Abriu a janela. Seus olhos se fecharam rapidamente e seu rosto sentiu-se agredido pela luz, retraindo-se bruscamente, levando o corpo a cambalear. Amparou-se na poltrona que ficava no quarto. Perdendo o receio, foi recebendo em seus olhos a luminosidade necessária para crer no dia lindo que estava lá fora. Suas pernas ainda estavam inseguras; pés no chão frio e alvo, limitavam passos curtos e leves; pele pálida, corpo fraco, olhar triste; alma sensível, sedenta, verdadeira. Resolveu sentar-se novamente na cama, de lençóis claros. Apoiou-se na cabeceira, esticou o braço até o criado-mudo, pegou o copo com água fresca, e levou-o até a boca. Enquanto o líquido escorria por sua garganta seca, sentia que uma força voltava a correr em seu corpo. Calmamente, esvaziou o copo, todo ele. E foi o suficiente para sorrir, de rosto corado, para a enfermeira que estava por perto.
Foi até o corredor, buscou uma jarra límpida, com água pura. Esticou o copo, como que pedindo para enchê-lo. Foi atendida sua vontade, e novamente sentiu a energia entrar por sua garganta. Era como se seus poros se abrissem; veio um arrepio e seus ombros começaram a se levantar. A luz que entrava pela vidraça, demonstrava pontos de poeira voando, iluminados. Agradeceu novamente a água e encostou-se na cama.
— Há quanto tempo fiquei dormindo?
— Adormeceu e descansou bastante.
— Quanto tempo?
— Algumas horas.
— Não me lembro de você. Estava aqui antes?
— Não, senhora. Cheguei noite passada. Sua irmã me pediu para lhe dar assistência total durante a noite. O hospital não fez restrições.
— Que horas são?
— Nove horas, senhora.
— Obrigada... seu nome?
— Talita.
— Obrigada, Talita.
— Imagine, senhora. Apenas permaneça mais tempo deitada. Ainda não se restabeleceu totalmente.
— Estou um pouco fria...
A enfermeira, prontamente, buscou um novo cobertor e colocou sobre a cama.
— Gostaria que ajeitasse sobre a senhora?
— Pode me chamar de Ana.
— Sim, senhora Ana. Gostaria?
— Pode, sim. – fez gestos de que queria a janela aberta. – Deixe-a assim, por favor.
— Claro, senhora Ana. Mais alguma coisa?
— Deixe-me sozinha. Se eu precisar, chamo você, Talita.
— Sim, senhora Ana. Vou sair. Estarei por perto.
Quando a moça saiu do quarto, ajeitou-se na cama, de forma a observar lá fora. Que dia liiiindo, Senhor... Que glória receber este vento em mim... A janela tinha cortinas leves, que balançaram ao ritmo do vento. Fechou os olhos, quis respirar profundamente, mas tossiu forte. Assustou-se com isso, mas acalmou sua respiração em seguida. Acomodou-se novamente, buscando uma posição confortável. Ouvia movimento no corredor do hospital, só que não se importava. Era bom saber que haviam outras pessoas por perto. Não gostava da solidão.
O céu estava azul, com algumas nuvens pequenas. Lembrou-se quando ensinava aos filhos que as nuvens eram como algodão doce. E que São Pedro fabricava para nos dar a chuva. Riu levemente. Lembrou-se também que esta sua “teoria” fez com que as crianças quisessem tomar chuva sempre, porque se era algodão doce... chovia doce... continuou a rir. Tossiu novamente. Apoiou a mão no peito. Que dor! Respirou levemente e virou-se na cama, ficando de costas. Tentou levantar-se para ficar sentada. Assim... sentia-se melhor. Dali também podia ver as flores que tanto gostava. Que lindas estão as hortênsias! Fechou os olhos e esperou um ventinho soprar. Quando ele veio, respirou fundo, buscando o perfume que vinha de fora. Não tossiu. Isso me faz bem. Viu o sol entrando, iluminando a cômoda do quarto e a poltrona vermelha, que ficava bem próxima da cama. Adorava vermelho. Pensou em ir até lá, tomar aquela luz quentinha que vinha do céu. Queria ir, mas sentiu indisposição. Chamou a enfermeira.
— Pois não, senhora.
— Pode me ajudar a ir até ali? – apontou para a poltrona.
— O sol?
— Sim, adoro, sempre adorei.
— Ajudo, mas não poderá ficar muito tempo. O médico virá vê-la, certo?
— Tudo bem.
A moça ajudou-a a sair da cama. Parece que eu estava melhor quando acordei... Sentou-se e pediu que cobrisse suas pernas.
— Ainda sente frio?
— Só nas pernas. – ajeitou a manta que a enfermeira lhe colocava.
Naquele momento, foi como se a porta se fechasse. Estava sozinha. Olhou diretamente para fora, em direção ao infinito. Com o olhar fixo, esqueceu-se de tudo. Não sentia mais frio, nem ouvia mais nada. Sorriu. Ouviu uma voz, que parecia a sua própria, a dizer que era feliz. E era. Saudades apenas dos meus filhos. Viu cada rosto que amava, passar diante de si. E viu que eles haviam crescido. Acompanhou cada passo da vida deles. São felizes. Lembrou-se que brigava com a irmã, sempre, desde pequena. Brigas tão irrisórias, de meninice, que muitas vezes as aproximava mais ainda. Quando adultas, viam que não eram mais disputas pelo brinquedo. Um dia, foi pelo namorado. Eu fiquei com ele... e ela ficou feliz também, sozinha. Tudo acabava dando certo. Hoje, sem nenhuma discussão, a irmã cuida dela. Amo-a profundamente. Sorriu novamente. Fechou os olhos, para respirar o vento que batia em seus cabelos e rosto. Isso, ajeita-os por mim... Pensou e sorriu. Que seria isso? Estava feliz? Estou tão leve. Continuou a olhar para fora. Lembrou-se que uma vez sonhou que voava. Sim, voar de voar, sem avião. Tinha lido, quando criança, que as fadas voavam. Não que quisesse ser fada. Não ousaria. Era somente o desejo de voar livremente, pairar no ar. Delícia essa sensação. No dia em que sonhou, acordou muito bem. Que idéia! Se eu pudesse voar agora, estaria vendo toda essa maravilha sob mim. Que divino seria! Sorriu e sentiu uma força adentrar em seu corpo. Sentiu que suas pernas estavam aquecidas. Tirou a manta, tentou levantar-se. Conseguiu chegar até a janela. Respirou profunda e lentamente. Suas mãos apoiaram-se no parapeito de madeira. Quis apoiar os cotovelos também e o fez. Desta posição, pôde ver melhor tudo lá fora. Que encanto de paisagem! Algumas andorinhas faziam sua dança matinal e passavam perto de suas mãos, que agora estavam estendidas buscando tocá-las durante o vôo. Delicadas criaturas!
De repente, ouviu um barulho vindo atrás de si. Assustou-se e quis olhar. Quando virou-se, não viu ninguém. Seu sorriso se desfez. Sentou-se na poltrona novamente. As pernas haviam se resfriado. A porta estava aberta. Viu a enfermeira.
— Você chegou?
— Não saí daqui em nenhum minuto, senhora Ana.
— Ah, é? Eu não a vi... – demonstrou surpresa. – parecia que estava sozinha... Desculpe-me, não que eu não a considere, mas é que...
— Imagine, senhora, entendo o que quer dizer. Sente ainda frio?
— Por um momento, não mais senti. Agora, voltou.
— Vou medir-lhe a pressão.
A moça abriu uma pequena maleta preta que estava sobre o criado-mudo e retirou o aparelho medidor. Quando envolveu nos braços da paciente, sentiu que ela estava toda fria. Após medir, guardou-o e buscou um papel para anotar. Viu que não foi questionada sobre o resultado e saiu do quarto por um momento. Quando voltou, estava acompanhada.
— Bom dia, senhora Ana.
— Bom dia, doutor.
— A senhora está bem?
— Estou com frio.
— Vamos ver isso... quer se deitar?
— Posso continuar aqui, no sol?
— Melhor não, senhora Ana. Poderemos aquecê-la melhor na cama. Tudo bem?
— Sim, tudo bem. – foi amparada até chegar a se deitar.
— Ficarei aqui muito tempo, doutor?
— A senhora ficará boa.
Acomodou-se na cama e virou seu rosto de lado. Fechou os olhos. Uma lágrima desprendeu-se. Fez-se silêncio.
— Nenhum dos meus filhos apareceu, doutor?
— Ainda não, senhora Ana. Mas fique tranqüila, eles virão logo.
— Sinto-me tão sozinha... Ainda estou com frio.
A enfermeira, prontamente, a cobriu. Virou-se para o canto novamente. O médico caminhou até a porta e conversou rapidamente com a enfermeira. Entregou-lhe um papel e saiu. Voltou trazendo um remédio, que a moça levou para a paciente. Depois de tomá-lo, adormeceu por um tempo. A lágrima havia secado.
Um pouco mais tarde, quando acordou, ouviu passos entrando no quarto. Alguém disse: Mãe? Ela virou-se rapidamente e viu sua filha, estendendo o braço para ela. As mãos se tocaram e enfim, beijaram-se.
— Vim o mais depressa que pude. Como a senhora se sente, mãe?
— Estou bem. Ando com um frio nas pernas, que não passa. Agora pouco, enquanto estava na janela, me lembrando de vocês, passou.
— Da gente? A senhora melhorou quando se lembrou?
— Sim. – Abriu um largo sorriso.
— Te amo, mãe.
— Eu também querida... – as mãos se apertaram.
— E seu irmão?
— Está vindo.
— Que bom, que bom...
E o quarto ficou mais aquecido. Podia sentir como se as andorinhas voassem ao seu redor. Pediu que lhe tirasse as mantas das pernas. O sol a aquecia sem tocá-la.
Desviou-se da filha, olhando para a porta. Avistou a enfermeira.
— Pode me fazer um favor?
— Claro, senhora.
— Pode me trazer algumas hortênsias daquele jardim? Azuis, sim?
Um sorriso abriu-se na enfermeira e na filha.
— Vou providenciar, senhora.
— Obrigada.
E as mãos ficaram unidas. Somente se soltaram quando outras foram chegando. Beijos foram sendo dados. O perfume das flores espalhava-se pelo quarto. As mantas estavam agora em outro lugar, dentro da cômoda branca. As pernas, antes frias, agora andavam de um lado a outro. Um choro de criança também chegou. Muitos sorrisos se abriram.
E o sol permanecia ali, aquecendo, aquecendo. Fazia tempo que o céu não ficava assim, tão limpo. Mamãe adora hortênsias azuis...