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Contos-->Sobre a importância de vestir os mortos -- 27/07/2000 - 15:00 (João Carlos Viegas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

- Garret! Telefone!
Avisa o Nélson.
- Seu Jorge Fernando Garret?
Pergunta a voz de mulher afrancesando a pronúncia de meu sobrenome. Confirmo para ouvir que Manuel de Oliveira Garret sofrera ataque cardíaco fulminante. Anotei o endereço do hospital, pedi dispensa ao Fonseca, desci no elevador, peguei um táxi porque meu carro está parado desde que a pastilha de freio foi comida e lá vou eu atender meu pai morto.
A médica conta que pai chegara sem vida e me aconselha a providenciar o atestado de óbito senão o corpo será encaminhado ao Instituto Médico Legal onde ninguém pode garantir o que acontece.
- A médica é você.
- Não posso assinar porque ele chegou morto.
- Você só assina quando o paciente morre em suas mãos?
A médica mostra impotência porque não manda no hospital e a ordem - seu dedo aponta algum lugar no andar de cima - é essa. Ligo para um primo formado em medicina que se prontifica a resolver o problema. Um assistente bota em minha mão um saco com os objetos portados pelo morto: inúmeras carteiras de identidade, não sei quanto em dinheiro, dentadura inferior, escudo do Vasco, bilhete de loteria e chaves. Surpresa tenho na funerária, não vestem mortos. Assim, fico diante de Manuel de Oliveira Garret, o morto; meu pai.
- O senhor deve providenciar logo a roupa. Às vezes, o corpo endurece e fica difícil vestir.
Avisa o cara que trouxera o corpo enfaixado enquanto deposita a múmia na mesa de mármore.
No pátio do hospital, espero a vez no telefone público onde uma mulher fala com alguém sobre outro alguém muito ruim. Ela desliga, pego o aparelho, disco o número de mamãe.
- Mãe! Avisa Gracinha! Vou pegar a roupa dele.
- Eu não vou, viu? Qual a serventia da roupa?
- Um morto, mãe! Um morto se veste..
- Tá bom! Já avisaram sua irmã. Meus sentimentos, filho.
Desde que se separara de papai, não dizia o nome dele e, quando falava do ex-marido, fazia questão de se referir a uma pessoa distante. Por isso, dera-me os pêsames ratificando que o sentimento de perda só a mim pertencia.
Porteiro e vizinhos me cercam, balanço a cabeça agradecendo as manifestações de pesar. Meto a chave na porta do apartamento, ligo a luz e vou direto ao guarda-roupa do morto. Camisa social, paletó, calça, meia, sapato... não entendo o motivo de se vestir um morto, em algumas culturas isso é dispensável. Vestir mortos é como se abster de carne na sexta-feira da paixão, está determinado. Mesmo algum bispo afirmando que a miséria dispensa o católico do jejum, famintos rejeitam a carne em nome do sacrifício de quem morreu para nos salvar.
Recolher a roupa do morto, vasculhar intimidades, remexer segredos, reconhecer meu pai. Lembro ele fumando Pimentel número dois recontando a piada do português desconfiado que a mulher o traía com um sapateiro porque encontrou debaixo da cama um sapatão. Não convém sorrir diante da tarefa de vestir o morto. Refaço o caminho de volta até à sala mortuária do hospital e desenrolo o corpo de meu pai.
Nu, inerte e fisionomia diferente. A comparação é inevitável: o homem que me viu despido chegar à vida está nu. Vestirei meu pai como ele vestiu meu avô como meu avô vestiu meu bisavô e como serei vestido se um filho tiver. O espaço temporal entre gerações é preenchido pelo ato de vestir o morto da geração passada. Agora, não se trata de vestir por vaidade ou prenúncio de conquista social. A um morto, a vestimenta tem nenhum significado. Vivos se despem para o sexo ou para o banho que, embora hábito higiênico, tem dose de prazer. Meu pai está nu por conseqüência da morte e para ser entregue a ela está sendo vestido.
Calço meia, enfio cueca, a calça. A camisa é mais difícil. Seguro a pele nem tão fria quanto imaginei. Quantas vezes tive vontade de expressar carinho tocando a pele de papai? Não o vi nu enquanto vivo, não me despi em sua frente depois da idade adulta. Tínhamos o pudor convencional de nossa educação e cultura. Não consigo deixar de pensar sobre a minha intromissão ao invadir a nudez desse homem.
- Seu Garret! O pessoal da funerária chegou!
Avisa o funcionário do hospital afrancesando a pronúncia de meu sobrenome, pronúncia que papai rejeitava lembrando que nosso Garret tinha um T igual ao poeta português.
Falta o nó na gravata, filigrana que se deixa para o final, toque indispensável na composição da elegância dos executivos. Ao aposentar-se, papai pendurou a gravata avisando que não tornaria a usá-la. Com remorso, finalizo o nó triangular considerando meu morto plenamente vestido.
Os funcionários da funerária entram com o caixão, utensílio que me recusei a escolher. Por telefone, avisei que me vendessem o melhor para um morto discreto que terminara a vida recolhido à solidão. Um caixão negro com forro de cor neutra onde depositam o corpo, a tampa tem uma cruz em alto relevo sem o corpo de Cristo. Nem lembro se a recomendação fora minha mas - há tempos- fico constrangido com imagens de Cristo Crucificado. Raramente, quando vou à missa por algum motivo especial, fico num canto tentando desviar o olhar das imagens no altar. Papai tinha frouxa preferência religiosa mal cumprindo as obrigações de um católico e pouco pronunciando em vão o nome de Deus.
Caixão na traseira da camionete, os funcionários e eu espremido no banco da frente. Na infância, papai levou a mim e minha irmã para um passeio de carro pela cidade. Meu tio dirigia e papai apontava cada rua contando uma história a cerca dela. O Rio de Janeiro cresceu tanto a meus olhos que penso ter nascido ali o amor desmedido por esta cidade. Agora, gostaria de apontar para papai as ruas, as janelas fechadas por causa do início da madrugada, os passantes voltando depois do trabalho. No entanto, o ronco sutil do motor do carro, as bocas fechadas dos funcionários da funerária e minhas lembranças transportam um morto para o cemitério.
Capela nove, ao fundo de um corredor com umas três ou quatro capelas ocupadas. A não ser pelas vozes que vêem da cantina, a madrugada tem um ar de recolhimento. O caixão é coberto por flores e me recuso a cobrir o rosto do morto com um lenço. Primeiro, acho desnecessário tampar o rosto de um defunto. Em segundo lugar, irritam-me as pessoas que se aproximam do caixão só para levantar o lenço.
- Quantos anos tinha?
É um senhor que veio de outro velório.
- Oitenta e cinco... ia completar em agosto. Era meu pai.
- Você o verá de novo
Balanço a cabeça de forma indefinida.
- Não acredita em reencarnação?
Nem nego nem concordo.
- Nós vamos para o plano superior ou voltamos se não cumprimos a
missão.
Novamente só, olho meu pai; o morto. Não quero vê-lo de novo mas se pudesse ter o dom de voltar no tempo como nesses filmes cheios de efeitos especiais; gostaria de estar a seu lado no instante do ataque para revelar minha admiração. Tanto faz se ele voltará com outro corpo ou cara, o homem ali é que sempre me interessou. Não lanço qualquer contestação religiosa mas - mesmo existindo uma sucessão de vidas ou outra depois dessa - o homem que viveu naquele corpo é que foi meu pai.
De manhã, chegam Gracinha e o marido.
- As crianças deixei na casa da minha sogra.
Ela tem mania de responder perguntas que não foram feitas.
- Vou tomar um café...
Na cantina, uma rodinha relembra qualidades do morto da capela quatro. Por que papai não tem um grupo assim? A solidão do morto é desoladora: o filho, a filha e um genro. Meu primo médico ficou de avisar parentes e um ou outro vizinho prometeu aparecer na hora do sepultamento. Justifico a situação com a idade avançada de papai; seus amigos estão muito velhos ou morreram.
Na volta à capela, encontro Gracinha desesperada apontando papai e perguntando como pude fazer aquilo.
- Fui eu que vesti o morto!
- Disso eu sei! Olha! Nada combina com nada! Camisa gravata com paletó e calça! Nada!
- É um morto ! Não vai desfilar!
Graça estica o dedo em direção aos sapatos e noto que são dois pés diferentes.
- Tampa com flores que ninguém vê, Graça! Depois, fui eu que
estava lá vestindo ele! Ninguém apareceu dando dicas de moda! Me jogo numa cadeira deixando escapar o riso. Mancada maior dei no enterro de tia Lívia quando vesti uma camisa igualzinha ao pano que revestia o caixão. Passei o velório sendo observado pelos que não entendiam se era uma coincidência ou homenagem à parenta falecida. Acredito que nada atrapalhará a caminhada de meu pai para a eternidade. Afinal, trata-se de uma metáfora que independe dos pés; logo, ignora os sapatos.
- Nem precisava de sapato!
- Então, vai lá e tira, Graça!
- As meias... são diferentes também!
Vou até o caixão e boto a tampa deixando apenas o vidro com a cara de papai. Graça iria parar com o jogo de caça erros nas vestes do defunto. Chegaram alguns vizinhos, poucos parentes, raros amigos.
- Somos da pastoral da igreja, podemos fazer uma oração?
Pergunto qual igreja.
- Católica. Ele era católico?
- Era.
- Podemos rezar?
- E o padre?
- A pastoral é de leigos, somos nós que rezamos pelos mortos aqui.
O direito canônico dispensa sacerdotes quando leigos fazem o serviço.

Glória ao pai, ao filho e
Espírito Santo.
Assim como era no princípio
Agora e sempre por todos os
séculos e séculos
Amém

Aprendi que médicos não assinam óbitos, padres não precisam rezar por católicos mortos e minha irmã tem senso crítico apurado na avaliação da vestimenta de um defunto.
Chegou a hora de enterrar o velho Garret com T igual ao poeta português. O homem que eu vestira para entregar à morte é conduzido pelas vielas do cemitério. Seguro firme a alça do caixão e entrego a meu cunhado a incômoda tarefa de consolar minha irmã. O Cortejo pára diante da cova aberta no gramado. O velho Garret será sepultado num Cemitério Parque onde comprara o jazigo número 3321-A. Meu pai nos poupara de prejuízos financeiros e quis ficar debaixo da terra num lugar muito verde, com certeza, pensando que teria uma sensação de liberdade.
E lá vai o velho Garret! Que deixe comigo os dias bonitos de sábado, que me poupe das manhãs de segunda-feira, que me passe seu pouco caso com as previsões das ciganas ou sua irritação com os prognósticos dos economistas. E lá vai Garret! Cujo desejo é ter escrito no Epitáfio: Doce como uma flauta de Altamiro Carrilho, apaixonado como a voz de Ângela Maria. A terra cobre o caixão e os lamúrios sociais se intensificam. Lá vai Garret! Vestido por mim, seu filho - o único membro da família a entender a relevância desse gesto e passar adiante algumas considerações sobre a importância de vestir os mortos.·

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