Como no Pesadelo de Fuseli, estou deitada e exposta às garras de um sonho mau. Rodeiam-me figuras indistintas que almejo recortar da escuridão. Perfiguram aquele que espero e o seu rosto é indistinto na minha memória. Saberei se o vir. Afasto as teias da bruma e ergo-me escrutinando a noite. O vulto que diviso não me olha. O seu olhar luminoso perder-se-á na distância imperturbável dos tempos e virá cravrar-se no meu para ali ficar, no cais que serei do seu . Mas não. O vulto que diviso não me fita, nem me pressente. O seu olhar alonga-se esquecido comtemplando absorto algo que não vejo. Assalta-me uma onda de frio e estranheza ao descobrir que não existo. Toco-o. É apenas uma tela, o Homem da Luva de Ticiano. Não é real e quem eu busco virá enfeitado de ternura e a sua presença será quente e avassaladora. No cúmulo do horror, passa por mim um cego guiando cegos e eu desejo segui-los, os cegos sabem sempre para onde vão, determinados em vencer a escuridão, levar-me-ão à luz, à luminosiade que emanará do seu rosto e adivinho-o já no olhar directo e franco, que parece romper a tela de Durer, o retrato de um homem perfeito que rompeu a barreira do tempo e me ciciou silenciosas palavras de amor. MAs não é ele não. A um canto vejo o perfil profético do Aguadeiro de Sevilha e luto, luto para alcançá-lo, tenho sede, sede, erro pelos campos no dia em que o sol se esqueceu de nascer e a noite não se deitou e passo a um cemitério em ruínas, o meu nome numa campa, eu que sou uma odalisca de corpo leitoso, saída do Jardim do Amor de Rubens e luto para quebrar as lianas que se me enredam, raízes que me enlaçam, as forças telúricas reclamam-me e eu ainda quero viver, desisto de encontrar aquele que me busca, mas reclamo a vida. Quando estou prestes a descobrir, aliviada, que afinal sou apenas a Rapariga ao Piano, solto um grito maior que o de Munch, sentindo mão pastosa que me sacode com energia.
"Acorde, menina, vamos lá. O museu vai já fechar..."
Encaro-o sorridente. O zelador parece S. Francisco em êxtase, certamente já me chama há algum tempo e o seu olhar é de súplica. Olho para aqueles quadros todos e descubro que não sonhei, nem tive um pesadelo. Vagueei pelos lugares obscuros da minha mente e descobri que procurava um ideal. O ideais são apenas isso, aprendi a lição. Olhares que nos divisam de uma tela. Desejei ter conhecido Albrecht Durer, no apogeu da sua juventude, aquele seu auto-retrato, aquele seu olhar...
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