Giovanna formou uma fila de passageiros atrás da sua sapatilha branca. O nevoeiro que permanecera ativo até as oito da manhã já se dissipara. As aeronaves poderiam decolar e aquela – da escada na qual Giovanna calculava o tamanho dos degraus – a levaria ao encontro do pai.
Giovanna subiu, foi instalada pela mãe em uma poltrona no meio do corredor, e procurou a babá que rezava na porta, com medo de avião.
A criança olhou pela janelinha. A asa apontava outros aviões, e ela contou os tratores e os funcionários que caminhavam pela pista. Cinco, sete, oito, nove funcionários. A contagem dava um sono.
O voo seria passear dentro das nuvens. A avó lhe falara sobre a viagem. Garantiu que no céu existiam anjos e castelos e, quando chegassem na cidade de Santiago do Chile, encontrariam o papai. Ele poderia estar em um castelo ou saber montar cavalos.
Giovanna pensava muito em cavalos e sonhava tornar-se uma grande “amaionese” para, junto com o pai, andar em potros de crinas coloridas.
Há muitos meses Giovanna não via o tal pai. Lembrava muito pouco daquele homem. O seu rosto tão próximo, tão quente, aparecia nas horas em que o sono não vinha. “Durma, minha filha”. A voz também surgia em suas recordações. A criança aprendeu a palavra "grossa" para identificar o timbre da voz do pai. Seu pai tem uma fala grossa, igual ao motor do avião.
A aeronave decolou. A menina imediatamente procurou os anjinhos. Espremeu o nariz contra a janelinha. Olhou para o céu, olhou para a terra. Parou seu olhar em uma nuvem. Nada. A babá fechou a janela. Ela tinha que dormir. A menina então examinou o teto do avião.
A aeromoça perguntou se o neném do voo queria uma maçã do amor. “Quero!”
A maçã do amor era a própria fruta, coberta de caramelo vermelho. A menina comeu e mordeu o palito. Os dedos ficaram doces. Ela os lambeu. Lambeu a palma das mãos. Lambeu olhando para a babá.
A babá também mordia os dedos e balançava a cabeça. Disse que iria vomitar. Trouxeram o saco de vômito. Giovanna já vira muito vômito, mas a babá apenas soprou o saco. Soprou, soprou, e as pessoas dormiram.
Giovanna não dormiu. Ficou olhando e esperando. Desceu da poltrona. No fim do corredor tem um banheiro. Caminhou pela aeronave. Todos dormiam. Foi até o banheiro e não viu as aeromoças. Não havia mais aeromoças. Queria fazer “xixi”. Não sabia como abrir a porta. Puxou uma alavanca e o avião abriu a maior janelinha do mundo. Não havia vidro separando e o avião lá no alto. Giovanna não acreditou. Soltou um “aaah!”. Ali estava o céu sem nada para atrapalhar. Azul! Azul dos sapatos novos que sumiram na mala. A mesma cor das estrelas pintadas em seu caderno de cera.
A menina quis chegar à beirada. Olhar para baixo. Pisou devagar. Pertinho. Pertinho e um sopro morno passou entre as suas pernas. E seguiu-se outro sopro e outro. Depois vieram os relinchos e o galope forte no teto.
Giovanna colocou a cabeça para fora e viu cavalinhos correndo, disputando o primeiro lugar - da largada, no início da aeronave, até a chegada, em cima das janelinhas do piloto. Não carregavam jóqueis, os potrinhos. Apenas disparavam. Alguns trotavam da asa direita para a asa esquerda. “É o carrossel do dia da roda-gigante!” O avião espalhava pôneis sobre a fuselagem e os bichinhos nem se incomodavam com o vento.
A menina então ficou tonta. Não vomitou como a babá, mas escorregou. Caiu sobre a sela do menorzinho vermelho. Ele mergulhou no espaço. O avião ficou pequeno. Sumiu.
Giovanna tornara-se enfim a “amazona” que prometera se transformar. E acenou para rebanhos das ovelhas, das pequenas vacas que mugiam. Acenou e caiu novamente. Ela despencava, despencava e rodava.
Acordou, deitada sobre o sofá de uma sala sem som. Puxou as cortinas da janela, no momento em que dois aviões passeavam, embaixo um tratorzinhho amarelo. O sol apertava os olhos. Giovanna quis fechar a sala. As cortinas agora não saíam do lugar e os puxadores pareciam as crinas dos potros. Sumiram. O que aconteceu? O trote com o pônei não fora sonho. Não fora sonho. Achou um arranhão nas pernas. Talvez o machucado fosse a prova do passeio. O potrinho a deixara ali.
Examinou o recinto, e na outra ponta do sofá brilhava uma maçã do amor. Giovanna esqueceu os cavalinhos. Ao lado da maçã viu o quepe do comandante do avião e um casaco de botões dourados. A fruta pertencia ao comandante, porque se encontrava perto do seu quepe, e a proximidade impedia a mordida no doce.
Giovanna entendia a lógica da proximidade. As coisas pertencem ao primeiro da fila. É dono quem está em cima. A distância retira a força. Por isso ela viajava para encontrar o pai, antes do pai encontrar outra única filha.
Ajeitou-se no sofá. Os sapatinhos saíam dos limites do canapé. A ex-amazonas levantou os sapatos. Lembrou-se dos cascos dos potrinhos, e isso lhe deu um impulso. Pegou a maçã. Agora a maça estava longe do comandante.
Giovanna admirou a cor vermelha da guloseima, a superfície lisa e brilhante da fruta do amor. “Que bonita!” As mãozinhas amassaram o invólucro protetor. Suspirou. E se ela lambesse o plástico? Lambeu. Puxou o plástico. Mordeu o doce. Mordida de coelho. Arranhou o caramelo. Outro pedacinho.
Mas havia caído tanto tempo, havia galopado tanto, por que não teria direito a três mordidas? E para cada cambota no céu – e foram tantas – não valia mais um bocadinho? Comeu, comeu, comeu e quebrou o palito na boca. Sobraram o quepe e o casaco do capitão.
Giovanna imaginou a chateação do homem pela mastigação da maçã. Era “uma para cada passageiro”.
Escutou passos. Alguém avisava sobre a próxima decolagem. O comandante entrou na sala, vestiu o casaco de botões dourados, colocou o quepe e procurou a maçã.
Quando a menina vislumbrou o uniforme, e estava tão perto, sentiu o medo que lhe vinha à boca desde o dia da polícia, quando o pai fora embora de casa.
O comandante abaixou-se, percebeu a boca lambuzada do neném do voo, passou a mão nos cabelos da menina e declarou sem gravidade:
– A maçã era para você, querida. Não se preocupe.
Giovanna respirou aliviada. O homem não gritara, não a levara para longe. Ele devia saber que seu pai, seu único pai a esperava na cidade.
A mãe entrou no recinto. A babá saiu de outra porta. O aeronauta despediu-se das três. Desejou bom término de viagem, apesar das muitas escalas.
As “muitas escalas” lembravam algo pontudo. A cara da polícia.
Aterrissaram à noite em Santiago do Chile. O pai esperava a família no saguão. Giovanna correu, abraçou o homem. Ele continuava alto, e a voz grossa de dentes brancos tinha muito tempo. Giovanna se lembrava, aquele tempo antigo, quando podia ver a voz do pai. A voz batia nas paredes. Um galope de sapatos.
O homem examinou a filha. Beijou-lhe a testa. Cheirou. Ela lhe contou a aventura da maçã e de como o dono da fruta não a expulsou do avião. O pai acreditou. Sentou a criança no colo e narrou ali mesmo a história de Adão e Eva. Deus os expulsou do Paraíso por causa da maçã do amor, igual à do avião.
Giovanna pensou em um paraíso dentro do avião. com poltronas e sacos de vômito. Depois, perguntou sobre a lonjura da nova casa.
O pai tentou explicar-lhe que fora expulso da outra casa por ordem do governo. “Governo?” Uma gente que agora mandava em tudo e sentiam-se donos de todas as maçãs carameladas do Brasil. Não dividiriam com mais ninguém.
Na hora, quis revelar ao pai sobre o passeio com o pônei, as nuvens, mas veio o medo. De que o pai informasse às terríveis pessoas do governo sobre os cavalinhos do céu e eles quisessem prende-los.
Alguns cavalinhos tinham o couro caramelado, igual às maças do voo.
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