Gentil era seu nome. Talvez fosse mais que isso, talvez fosse uma síntese do que ele era a si mesmo. O nome. Ao batizar um bebê as mães não deveriam se preocupar tanto com seus significados, apenas deveriam escolher o que soa melhor ou escolher a bula de um remédio e pegar o primeiro conjunto de consoantes e vogais que aparecer a sua frente, assim eles não criariam monstros como Gentil; seria muito melhor se chamar Dipirona do que Gentil ou Sebastião ou Pedro, pois não teríamos preocupações com as abstrações geradas pelo nome.
Dipirona é um composto químico e ponto. Não é metáfora e muito menos tem ligação com algo que não possa ser explicado com menos de cinco páginas de histórias repletas de non sense e espírito artístico. Gentil é nome de homossexual, só pode ninguém pensaria isso se o nome dele fosse Dipirona. Chamariam seus pais de loucos, mas ele continuaria sendo ele mesmo.
Ele era gordinho para os padrões gerais, tinha apenas setenta e cinco quilos, mas sua altura não lhe dava vantagem. Media exatamente um metro e cinqüenta e nove, mas tinha ainda algo que o deixava menor; talvez fosse a sua postura que o encolhesse mais alguns centímetros. Ele parecia mais baixo e era fato inquestionável.
Andou por alguns degraus agora a pouco, subindo para o seu apartamento do segundo andar, sem muita pressa. Estava querendo sentar em seu sofá e ler sobre o tempo. Era extremamente viciado na previsão do tempo. No jornal era a primeira consulta que fazia.
A graça na previsão tempo, para este homenzinho redondo, era de que ele não podia ser previsto, sendo o mais próximo que ele queria chegar perto de um relacionamento afetivo. O único desapontamento que ele desejava guardar era o de sair de casa com o guarda-chuva e ficar com um peso maior em sua bolsa ¿ odiava estar sujeito a qualquer outra manifestação de aletoriedade ou sorte.
Quanto a sorte, achava que ela era apenas mais um produto, mais uma ferramenta de comercialização de sonhos. Não existia essa coisa de melhoria, pois tudo tendia para o pior, já que o pior era a degradação. Depois de um determinado ápice de novas vidas, tudo tendia a chegar ao fim. Era a lei natural. Nem mesmo as estrelas escapavam dela. Tudo que é novo se torna velho do mesmo jeito que o que é bom hoje vai se tornar pior um dia, pode ser porque passamos a ter isso como comum, mas tudo que é maravilhoso vira mesmice com o passar dos anos. Era uma maneira de manter-se a salvo, da sua maneira, mas era.
Depois de ver que amanhã o dia seria parcialmente nublado com pancadas de chuva ao final da tarde ele levantou e pegou um volume grosso de cima da estante. Era a coleção encadernada que ele mesmo fizera de todas as obras de um recente membro da Academia Brasileira de Letras. Este era o mais próximo que ele queria chegar da literatura.
A literatura era uma ferramenta frustante. Enquanto ele tentava se expressar através das letras e explicar o que queria dizer, lia tanta porcaria e era obrigado a aturar um novo poeta-escritor tentando complicar ainda mais a maneira de se expressar. Todo o dia nascia um novo fazedor de regras e manipulador da linguagem que, na verdade, não tinha nada a dizer mas se dizia gênio. Odiava a falsa expressão de arte e a pintura do complexo como forma de simplificar. Achava tudo tão chato, mas tão chato que preferia ler algo óbvio e escutar comentários sussurrados em um café qualquer quando ele segurava um livro vagabundo nas mãos. Preferia a companhia do medíocre a intensa e chata teimosia moderna dos metidos a artista.
No fim das contas, Gentil era bem sistemático, um exemplo clássico e bem delineado do que a sociedade moderna pode fazer com um individuo. É muita informação para uma pessoa só e é muita conclusão para tão pouco tempo de análise. Informatizado era o melhor termo para defini-lo, pois era feito mais de informação do que de experiência adquirida por ação própria.
Talvez por isso nenhum dos vizinhos gostasse dele e se referissem a ele como o ¿gordinho isolado do vigésimo segundo¿. Ninguém esperava muito dele. Não se manifestava mais do que acenar com a cabeça ao porteiro ou a apertar o botão número dois do elevador quando queria socializar. Preferia as escadas como meio mais comum de transporte, já que por lá ninguém cruzaria com ele. Evitaria assim cumprimentos indesejados.
Comprou uma caneta dois dias antes, em um camelô, que disse não ter troco. Gentil olhou para trás depois de dar a nota de cinco reais para o rapaz e partir. Percebeu que o homem ria e mostrava a nota para um outro branquelo ao lado. E ria. Colocando as mãos no bolso e mostrando várias notas de um real, sem contar as moedas da outra mão. A caneta custava apenas cinqüenta centavos e era só o que Gentil queria, mais nada. Na papelaria ao lado, com cinqüenta centavos você comprava quatro canetas de melhor qualidade. Partiu ele sem arrumar encrenca, já havia socializado demais para uma tarde de sexta-feira comum.
No dia seguinte acordou, olhou para fora e começou a escrever uma carta com a caneta vagabunda. Só o que talvez gentil melhor tivesse feito em sua vida sistematizada e distante, fosse ter definido nesta carta a melhor idéia dele sobre as coisas:
O amor é algo tão volátil que assusta. Você pode apreciar um beijo tanto quanto uma queima de fogos, pois a sensação de maravilha que ele causa é a mesma. No primeiro beijo você sente que não terá outra sensação tão intensa e diferente quanto ele, mas logo vai perceber que ele é presente, é constante. Explosões vão ser feitas e maravilhas vão ser sentidas, mas no final das contas toda queima de fogos tem o mesmo elemento -pólvora, pigmento e barulho.
Com o passar dos anos os fogos perdem a graça e você descobre que não passam de reações químicas e que não existe magia em sua composição. Com isso você pára de lacrimejar de emoção, passa a analizar as formas e a prestar mais atenção na diferença entre esses fogos e os do ano passado.
Você vira um observador distante e passa a se envolver menos, assim você evita queimaduras desnecessárias e aprende muito mais. Deixe que os outros façam o trabalho duro por você, deixe que eles montem o show; fique no lugar mais alto -e seguro- para acompanhar a plenitude caótica que vai se seguir. Beijos e fogos de artifício, tanto faz.
O único trabalho que tiveram foi conseguir ler o que estava escrito entre as manchas de tinta da caneta que havia estourado e o sangue que havia se juntado em cima do papel. O amarelado do soro sanguíneo não incomodava, mas a hemoglobina deixava o documento quase que ilegível.
As pessoas correram para ver o que havia quebrado e perceberam que havia sido a janela do apartamento de número vinte e dois. Nunca tantas pessoas apertaram a campainha do apartamento de Gentil. Com um revólver calibre 38 Gentil mostrou que sabia o ângulo exato para acertar ao mesmo tempo a sua cabeça e o vidro da janela. Sistemático até o fim.
Não havia chovido como a previsão do tempo havia escrito no jornal de ontem.