- Então tá; desculpe-me novamente por ter ligado a essa hora. Uma boa noite para a senhora e desculpe o incômodo - e desliguei, sentindo-me um idiota. Não devia ter me desculpado tanto. Não devia ter ligado para a casa dos avós dela às 22:10. Não devia ter descido para ligar. Não devia pensar o que estava pensando.
“Então tá”; vê se isso é jeito de tratar uma senhora de idade que tem problemas para subir as escadas da própria casa? Eu bem que poderia ter curtido mais o momento. Essa senhora povoou a minha imaginação por um bom tempo quando Cláudia contou-me a situação em que vivia com o seu marido. Não conseguia conceber Cláudia olhando o avô com admiração. Nem tampouco a via olhando da mesma forma sua avó. “A mulher dele é legal”, disse-me certa vez.
Uma gritaria do outro lado da rua tirou-me do meu torpor. Olhei para os lados e notei umas crianças fazendo a xepa no lixo do supermercado que acabara de fechar. Pessoas gritavam meu nome do outro lado da rua. Atravessei, acenei para uns 4 ou 5 e pedi que Luiz afastasse a bicicleta para que me sentasse no banco em frente a lanchonete.
- Não poderiam separar esses legumes em sacolas e dar para as pessoas que estivessem a espera que essa porra fechasse?! – dizia irritado ao ver as pessoas se degladiando pelos restos de comida.
- Depois isso deve se resolver – disse vagamente, mesmo sabendo que ele não continuaria a conversa com perguntas sobre a frase vaga que queria referir-se a LEI DO RETORNO. Acreditava que se aquelas pessoas responsáveis pelo lixo o deixassem daquela maneira pelo simples prazer de ver a miséria aflorar, a vida haveria de dar-lhe o troco.
Respirei fundo. Pensamentos maus me invadiam. Podia vê-la sorrindo do jeito de seu primo falar, fazer as coisas. Me veio a frase “é melhora dar azar do que dar a Zé”. Olhei a minha volta e pessoas acenavam-me. Eu, de paletó e gravata, suado e cansado, sentado num banco de esquina. Ri de mim mesmo e levantei-me. Fui pra casa. Queria falar com alguém. Escrevi estas linhas para mim mesmo. Não estava gripado; Estava triste.
O telefone tocou às 23:15. Devia ser ela. Não quis arriscar. Não atendi. Tomara que ela não fique preocupada. Não estou a fim de muito papo. Cantarolei:
De que serve viver tantos anos
Sem amor
Se viver é juntar desenganos
De amor
Se eu morresse amanhã de manhã
Não faria falta a ninguém
Seria um enterro qualquer
Sem saudade sem luto também
Ninguém telefona, ninguém
Ninguém me procura, ninguém
Eu grito e um eco responde
Ninguém
Se eu morresse amanhã de manhã
Minha falta ninguém sentiria
E tudo que fiz
Ninguém se lembraria
O telefone tocou de novo. Fiquei com a consciência culpada, por talvez deixar Cláudia preocupada, como se ter saído fosse algo ruim ou errado. Atendi. Era minha mãe. Foi bom, muito bom. Se morresse amanhã de manhã, em breve retirariam meu corpo. Mas não ia morrer, pois esperava encontrar Cláudia no Aeroporto, rindo e feliz. Estarei feliz até lá.