte com a Inquisição ao seu lado. Mesmo trabalhando em lugares mais afastados, Antônio foi capturado pelas garras da Santa Sé devido à denúncias de seus colegas. Levado ao Tribunal de Lisboa, foi julgado pelo crime de não obedecer aos ensinamentos cristãos.
...Antônio escrevia para sua família. Sofrera torturas terríveis. O pé ainda sangrava devido aos cortes, sua costa estava marcada pelos açoites recebidos. Sentença: morte na pira. O Deus cristão havia o castigado. Ele não deveria ter infringido o segundo mandamento...
“O culpado tinha o rosto marcado pela dor e pelas lágrimas. Enquanto caminhava em direção ao local de sua morte, seus lábios cantavam uma estranha melodia. O que surpreendeu a todos que ali estavam foi o fato dele sorrir. Apesar do choro, caminhava com uma tranqüilidade suspeita. Após ser amarrado em seu devido lugar, pôs-se a rir. Ria a bom rir. Como precaução de que aquilo fosse alguma manifestação demoníaca, o santo homem de Deus ordenou que a execução se consumasse imediatamente. O culpado teve primeiro sua garganta cortada. Enquanto o sangue da vergonha escorria pelo seu corpo, a pira foi acesa. Já estava morto quando o fogo começou a consumir sua pútrida carne.
Abade Almada”
III
“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.”
Êxodo 20:7.
Cairo, Egito
Nas madrugadas frias, enquanto o vento cantarolava alguma melodia desconhecida e a chuva teimava em estragar o dia seguinte, Ela escrevia. O simples fato de escrever a tornava livre. Apenas colocava o lápis sobre o papel... tudo o mais era quase automático.
Lembrava de suas brincadeiras e escrevia. Idem ao lembrar de suas felicidades, amores, dores e tristezas. No possível silêncio que reinava à noite, a garota fazia questão de tornar-se nua para sua mente. Doentia muitas vezes era sua imaginação. Arfava o peito antes de escrever sobre morte, sobre suas mortes. Deliciava-se ao ter o sangue em pensamento. E maldizia a tudo.
Das maldições que fazia, a preferida era a Deus. Ela não acreditava em tal ser. As dores a fizeram descrer. Como poderia ter certeza de Sua existência? Por que Ele nunca fizera nada antes ? Por que deixara que seus amores partissem?... Dúvidas e mais dúvidas rodeavam sua cabeça. Ela colocava isso no papel. Escreveu muitos poemas e historias de ódio, de tristeza, de morte, de descrença. Em um dos seus mais preciosos poemas, em que confrontava Deus num diálogo aberto, Ela deixou escrito ao final da página:
“Onde está você que deixa-me blasfemar e nada faz?!”
IV
“Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o Senhor o dia do sábado, e o santificou.”
Êxodo 20:8 a 11.
São Paulo, Brasil
Das necessidades que um homem precisa, a de conhecer o mistério da união é a maior. O prazer de conhecer como dois corpos ocupam o mesmo lugar é o tesouro daqueles que vivem nesta maravilhosa vida.
O Sr.Matias, homem há quinze anos casado, era uns desses que não dispensam beber o néctar de Afrodite na casa de suas filhas. Vivendo em um dos mais belos bairros da cidade, também freqüentava as mais belas casas. Com o dinheiro ganho na sua empresa, Sr. Matias desfrutava com outras aquilo que não conseguia com sua esposa. Talvez por satisfazer-se duplamente ou simplesmente beber em boa companhia, ele tinha sempre estampado em seu rosto um sorriso de tranqüilidade.
- Querido, sua volta à noite começa a ser comentada pelos empregados. Todos os sábados você retorna muito tarde; e ébrio ! – ralhava-lhe a esposa.
- Ora, não preocupe-se ! Você sabe onde bem estou...
- Claro que sei! Está com aquelas malditas! Eu já aceitei isso, mas não deixe que os outros desconfiem. Todos os sábados, Matias, todos os sábados!...
- E o que tem o sábado? Por acaso é sagrado?! – ria-se o bom homem.
V
“Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá.”
Êxodo 20:12.
Helsinque, Finlândia.
No extremo sul desse país gelado vivia a família Lautamäki. Finlandeses de pele branca e olhos claros (como a maioria da população), eram pais de um lindo casal: Arttu e Erja Lautamäki.
A madeira que cortavam das árvores coníferas era a fonte de renda da família. Arttu, aos vinte e cinco anos, casou-se com Sanna e foi morar em Porvoo, uma cidade próxima.Erja, sua irmã, continuou vivendo com seus pais. Todos da família, que eram seguidores de Lutero, tinham uma vida tranqüila. Oito anos se passaram e a menina Erja agora tornara-se uma simpática mulher. Aos vinte e três anos, Erja era um tanto baixa e roliça, fato que sempre a impediu de ter muitos namorados. Olhava-se no espelho e dizia para si mesma:
- Que triste. Sou jovem, tenho idade pra casar e... nada! Sou um pouco fora dos padrões de beleza deste país mas tenho um lindo rosto e sou inteligente! Quando será que encontrarei alguém?
Erja estava com a razão. Era muito linda de rosto e tinha uma inteligência que causava inveja às outras garotas da vila. O sorriso e a generosidade escondiam as marcas da vida. Alguns anos após sua morte, foram encontrados seus diários que estavam empoeirados sobre uma estante velha no porão da casa em que viveu com seus filhos e marido.
“23 de maio de 1919. Hoje ganhei este diário de meu irmão. Como o amo! O motivo de receber tal presente foi meu aniversário de nove anos. Espero nunca parar de escrever nele. Papai não gostou de meu presente, disse ao meu irmão que escrever torna a pessoa “topetuda” e que não presta fugir da realidade para o mundo de letras e idéias. Não me importo com que diz. Continuarei escrevendo sempre. Ah! Como amo meu irmão!”
O pai da garota sempre reclamava ao vê-la escrevendo, mas deixava-a. Com o passar dos anos, o pai tornava-se menos confiante com seu emprego na madeireira:
- Esa (que era sua esposa), hoje mais dois companheiros foram demitidos. Os donos alegam que a guerra também afetou a Finlândia e passam dificuldades financeiras. Creio que a fábrica não durará muito tempo de portas abertas.
Estava com a razão. Seis meses após este comentário, Otto perdera o emprego. Restava apenas Arttu para sustentar a casa. Ele entregava jornais de manhã e trabalhava em outra madeireira à tarde. A família passou por sérias dificuldades quando Arttu adoeceu com uma pneumonia e foi demitido. O resto das economias familiar estava acabando e nem Otto ou Arttu conseguiam outro emprego. Foi quando Otto começou a mostrar sinais de fraqueza.
“14 de dezembro de 1921. Fiquei assustada hoje. Vi papai chegar em casa carregado por dois amigos dele. Mamãe disse que papai não havia passado bem. Ele estava com o corpo mole e a voz um tanto lenta. Senti um cheiro de álcool em seu hálito. Escrevendo agora, ouço mamãe chorar na sala.”
Otto seguiu esse ritual todos os dias, chegava bêbado em casa. Sua mãe não conversava mais com ele.
“23 de Dezembro de 1921. Fui brincar no parque com minhas amigas. A mãe de minha amiga comprou-me sorvete. Hum, que delicia! Limão, o meu favorito. Depois do almoço fiquei em casa desenhando. Fiz um retrato de papai e mamãe (nesta folha encontra-se um desenho bem infantil de um homem caído no chão e uma mulher chorando sentada à mesa). Boas noticias! Arttu conseguiu novo emprego. É noturno e ele terá de parar de estudar. Papai não ficou feliz... Diz que é um homem inútil e que seu filho é que sustenta a casa. Novamente papai chegou com aqueles olhos vermelhos e um cheiro insuportável vindo de sua boca. Estou triste de novo.”
Chegou o Natal. Foram festejar na casa do vizinho que tinham mais afinidade. Muita comida e bebida. Foi uma festa da qual Erja nunca se esqueceria. Seu pai ficou bêbado novamente e agrediu o dono da casa. Esa pediu desculpas milhares de vezes e voltou para casa, envergonhada. Otto ficou caído sobre o sofá dormindo profundamente. Esa e Arttu foram dormir cedo. Erja , sentada no chão, ficou observando o pai. Depois de alguns minutos Otto acordou. Viu a filha lhe observando e chamou-a para sentar-se ao seu lado.
- Filha – Erja sentia o cheiro ruim vindo dele – você sabe que papai te ama, não? – falava ainda bêbado.
- Sei, papai. – respondeu a garota tentando sentar-se mais longe – Estou com sono, acho que vou dormir. – levantou-se.
- Não! Fique aqui, junto ao seu pai. Sabe, Erja, você está crescendo rápido. Quantos anos já tem? Dez, onze?
- Onze, papai.
- Ah...claro! Está ficando uma mocinha. Não acha que está um pouco gordinha também? Mas isso não importa muito. Sua fofura deixa suas pernas mais grossas. – disse Otto colocando a mão sobre perna da menina.
- Pai, devo ir! – disse a garota constrangida. Depois levantou-se rapidamente e correu para o quarto.
Naquela noite, Erja escreveu esse diálogo em seu diário, terminando com a frase: “...por que ele fez isso?!”
Agora a garota tinha medo de ficar sozinha com o pai. Não contou para Esa por medo da mãe não acreditar em suas palavras e chatear-se com ela. Seguiu com a vida mas, nem sempre, conseguia fugir de seu pai.
“8 de fevereiro de 1922. As aulas começaram hoje. Que chato. Estava adorando a brincadeira quase diária com minhas amigas. Arttu me disse hoje: “Erja, estude. Seja alguém. Seu irmão não tem essa oportunidade que você tem. Aproveite, por favor”. Adoro meu irmão. Ele sempre tem as palavras certas para as ocasiões certas. Papai conseguiu novo emprego faz três semanas. Espero que fique nele. Agora não chega mais bêbado em casa. Mamãe parece outra pessoa, transbordando felicidade.”
Otto conseguira emprego numa funilaria próxima de sua casa. O emprego mudou a rotina de sua vida. Não bebia mais. Era um novo homem. Finalmente a família voltaria a ter paz por alguns meses.
“22 de maio de 1922. Amanhã completarei doze anos! Teremos uma grande festa aqui em casa. Papai já está enchendo as bexigas de enfeite e mamãe está fazendo um delicioso bolo de chocolate para amanhã. Não vejo a hora!”
Grande dia. Aniversário de Erja. A menina gordinha fazia doze anos de vida. Já vira o pai bêbado e o irmão largando tudo para sustentá-los. A festa estava animada. Muitos parentes foram convidados. Arttu aproveitou para apresentar sua namorada Sanna, uma operária da fábrica em que ele trabalhava. Otto bebeu em excesso novamente mas desta vez não causara incidentes. A festa acabou e à noite foram dormir. Ainda bêbado, Otto foi ao quarto da filha ver como ela estava.
“23 de maio de 1922. O pior aniversário de minha vida. Papai violentou-me.”
Foram exatamente com essas palavras que Erja descreveu o acontecimento:
“(continuação)...sentia o cheiro de bebida vindo de sua boca. Ele trancou a porta do quarto. Deitou-se na minha cama. Disse-me que eu era a filha que todos os pais gostariam de ter. Puxou o lençol para cima dele. Viu as lágrimas em meu rosto. Chorava com medo dele. Mas parecia não se importar! Falou-me que daria um presente que duraria pro resto de minha vida. Não entendi no momento. Não conseguia falar enquanto papai subia minha camisola. A mão dele. Ele estava me despindo. Sua respiração estava mais forte. Colocou a mão sobre minha boca e pediu para que eu não gritasse. Abriu minhas pernas. Senti algo estranho. Essa sensação durou alguns minutos e de repente parou de forma rápida. Papai levantou-se da cama. Fez eu jurar que não contaria pra ninguém o que aconteceu. Mas não sei o que aconteceu! Depois, tirou o lençol da minha cama e levou embora. Ele estava manchado de sangue. Não sei porque papai agiu assim. Tenho medo dele. Mais do que tinha antes. Papai...papai é nojento! Ouço barulhos no quarto de mamãe, é melhor parar de escrever e de chorar senão ela acorda.”
A menina Erja sofrera no seu aniversário o maior trauma de sua vida. Nunca contou a ninguém. Sabia que sua mãe não era forte para sofrimentos. Sabia que seu irmão faria algo contra Otto. Ela apenas guardou essas lembranças. Lembranças que teimavam em ficar frescas em sua memória:
“11 de Outubro de 1922. Papai, pela segunda vez, voltou a violentar-me...”
Os estupros de seu pai tornaram-se mais freqüentes com o passar dos dias e dos anos.
“30 de Janeiro de 1923...então à noite papai brincou comigo novamente.” (Otto falava que estava apenas brincando, que ela não deveria se preocupar).
“23 de Maio de 1923...de presente de aniversário, papai deu-me o choro.”
“1º de Novembro de 1924...acho que mamãe desconfia de alguma coisa, mas tem medo de falar com papai. Novamente hoje.”
Os relatos do diário de Erja não eram mais felizes. Não citava mais suas amigas ou o que fizera durante o dia. Apenas falava de seu pai. O mesmo pai que um dia a agrediu.
“9 de Abril de 1927. O que eu suspeitava agora é fato: estou grávida de papai. Vou contar-lhe hoje.”
“13 de Abril de 1927. Estou melhorando. Mamãe ainda viaja com Arttu para Oslo, eles partiram em 8 de Abril. No dia em que contei para papai que estava grávida ele me bateu. Disse que eu nunca pode-ria ter um filho dele. Deu-me um soco no rosto. Quando caí chutou-me diversas vezes na barriga. Senti uma dor imensa. A enfermeira diz que desmaiei ao perder sangue. Perdi meu filho. Papai contou ao médico que apanhei de meu namorado. Odeio meu pai!”
Voltou para casa alguns dias depois. Sua mãe voltou com seu irmão na semana seguinte. Erja falara que seu hematoma no rosto fora devido a uma queda que sofreu ao descer a escada da casa. Os anos passam com uma velocidade impressionante e agora voltaremos para Erja com seus vinte e três anos:
“02 de Julho de 1933. Hoje conheci o primo de minha vizinha, o Tommas. Homem gentil, inteligente e seguro sobre o seu futuro. Temos muitas coisas em comum. Reparei no modo profundo que ele me olha. Assim como eu, ele é tímido. Um homem lindo e tímido! Ah... ele me encantou. Vou procurar saber mais a respeito dele com minha vizinha. Peço a Deus que me ajude nesse caso para que eu encontre a felicidade”
Erja estava correta em relação ao rapaz. Apaixonaram-se. Ela encontrou alguém que a amasse e retribuiu. Namoraram por um ano e ficaram noivos por mais dois. Tommas pediu Erja em casamento, que logo aceitou. Em maio casaram-se.
“23 de Maio de 1936. Hoje é o grande dia! Estou tão feliz! Vou casar e morar ao lado de meu irmão, em Porvoo.Apesar das alegrias estou preocupada com papai. Sua tuberculose está agravando a cada dia. Mamãe já sabe que a doença de papai não tem cura e prepara-se para o inevitável.”
Erja e Tommas tiveram quatro filhos: um menino e três meninas. Ela deixou de escrever em seu diário no dia da morte de seu pai. Mesmo não tendo escrito, ficou-se sabendo que o casal morou junto por quarenta e dois anos, até que Erja faleceu, deixando ao mundo duas filhas e um filho casado. Aqui segue-se as últimas linhas de seu diário:
“25 de Agosto de 1936. Voltei do enterro de papai hoje. Foi triste ver mamãe chorando a morte de seu amor. Também amava papai, mesmo ele tendo feito o que fez, comigo. Desde o dia que abortei, ele nunca mais me tocou. Nunca contarei nada dessa história para ninguém. Apesar de tudo ele foi meu pai. O dever de seus filhos é honrá-lo.”
VI
“Não matarás.”
Êxodo 20:13
Varsóvia, Polônia
Olhava-se o espelho. Os anos marcaram seu rosto, já não era mais o mesmo homem jovem de outrora. Como a Vida é cruel para seus filhos. Os homens vivem, muito pouco, mas vivem. O que havia de errado com ele? Nada. Igual aos outros. Sentia-se fraco e doente. Recortes de jornais antigos estavam no pequeno mural que mantinha com um cuidado incrível, talvez fosse a única coisa com que se importasse naquela casa. Poucas lâmpadas, as existentes eram de um brilho fraco que igualava-se ao das velas. O cheiro da casa era de mofo. Havia muita sujeira nela: pratos que empilhavam-se dentro da pia sem nunca serem lavados, restos de comida no chão que atraíam principalmente ratos e baratas, armários quebrados... Não saía de casa a não ser para o essencial: comprar comida. Em casa, seu passatempo era ouvir música clássica. Simplesmente adorava e cantarolava todas. Acordava ao som de Beethoven, nona sinfonia, sua preferida do gênio que ficou surdo. Como seu ídolo, esse homem também sofria de problemas auditivos, escutava pouquíssimo. Na verdade, colocava os discos apenas para vê-los girar. Sabia todas as músicas, elas ficaram guardadas em sua memória desde que era apenas uma criança. Recordava-se exata-mente de cada nota, cada canto e cada emoção. Escutava-as na casa de seu avô, que também era admirador de música clássica. Seu avô foi o maior incentivador para o estudo do piano. Quando tinha doze anos já era excelente instrumentista. A família juntava-se ao redor do piano para ouvir o jovem tocar. Ainda nos seus dezenove anos, esse homem sofreu um acidente. Foi nadar com seus amigos mas quase se afogou ao sofrer uma dor intensa na perna. A pressão da água em seus ouvidos o marcaram pra sempre. Viu seu mundo desabar quando era jovem. Não tocou mais seu piano. Agora desviava sua visão do espelho para o sofá da sala. Um corpo, de alguém muito belo, descansava nele.
Como era de costume, todos sábados à noite a orquestra sinfônica apresentava-se no teatro municipal. Pessoas de todos os lugares da cidade iam até o recinto para ouvirem a música dos céus. Ricos, pobres, conhecedores, ignorantes, admiradores, todos tinham seus lugares reservados nas aconchegantes cadeiras do magnífico teatro. Os rostos eram quase sempre os mesmos. As vestes também. Isso não importava, iam lá apenas pela música. Naquela noite seria apresentada: Réquiem em ré menor, Mozart. Olhares atentos. Para qualquer pessoa que se olhasse poderia notar sua mente perdida, caminhando pelas belíssimas notas de Amadeus. Um dos olhares não era atingido pelo êxtase. Não precisava, ele já conhecia toda a obra, já a ouvira dezenas de vezes, exaustivamente. Seu olhar centrava-se em uma das sopranos da orquestra. Ela era a música de Mozart. Toda aquela emoção, aquele medo, aquele amor, aquela violência, enfim, a explosão que Mozart causava nas pessoas estava ali, no palco do teatro. Branca, cabelos claros e pele rosada. Era perfeita. O homem não desviou a atenção do palco nem no momento em que a orquestra era aplaudida de pé. “Quem é ela?”. “Perfeita, perfeita!”. “Linda como poucas.”
Não falou com ela naquela noite, estava atrasado. Mas todos os sábados a cena repetia-se: mirando ela como uma peça valiosa. Após a noite de apresentação da sinfonia de Vivaldi, o homem esperou a saída dos músicos para poder falar com a mulher que despertara tanta admiração nele.
- Com licença, boa noite! – falou nosso homem.
- Que seja eterna. O que gostaria, senhor?- respondeu a musa.
- Bem, apenas gostaria de dizer que adoro sua voz, é linda! – sua fala tremia, mostrava sinal de que não sabia como se comportar diante de emoções.
- Ah! Muito obrigada.
- De nada.
- Preciso ir, senhor. Fico feliz que goste do meu trabalho.
- Sim, muito!
- Até a próxima semana, se o senhor comparecer aqui.
- Certamente. Boa noite! – disse o homem em tom de que seria breve a semana.
- Boa noite.
Diversas semanas seguiram-se. Ao final dos espetáculos, o homem encontrava-se com Marcela, a linda soprano. Tomavam café juntos num lugar próximo ao teatro e se despediam. A orquestra já mostrava sinais de sucesso, aparecera em vários jornais da cidade diversas vezes. A amizade entre o homem e Marcela crescia. O jantar que o homem tanto insistira se realizaria àquela noite em sua casa. Quando o relógio marcava oito horas e um quarto, Marcela apareceu. Estava irradiante em seu vestido lilás.
- Boa noite, meu querido amigo.
- Marcela, você está linda! Como sempre. – respondeu o homem que vivia com um sorriso no rosto. Sorriso que aparecera poucas vezes em sua longa vida.
- Ora, é apenas um vestidinho novo e uma maquiagem mais caprichada. Meu amigo merece tudo isso.
- Obrigado. Venha, sente-se. O jantar está quase pronto. Teremos frango à moda francesa – disse o homem rindo.
- Tenho certeza de que estará maravilhoso! – gentilmente respondeu Marcela, lambendo os lábios de uma maneira engraçada.
“Como ela é engraçada. Que mulher linda Deus colocou em minha vida!” – pensava o homem ao contemplar aquela jovem.
- Então irá viajar para Rússia na próxima primavera? Toda orquestra vai?
- Sim, teremos uma apresentação no Palácio de Inverno. Alguns integrantes não poderão viajar por problemas pessoais mas serão substituídos.
- Tenho muita vontade de conhecer esse país gelado. Dizem que é belo. Que ainda guarda um certo “ar” de nobreza nas ruas. A nobreza dos antigos czares, é verdade?
- Fui à Rússia apenas uma vez. Realmente ele tem a beleza da nobreza expressa nas ruas e arquiteturas.
- Talvez a única bela no regime czarista tenha sido a arquitetura.
- Concordo, meu amigo.
- Oh, veja! Enquanto falávamos, o jantar ficou pronto, espere um minuto, sim?
- Fique a vontade.
O jantar seguiu-se tranqüilo. Ao final dele, devido ao excesso de bebida, os amigos conversaram alegremente.
- Amigo, vejo que tem um piano encostado ali no canto, por que não toca-o pra mim?
- Outro dia talvez.
- Ah! Não seja tímido!
- Não sinto mais vontade de tocá-lo. Veja como está empoeirado. Ele é hoje apenas uma recordação do ontem.
- Eu sei do seu acidente. Mas isso não impede de tocar. Muitos músicos tocam, apesar de terem problemas auditivos.
- Talvez da outra vez...
- Não, toque agora. Vamos lá, você toca e eu canto. Vou subir aqui pra você ficar inspirado. Há, há,há.
- Cuidado para não cair de cima do piano, Marcela.
- Não vejo perigo nenhum. Olhe!
Marcela, ao tentar subir do piano escorrega e caí nos braços do homem.
- Que coisa, não? Há,há,há. – disse a embriagada moça.
- Está tudo bem? Não se machucou?
- Claro que não, seu bobinho.
- Menos mal.
- Sabia que adoro você? – os olhos da garota brilharam ao dizer essas palavras.
Os dois se aproximaram e um beijo aconteceu naquela noite. A tristeza que o homem sentiu nas duas semanas que Marcela viajou não precisa ser descrita aqui, todos já passaram por isso e sabem como é. Finalmente após os longos dias, ela retornou. Encontraram-se na casa dela desta vez.
- Que saudades, Marcela!
- Eu também, meu querido.
- E como foi a viagem? Pelos jornais soube que fizeram grande sucesso no exterior.
- A viagem foi boa.
- Mas conte-me, o que aconteceu? Como era o teatro?
- O teatro era muito lindo
- Marcela, o que houve?
- Não entendi.
- Você está muito desanimada hoje. O que aconteceu na tua viagem?
- Como posso te contar sem que fique magoado?
- Apenas conte.
- Tudo bem, então. Amigo, estou namorando.
- O que? Como? Ou melhor, com quem? – disse o homem com um certo desapontamento e ansiedade.
- Com um rapaz da orquestra, o Daniel.
- Mas....mas e aquele beijo? Achei que você me amasse...
- E amo, como amigo apenas. Aquele beijo ocorreu sem comprometimento. Estava bêbada.
- Marcela, eu.. eu achei que você realmente me amasse!
- Desculpe. Sinto muito desapontá-lo...
- Vou-me embora.
- Por favor, fique. Vamos conversar mais um pouco.
- Não tenho mais nada para conversar com você , Marcela. Adeus.
Transtornado, nosso homem saiu daquela casa com rapidez.Não queria mais ouvi-la. Queria apenas ir para casa. Parecia que nunca chegava. Apenas alguns quarteirões parecem uma estrada sem-fim para os cegos. Pois era assim que ele sentia-se agora: um cego. Como foi enganado de tal maneira? Como pode ser cego para não perceber que aquilo foi apenas um beijo? Mas aquilo que sentia por Marcela era algo tão forte. Sentia-se capaz de qualquer coisa quando pensava nela. Qualquer coisa. Esse sentimento veio a mudar seu futuro, como veremos a seguir.
Alguns anos passaram-se desde aquele encontro com Marcela. O homem havia mudado muito. Estava sempre com o rosto austero. Isolou-se em casa. Não ia mais prestigiar as sinfonias apresentadas no teatro municipal. Vivia apenas com o pensamento voltado para uma coisa, ou melhor, alguém: Marcela. Via as fotos dela nos recortes de jornais que prendia em seu mural. A orquestra rodara quase o mundo todo, sempre com sucesso em suas apresentações. Aquilo era um câncer que o corroia todos os dias. Queria tê-la para sempre em sua vida. Ela seria só dele. Somente dele.
Um dia na saída do teatro, Marcela avistou nosso homem.
- Amigo? É você?
- Seria melhor dizer: “O que restou dele?” – respondeu friamente o homem.
- Oh, que saudades!
- Esteve muito bem na peça hoje, Marcela.
- Obrigada.
- E como está seu relacionamento com Daniel?
- Por que devemos falar nesse assunto. Isso é coisa do passado.
- Apenas quero saber como anda a vida de minha amiga.
- Bem, Daniel e eu casamos no fim do ano retrasado.
- Que bom. Desejo felicidades para o casal.
- Agradeço.
- Estive pensando e cheguei a conclusão de que fui estúpido com você naquela noite, Marcela.
- Não precisa se desculpar.
- Gostaria de brindar nossa velha amizade. Em casa, talvez...
- Adoraria, amigo!
- Pois então espero vocês me visitarem na quinta, tudo bem?
- Vou falar com Daniel, creio que ele ficará contente em ir.
- Que assim seja. Quinta, nove horas?
- Nove horas. Estaremos lá. – respondeu a mulher com um sorriso.
O homem notou como Marcela parecia não ter envelhecido um dia nesses longos anos que passaram-se. Continuava bela como sempre. Cabelos claros, pele branca e macia, gentil nas palavras. Ela não havia mudado!
Quando chegou as nove horas da quinta feira, a campainha tocou, somente Marcela estava à porta.
- Boa Noite - novamente o sorriso de Marcela irradiava.
- Muito boa. Onde está Daniel?
- Não pôde vir, está com a mãe dele que veio nos visitar. Ele manda suas desculpas.
- Que pena ele não poder vir – disse o homem com um sorriso estranho no rosto.
- Bem, então vamos conversar?
- Oh, desculpe-me. Como sou atrapalhado! Por favor, entre.
Ao entrar, Marcela pode ver como o homem estava ansioso. Ele trancou a porta com as duas trancas e fechou, disfarçadamente as cortinas que tinham vista para rua. Ela, apesar de estranhar, reagiu normalmente. Notou também que a casa de seu velho amigo estava imunda, mas não comentou nada.
Conversaram por quase uma hora e meia. Quando nosso homem resolveu que colocaria seu plano em ação. Pediu a taça de Marcela e falou que iria até a cozinha para co-locar mais vinho. Ao chegar no cômodo, despejou um pó que tinha guardado no armário na taça de Marcela. Retornou à sala cantarolando e fizeram um brinde antes de beber.
- À felicidade de meu amigo!
- Com certeza assim será.
Após alguns minutos, Marcela dormiu tranqüilamente no sofá. O efeito do sonífero tinha dado certo rapidamente. Suado de nervosismo, nosso homem foi ao banheiro para lavar o rosto e as mãos. Ele iria ter Marcela naquela noite, e para sempre.
No sótão de sua casa, ele já havia enchido uma banheira com formol. O bastante para cobrir um corpo adulto. Retornou para a sala e viu que Marcela ainda dormia. Seria agora, o momento exato. Pegou uma almofada que estava jogava por ali e colocou-a sobre o rosto de Marcela, para sufocá-la até a morte. Nosso homem não contava que Marcela acordaria; e ela acordou no momento em que tinha o rosto coberto com o objeto. Tentou se soltar. Debateu-se lutando para viver. Conseguiu se livrar da almofada mas o homem agarrou-a, quebrou a taça que estava sobre a mesa da sala e cravou em sua garganta o vidro quebrado. Marcela demorou alguns minutos até morrer. Quando certificou-se de que ela estava morta, o homem carregou o corpo para o sótão e jogou-o na banheira.
Desceu para a sala. Calmamente escolheu um disco entre a coleção que tinha. Aquele momento merecia uma celebração especial. Colocou a quinta sinfonia de Beethoven no toca-disco. Aumentou o volume e, bebendo o resto do vinho diretamente da garrafa, ficou sentado no sofá a noite inteira rindo.
VII
“Não adulterarás.”
Êxodo 20:14.
Tradicional Baile de máscaras em Veneza.
Festa considerada animada pela população local. Marcus despede-se momentaneamente de sua esposa Aliny para pegar outra dose de bebida. No bar, defronta-se com a bela jovem que serve as bebidas. Rosa era seu nome. Moça de dezesseis ou dezessete anos de idade. Corpo esculpido por Afrodite. Pele branca de uma delicadeza da qual Marcus nunca havia visto ou provado. Aquela garota tinha um sorriso encantador, como os que têm as meninas ao quererem se oferecer para os homens elegantes e experientes.
- O que deseja, senhor? – disse a garota sem parar um instante sequer de mirar o homem.
- Duas taças do melhor vinho que tiver.
- Aqui está, senhor. Espero que aprecie – respondeu a garota ao entregar-lhe as taças e tocando levemente a mão de Marcus despediu-se dando novamente um belo sorriso.
Marcus, aos trinta e dois anos de idade, já era um homem experiente com as mulheres. Não deixava que seus pensamentos se esvaecessem por qualquer mulher. Mas o toque de Rosa marcou sua pele. Ele sentia aquele formigamento comum aos homens novos quando têm uma mulher ao seu lado que os acariciam. Por algum motivo ele pensava naquela garota pura. Passou o resto da festa procurando o seu olhar (que ela fazia questão de retribuir-lhe junto com um sorriso), retornou muitas vezes ao bar para vê-la, com a desculpa de “buscar mais um vinho”.
- Trabalhará aqui até o fim da festa, querida? – perguntou seguro o homem.
- Certamente, meu senhor. Acabando a festa voltarei para casa, nesta escuridão de breu, sem ninguém para me acompanhar. Confesso que sinto medo às vezes de sofrer algum tipo de violência nesta minha trajetória.
- E seus pais? Não acompanham-te?
- Tenho apenas minha mãe. Meu pai faleceu ano passado. Mas ela não está aqui. Está em casa cuidando de meu irmão doente. Tenho que trabalhar para poder ajudá-la.
- Tão nova e tão sofrida. Diga-me, o dinheiro que ganha nesta festa é suficiente para alimentar-se?
- Com muito esforço, meu senhor – respondeu com a voz triste, que encantou ainda mais Marcus – Há dias que não temos o que comer. E se há pouca comida, dou ao meu irmão que é mais novo e precisa se alimentar mais.
- Corta-me o coração. É engraçado como Deus dá o sofrimento para seus filhos mais lindos – disse gentilmente Marcus.
- Obrigada, senhor – respondeu a garota que agora estava vermelha com o elogio dito.
- Não agradeça por eu ser seu espelho. Apenas digo a verdade.
A festa estava quase no fim. Aqueles que adoram se embebedar aproveitam os últimos minutos para poder repor o estoque de álcool no sangue. O vinho sobre a mesa do bar havia acabado.
- Com licença, meu bom senhor, tenho que ir lá atrás, na sala de estoque, para pegar mais bebidas – falou a suave moça.
- Posso ajudar-te?
- Certamente, agradeceria sua ajuda, senhor – novamente respondendo com um sorriso nos lábios.
Ao entrarem na adega a garota subiu na escada para pegar as últimas garrafas de vinho que sobraram. Quando estava descendo escorregou. Marcus, que estava embaixo segurando a escada e aproveitando para olhar a veste intima da moça que presenteava seus olhos, segurou a garota para que ela não caísse . Ficaram agarrados por uns segundos. Ela na frente, ele atrás segurando-a firme, com o rosto colado ao da menina. Rosa sentiu a excitação do homem que a segurava e, olhando para trás, deu um sorriso malicioso. Aproveitando o oferecimento da garota, Marcus alisava com uma mão as firmes coxas daquela pequena mulher e, com a outra mão, apertava suavemente os seios ainda em desenvolvimento, coisas essas, que fizeram a garota suspirar de prazer. Foram para um lugar mais escuro da sala e lá Rosa deitou-se sobre o homem. Foi dessa maneira que Rosa perdeu sua virgindade ainda menina. Ao terminarem, Marcus vestiu-se rapidamente e tomou o rumo de saída da adega quando ouviu a voz da garota, que estava deitada no chão ainda nua, dizendo-lhe:
- Meu bom senhor, espere! Não acha que mereço um pequeno prêmio por te dar um prazer que não sentia desde jovem?
- Claro que merece! – respondeu Marcus com uma risada ao entregar um saco com algumas moedas para a garota – Esse é teu pagamento, espero que faça bom proveito dele, obrigado.
Ao sair da sala , Marcus pôde ouvir algumas risadas de felicidade vindas do local onde esteve. Era Rosa. Rindo deliciosamente ao espalhar as moedas pelo corpo nu.
VIII
“Não furtarás.”
Êxodo 20:15.
Galway,Irlanda
O Templo central da cidade de Galway era o mais adornado. Enfeites de ouro nas laterais dos bancos de boa madeira, amplo espaço interno, objetos valiosíssimos, diversas relíquias douradas e muito mais. Era um típico exemplo da casa de Deus: enfeitada com altos valores. O abade de Galway, como será chamado aqui, era o responsável por tudo. Muito querido da população local, sempre estava pronto para ajudar em alguma necessidade. Era notável o esforço do abade!
Os freqüentadores do ritual antropofágico que ocorria aos domingos, ficavam surpresos com a melhoria interna da Igreja, muitas reformas, sempre. O dinheiro que davam ao Templo para sua manutenção, realmente fizera milagres! Cada dia mais linda! O abade conquistara a fascinação popular.
Mas o dinheiro para tais “necessidades” não vinha apenas de doações dos mais domesticados... Deveras o abade tivera uma melhora em bens pessoais, agora restava à Igreja. Ele, com o dinheiro arrecadado, abrira um lugar do qual pudesse manter a manutenção do Templo.
Abade de Galway era um libertino. “Sigo as palavras do Pai, mas tenho também a necessidade da carne”- pensava. Ia à cidades vizinhas em que não era conhecido, para satisfazer a sua natureza humana. Após conviver muito tempo neste meio de pecados, o abade aceitara uma proposta feita por um amigo vizinho: seria sócio em uma das casas que freqüentava. Não é preciso dizer que, para começar a sociedade, ele tomara emprestado uma pequena quantia do “dinheiro santo”. Mas o lucro viera! Muito dinheiro esse abade ganhou para a Santa Casa de Deus. E, diretamente proporcional, para suas satisfações materiais.
A população de Galway nunca soube da “vida de santo” que o abade levava, como diziam. Ele mesmo contratava as meninas que trabalhavam. “Pois é simples dar ao Paraíso anjos de onze e doze anos.”
IX
“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.”
Êxodo 20:16.
Berlim, Alemanha
O assassínio de uma pessoa sempre é um crime chocante. Mais ainda se esta pessoa é algo que costumam chamar de anjo, ou seja, uma criança. Dessas formosas criaturas que invadem o mundo, a maioria cresce e torna-se “digna de ser ouvida”. O caso que aconteceu com esta que o nome não interessa ao leitor, é um tanto incomum.
Nascida em mais belo berço d’ouro, a criança do casal Otterbach viveu bem até os seus quatro anos de idade. De beleza típica alemã, sua face rosada encantava aos mais próximos. Suas primeiras palavras, seus primeiros passos...
O amor da criança era a base da família. Seus pais a tiveram já com idade avançada. Apesar do parto complicado, sua mãe sobreviveu para orgulhar-se de tal fruto. Todos os dias, logo ao amanhecer, o casal passeava com a criança pelo parque recém inaugurado a alguns metros de sua residência. A jovem criatura brincava com as flores do imenso jardim. Os pais gostavam da delicadeza e inteligência de seu filho.
- Um dia irá ser como o pai, um defensor da lei – insistia na idéia o Sr.Otterbach.
- Deus queira que não! Se seguir o caminho do pai, só irá ter dores de cabeça. Não é fácil condenar pessoas à prisão. Preocupo-me com você , meu amor. Já condenou muitas pessoas. Tenho medo que um dia saiam da prisão e...
- Não diga tolices – interrompeu o marido com um sorriso no rosto – Sabe muito bem que a justiça faz sua parte. Além disso, não me lembro de casos em que eu tenha cometido erro.
- E no caso daquele rapaz ? Todos sabiam que ele era inocente. Mas você aceitou uma grande quantidade de dinheiro para culpá-lo. No mais, a família dele...
- O dinheiro é que nos sustenta. Na época precisávamos dele. E também é bom colocar ordem nesta cidade. Pedofilia é uma acusação séria, apenas o usei para garantirmos sossego, minha querida. Esqueça esse assunto... bem, já é tarde, vamos embora.
Os dias passaram-se iguais. Era lindo ver a família unida. Mas no inverno daquele mesmo ano, a criança adoeceu. Pneumonia, os médicos disseram. Numa noite de crise aguda da doença, o pai foi à procura do médico que morava no bairro vizinho. Apenas a mãe e a criatura enferma ficaram em casa.
O que ocorreu após esse fato é de se fazer estranhar pelo leitor. Em uma daquelas ocasiões inexplicáveis, em que apenas o ódio, a vingança e o desejo de liberdade fazem-se mais forte, um homem que observava atentamente o Sr. Otterbach saindo apressado, bate à porta de sua casa. Passou-se por médico dizendo que havia pedido ao Otterbach para buscar remédios, por isso iria demorar um pouco para voltar.
Começou a examinar a criança. Fez todos os procedimentos possíveis que um médico faria. Aplicou uma injeção que fez com que a criança dormisse. A mãe (agora mais aliviada) agradeceu o atendimento da mais educada maneira.
- Doutor, aqui está teu pagamento. Devo agradecer pelo fato do senhor vir à essa hora da noite. Se o senhor precisar de mais alguma coisa...
- Que tal justiça ? – respondeu. mudando completamente sua fisionomia, o tal homem.
- Como? Não entendi. Poderia...
A mulher não teve tempo de completar a frase. Com um gesto rápido, o homem a agrediu com a maleta que trouxera. Vendo que a Sra.Otterbach encontrava-se num canto do quarto desacordada, ele pôde realizar seu terrível objetivo.
Quando o Sr.Otterbach retornou com o verdadeiro médico, encontrou sua família. Sua esposa estava ajoelhada ao lado da cama da criança, chorando. O homem que havia feito o ato visto agora pelo Sr. Otterbach, não estava mais presente. Nunca mais foi visto. Empalideceu quando viu o que estava sob a cama. Sua mulher, em estado de choque, entregou um bilhete que repousava junto à criança.
“ Desgraçado seja você por ter criado mentiras a respeito de meu irmão! Lembra-se quando o incriminou? Isso foi há algum tempo. Disse que ele cometera pedofilia, não é mesmo? Espero que fique contente ao saber que ele suicidou-se na prisão esta manhã. Mas tornei tua vida num inferno também! Disse que meu irmão gostava de crianças, maldito. Agora sim terá motivos para dizer isso. Veja bem o que sobrou daquilo que um dia tua mulher pariu ! Posso te garantir que, com a criança drogada, não tive dificuldade alguma. Foi ótimo tocar naquela pele macia. Um anjo, eu diria. Quantos anos ela tinha? Quatro, talvez cinco? Pois bem, não importa! Após deflorar esta linda criatura, atingi meu nirvana ao cortar sua respiração com minhas mãos. O sangue que vê agora é apenas o da língua dessa criaturinha. Depois de a ter usado, achei que não gostaria de ver em sua boca. Carrego comigo este troféu! Agora sim houve justiça, não? ”
X
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
Êxodo 20:17.
Lorena, França
Condessa de Lorena era conhecida por seu temperamento instável. Uma mulher amarga. Ao longo dos seus vinte e oito anos havia tido mais desprazeres e desilusões do que , pensavam muitos, poderia suportar. Ao contrário das outras mulheres que, ao sofrerem por desgosto, têm seu semblante mudado, austero, a condessa de Lorena tornava-se cada dia mais bela. Um rosto de traços finos, maçãs do rosto bem rosadas, enfim, parecia uma criança que crescera apenas na altura. Há dezesseis anos casada, nunca amara o esposo. Um homem corpulento, sem modos, sem carinho. Via a condessa apenas como um dote, uma meretriz para suas satisfações físicas. O velho conde agora descansava no inferno.
- Maldito! – gritava a encolerizada condessa.
- Acalma-te, prima – implorava a Condessa de Alsácia – Desse jeito chamarei um médico para ti, talvez uma sangria te faça bem!
- Para o inferno você com esta sangria! Como ele pôde ter feito isso?! Como?!
- Mas é certeza mesmo? O conde deixou sua herança para o irmão?
- O testamento foi lido hoje cedo, Irene. Está tudo escrito ali, bem claro! O desgraçado não deixou-me um centavo!
- Falarei com Marcos, ele ajudará-te. Apesar de ter recebido tudo, tem uma alma caridosa. Terá pena de ti, dará tua parte. Falarei com ele, prima.
- Faça isso por mim, Irene! Imploro-te! – atirou-se Lorena de joelhos perante a prima, vertendo uma torrente de lágrimas.
Na manhã seguinte, a condessa de Alsácia partiu para Reims, terra do marquês Marcos, irmão do falecido Lorena. Três semanas após, trouxe a resposta para sua prima. Disse-lhe que o marquês ouvira suas súplicas e atenderia seus desejos, desde que a condessa de Lorena fosse pessoalmente falar-lhe. Duas semanas após, nossa condessa batia à porta de Marcos. O lacaio mandou-a esperar enquanto anunciava sua chegada. Quinze minutos passaram-se até que fosse chamada a sua presença.
- Bom dia, parenta! - exclamou o sorridente marquês ao beijar docilmente o rosto de sua cunhada – Venha para meu escritório, conversaremos lá, Píer, traga-nos chá, por favor – ao dar essa ordem para seu empregado, dirigiu-se ao escritório.
- Infelizmente o senhor sabe o motivo de minha visita – disse a envergonhada de Lorena.
- Sim, sei. E ajudarei-te, cunhada. Meu irmão escreveu o testamento com sua bílis. A injustiça será desfeita. Devolverei-te uma parte generosa, condessa.
- Obrigada, bom marquês. Tem uma alma caridosa, por isso todos o amam. Tão jovem, tão gentil – brilhantemente sorria a condessa.
- Que seja, que seja. Ficará para o jantar? Ah! Eu insisto, por favor.
- Seria uma honra, meu cunhado.
O jantar seguiu-se. Aquela tarde os pássaros cantavam mais do que de costume, pensava a condessa. Teria seu dinheiro de volta. Pagaria suas dívidas que o falecido havia deixado. Mas como os pássaros cantavam! Pensamentos estranhos? Não para uma bela mulher. Afinal, o que importa se a mulher pensa ou não, desde que seja bonita? A Condessa de Lorena era esse tipo de mulher, bela, mas insípida. Defeito que passa despercebido ao termos Baco a nos servir!
- Gostou do jantar, minha querida? – falou o marquês ao termino.
- Adorei. Muito bom!
- Vamos para a sala. Sentaremos ao lado da lareira e beberemos licor. Siga-me.
- Claro! – como ela poderia negar o desejo de tão belo homem? Tinha voz firme, seria um ótimo tenente na guerra que aconteceria em 1812, quando Napoleão tentava a conquista da Rússia.
Sentados no divã, bebiam e riam. A noite avançava, era perigoso viajar de volta ao lar. A pedido de seu cunhado, Lorena, dormiu em sua mansão. Na manhã do próximo dia, enquanto acordava, a condessa notou um vulto sentado no sofá, em seu quarto. Era Marcos. Aproximou-se da condessa com palavras doces, dessas que conquistam facilmente qualquer mulher. Não tendo mais esposo, a condessa poderia se entregar ao homem que quisesse; foi o que fez. Quando terminou as carícias, o conde abriu uma pequena bolsa que estava na gaveta do criado-mudo, despejou algumas moedas de ouro sobre a cama e disse: “Aqui está parte de seu dinheiro, parenta. Caso queira ter o resto, esse será nosso trato, desta mesma maneira, conseguirá a quantia que quiser” – a condessa sentiu-se humilhada, e, aos prantos, ofendeu o marquês e disse-lhe que nunca se submeteria a tal coisa. “Mas não foi isso que acabou de fazer ? – respondeu Marcos - Lembre-se que todo o dinheiro está no meu nome. Você não tem direito a nada! Ou é do meu modo ou nunca terá dinheiro!” . A condessa pensou bem. Ela teria de pagar a hipoteca, teria de ajudar seu sobrinho à ascensão no exército, teria de manter seu nome entre a alta sociedade. Chegou à conclusão de que acataria às ordens do marquês.
Os dias passaram. Todas as noites, Lorena ia ao quarto de Marcos para receber seu dinheiro. Por fim, acabou gostando de ser tratada de tal maneira, como uma cortesã. Depois de ter recebido toda a quantia que lhe cabia, não mais voltou à Lorena. Casou-se com Marcos. E novamente não encontrou a felicidade no casamento. Sofreu muito ainda em sua longa vida, mas manteve sua beleza e sua riqueza.
EPÍLOGO
Homem 1
- O que torna um homem em imortal?
Homem 2
- O amor de uma pessoa.
Homem 1
- Não. Não basta só o amor.
Homem 2
- Tem certeza?
Homem 1
- Absoluta.
Homem 2
- Então retorno a sua pergunta.
Homem1
- O que torna um homem imortal são sua obras. Seus quadros, músicas, livros, gestos, assassinatos e outras obras mais.
Homem 2
- Iria dizer isso: “Seus feitos”, mas achei o amor mais importante.
Homem 1
- O que tornou Shakespeare imortal foram suas obras não é mesmo?
- O amor de uma pessoa é imortal enquanto se vive.
Homem 2
- Explique-me melhor.
Homem 1
- Uma pessoa é “imortal” enquanto há alguém que se lembre da pessoa que partiu. Quando essa pessoa também morre, o que sobra? Nada. Por isso que digo: o amor das pessoas é perecível, quando o último morrer, acabou-se tudo.
Homem 2
- Sim, sim. Você está correto como sempre.
Homem 1
- Acha-me louco?
Homem 2
- Por que pergunta isso?
Homem 1
- Simples, o homem não nasceu para acreditar e aceitar tudo que lhe é dito.
Homem 2
- Apenas concordei com o senhor.
Homem 1
- Concordou porque acha que estou delirando. Porque falo de assuntos que ninguém fala. Porque tem medo que me torne agressivo ao ser contrariado.
Homem 2
- Admiro sua coragem!
Homem 1
- O louco é aquele ser que é corajoso, então?
Homem 2
- Senhor, em momento algum insinuei que é louco.
Homem 1
- Eu sei. Não precisa me dizer algo que seus olhos denunciam.
Homem 2
- Na verdade, acho a loucura a porta da vida em que passamos para sairmos das trevas.
Homem 1
- Vida?
- O que seria?
- Seria aquilo que querem que façamos? Seria infringir as regras da Lei Divina?
Homem 2
- Vida é aquilo que os sanos fazem. Vida é estudar, trabalhar, evoluir, amar...Teria uma lista enorme para demonstrar-te o que é a vida e o viver.
Homem 1
- Oh! Que palavra linda essa tal de sanos. Tão linda que, ao pensarmos melhor, transforma-se em asnos.
Homem 2
- Chama de asno aquele que vive como descrevi?
Homem 1
- Chamo! Pois um asno cumpre funções de maneira programada, sem mais nem menos. Será que você não enxerga isso? É tolo o bastante para não mudar seu rumo, jovem asno?
Homem 2
- Agora começa a ofender-me.
Homem 1
- Ah! Ofende-se com a verdade. Ofende-se ao ter a vida cuspida em sua face. Pobre homem.
- Responda-me sinceramente.
Homem 2
- Tentarei.
Homem 1
- Não se cansa?
Homem 2
- De que?
Homem 1
- Não nega ser um sano invertido. Ora, de ser comandado!
Homem 2
- Mas não sou comandado.
Homem 1
- É sim.
Homem 2
- Não. Não sou.
Homem 1
- Pois digo que é e o provarei.
Homem 2
- Comece.
Homem 1
- Trabalha em que?
Homem 2
- Sou bancário, senhor.
Homem 1
- Gosta do seu trabalho? Sinceramente...
Homem 2
- Admito que não muito. Tenho mulher e filho para criar, preciso de dinheiro para sustentá-los.
Homem 1
- Dinheiro. A primeira prova de que é comandado. Precisa de dinheiro para poder comer, comprar suas roupas, pagar seu aluguel...Pediram sua opinião quando inventaram a nojeira capitalista? Perguntaram se você realmente gostaria de ter que vender sua força de trabalho? Consultaram-te sobre seus “direitos e deveres”?
Homem 2
- Não, meu senhor.
Homem 1
- Então tem de concordar comigo que você é comandado pelo dinheiro. Que outras pessoas pensaram por ti. Pessoas estas, mais inteligentes e espertas do que você. Elas comandam, você é comandado.
Homem 2
- Realmente admito que está certo.
Homem 1
- Ponto para o louco!
- Você é livre pra fazer o que quer?
Homem 2
- Assim como o senhor...
Homem 1
- Nunca me compare a ti, seu asno!
Homem 2
- Bem, como ia dizendo, assim como o resto das pessoas, não posso fazer tudo o que quero.
Homem 1
- E o que seria esse “tudo”? Acho que sei. Você não pode falar o que pensa, não pode roubar, não pode matar e não pode respirar sem que tenha permissão para isso “tudo”.
Homem 2
- Creio que roubou minhas palavras, senhor.
Homem 1
- Além de louco sou ladrão também.
- Então você é comandado pelas leis. Novamente não pediram sua opinião sobre o que você quer fazer, não é?
Homem 2
- Nunca vi com esses olhos esta situação.
Homem 1
- Claro que não! Você é um asno cego. E castrado também. Outro ponto para o louco-ladrão!
Homem 2
- Castrado?
Homem 1
- Já dormiu com outra mulher depois de casado?
Homem 2
- Não! Deus não permite tamanho pecado!
Homem 1
- Deus, Deus, Deus. Por que sempre abandona os filhos teus?!
- Deus te nega o prazer carnal. Deus te nega a visão. Deus te nega a audição. Deus te nega, talvez o mais importante, a coragem de levantar a voz contra Ele. Diga-me, Deus é perfeito?
Homem 2
- Sim, Ele é.
Homem 1
- Ele ama os filhos que tem? Os queridos filhos que todo mês tiram o dinheiro do pão das famintas crianças para dar aos gordos padres? As criações que nunca ousaram reclamar de Suas palavras?
Homem 2
- Ele ama a todos. Inclusive ao senhor.
Homem 1
- Ótimo. Sou um louco-ladrão-amado-por-Deus!
Homem 2
- Se o senhor rotúla-se assim...
Homem 1
- Se Deus existisse, as duas provas que te dei não existiriam. A vida seria perfeita. Poderíamos jogar qualquer culpa sobre Ele. Se Ele existisse, você não sofreria.
Homem 2
- Deus faz o que é certo.
Homem 1
- Claro que faz!
- Ele criou um mundo para os asnos e pediu aos ratos que os comandassem. Criou instituições para marcar todos os asnos com seu símbolo. Sabe onde fica a marca de Deus nos asnos, meu querido asninho?
Homem 2
- Onde, meu senhor?
Homem 1
- No único lugar de teu corpo que não consegue ver!