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Contos-->A língua universal -- 25/12/2002 - 03:17 (Renato Junqueira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Sim! A humanidade tinha de se unir. Os momentos eram difíceis, nós tínhamos de nos unir, eram o que diziam todos, até os governos. O futuro, que parecia tão promissor, agora presente, era só presente, e precisava de um impulso, algo que voltasse a dar-lhe esse caráter promissor. O futuro sempre tem de ser futuro, brilhante e límpido, cheio de esperança!

Sim! A humanidade iria dar esse impulso e essa esperança a si mesma, a humanidade ia criar a Língua Universal, e, dessa vez, era para valer, era para vingar mesmo; era questão de honra para todos os governos criarem e adotarem em pouco tempo o mais novo sonho da humanidade: A Língua Universal!

Todos os governos passaram a procurar o melhor método para criá-la, lingüistas escolhidos a dedo passaram a montá-la; todos tinham uma idéia bem clara na mente, digna do egoísmo dos pretensos filósofos não-egoístas consagrados, sobre essa linguagem: ela não poderia ser nenhuma já existente, teria de ser uma totalmente nova! Isso, porque seria absurdo escolher uma em detrimento das outras, seria INJUSTO!!

Teria de ser uma língua bem simples, e não complexa, para que fosse de fácil aprendizado e uso. Queriam mesmo que essa linguagem substituísse todas as linguagens do mundo, para que houvesse total integração dos povos e, assim, o sonho de um mundo unido, de irmãos se ergueria e reluziria. Embora, leitores, nem tudo que reluz seja ouro.

Então, a língua era para ser bem simples e prática. Havia muitas palavras desnecessárias, que poderiam ser substituídas por outras por associação de idéias mais simples que tinham tudo a ver. Palavras de cunho positivista tinham raízes em comum, por exemplo: "governo", "pessoas", "futuro", "bonito", "universal", "patriotismo", "humano"... eram nomes derivados do ideograma "bom" e formados por dois ou mais desses por associação clara de idéias.

Sim, ideogramas. Queriam o melhor tipo de linguagem, a linguagem dos ideogramas, que é baseada na associação de idéias. Leitura rápida, fácil aprendizado... eram apenas 600 tipos de caracteres diferentes sem os termos técnicos para grau de ensino superior; assim, ficaria uns mil caracteres. Isso, para uma linguagem de ideogramas, é pouco, justamente para facilitar o aprendizado: ser o mais simples possível. O aprendizado ficava fácil, não haveria mais as chamadas "invencionices", os erros de grafia comuns em linguagens fonéticas; a língua ia ficar bonita, a língua ia ficar BOA!

E quanto aos nomes? Como seriam compostos os nomes, então, por ideogramas? Bem, não seria difícil em alguns casos para aquelas pessoas cujo nome foi baseado em língua sem ideogramas. Muitas já possuíam certo significado no nome, outras podiam usar apenas o fonema de palavras para remontar seu nome nessa língua, e mais outras podiam reinventar o seu próprio nome conforme seus anseios para com sua vida e para com a dos seus filhos, por exemplo: adotar a palavra "de Deus" na nova língua como sobrenome; mas, para ajudar - como sempre - os governos iriam adotar determinados nomes já existentes como fonemas para vários ideogramas, uma forma de homenagem às pessoas ilustres do passado. Por exemplo: "Stein" seria o fonema para o ideograma "saber", e "Ein", para o ideograma "tudo", fazendo justiça ao legado de Einstein; e também tinha tantos outros "Stein" por aí a fora querendo ser homenageado de qualquer jeito.

Claro que nem todos os povos conseguiam pronunciar os mesmos fonemas igualmente ou corretamente de acordo com a sua formalidade fonética, não há como um governo imprimir uma forma de falar ao povo através de lei ou decreto, realmente havia essa individualidade, que era bem aceita, bem-vinda; afinal, o mundo seria muito sem graça se todos fossem iguaizinhos uns aos outros, não é? Só os mais em condição para se voltar mais tempo à cultura eram aqueles que conseguiam reproduzir os fonemas da forma universalmente formal, formando, assim, a elite. Mas todos tinham o direito a educação e a escrever e a ler, mesmo que fosse com sotaque, muito nem mesmo tinham dinheiro para viajar, não é? O importante era se comunicar mais com o seu povo, com o pessoal do seu país. Era mais patriótico assim, era MELHOR!! E a língua não deixaria de ser boa por causa disso, pois ela ainda era universal, vejam só que magnífico.

Feito o melhor dos trabalhos para simplificar essa nova linguagem de ideogramas ao máximo, puseram-se a reescrever toda as MELHORES obras já feitas, porque iriam jogar todos os livros escritos nas outras línguas primitivas na fogueira para que não houvesse mais confusão e perda de foco com as antigas línguas egoístas, não se podia permitir competição de um sonho coletivo de seu povo e do resto dos povos com um ato egoísta de preservar tais livros; quem fosse pego guardando tais escritos iria também para fogueira por causa do seu CRIME ANTI-UNIVERSOPATRIÓTICO!! (Uma nota quanto a esse último termo: ele não existia na nossa língua, mas foi montando pela clara associação de idéias de seus ideogramas, e o crime era um duplo crime, já que ia contra o caráter bom do universal e do patriotismo, logo o criminoso deveria ir duas vezes para fogueira, se isso fosse possível por mãos humanas. Então, Deus trataria do resto mandando tais criminosos para a fogueira incessante e ardente do INFERNO!)

Os livros ficaram muito bem escritos depois que os traduziram para a nova língua, e ficaram realmente, literalmente, bem escritos, ficaram mais bonitos, mais vistosos, mais suaves e relaxantes de se ler, até os mais críticos ficaram; isso tudo, graças aos ideogramas bonitos e floridos que as palavras de cunho positivista tinham. Todos adoraram aquelas lindas gravuras embutidas às estórias dos livros, e, claro, adoraram-nas ler ainda mais depois daquele jeito; embora alguns invejosos escritores - entre eles, um que, por ter ideogramas tão feio em seu pseudônimo, não merecia a atenção de ninguém - diziam que muitos livros tinham perdido totalmente o sentido. Mas, leitores, vocês também acham que exista algo que agrade a todos, a gregos e troianos?

Assim, o homem deu vazão a mais um sonho , dessa vez, ao maior sonho egocêntrico – essa sim, a palavra correta - de todos; e, se alguém um dia disse que a palavra não iria salvar a humanidade (se não disse, eu estou dizendo agora), ela tinha acabado de selar o seu destino de uma vez por todas - se é que já não o tinha selado desde o início de sua existência. A língua universal, fruto do egocentrismo, ganância e cegueira intelectual humanos espetaculares, estava pronta e enraizada.
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