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Contos-->Snacks Crocantes -- 28/01/2003 - 22:30 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Snacks Crocantes


Aconteceu no Acrópole, um barzão antigo e tradicional aqui de Santana do Pissirico – conhecido apenas como ‘Bar do Seu Rui’. Não presenciei o fato, mas o averiguei com diversas testemunhas conhecidas minhas; inclusive com o dono do estabelecimento, um septuagenário sério e seco, pouco propenso a firulas.

Chicão, o tal fulano, é carroceiro desde moleque; cresceu em cima duma carroça – sempre escoltado por um ou dois vira-latas contentes. Ali estava sua paixão; nunca pensou em tornar-se astronauta, piloto de corrida, jogador de futebol, nada disso. Assim, o que era divertimento de menino tornou-se ofício, e aos 14 anos Chicão já se virava sozinho, com sua própria equipagem e o engenho inato de freteiro da roça.

Uma geladeira pra lá, um armário pra cá, umas tábuas, telhas, tijolos. São desses carretos modestos de cidade pequena que ele tira seu sustento. Às vezes uma mudança de família vai completa em duas ou três viagens – caixas de cacarecos, a acanhada mobília já deteriorada, ossos e vísceras do santuário doméstico, tudo exposto a céu aberto no lento e embaraçoso desfile (até o cavalo parece ruborizar com os olhares marotos da gentinha). Mas o Chicão nem que se abala...

Sujeito amistoso, parrudo, bastante obtuso e sorridente, calculo que esteja na faixa duns 43 anos de idade. A luta contra o alcoolismo se arrasta de há muito, com freqüentes recaídas. É quando ele pira. Bebeu, fudeu! fica endemoninhado!.. Seus acessos são tão impressionantes que já se tornaram parte da tradição folclórica da cidade, assim como as histórias do velho do saco, do peladão da ponte, do menino encantado, da velha reclusa e suas cavalgadas noturnas, do mendigo milionário, da noiva fantasma, do chupa-rola da beira-linha etc.

Se daqui a cem anos remexermos o baú das miragens, fantasias, causos e prodígios de Santana do Pissirico, com certeza lá estará a imagem do Chicão, desbaratinado, em disparada com sua carroça pelos bairros da cidade, uivando e praguejando madrugada afora (como Kirk Douglas e sua biga envenenada, em Ben Hur). A cena é brutal e fantasmagórica ao mesmo tempo: de pé, sem cair, sobre a prancha de madeira, sua figura imponente parece uma visão do outro mundo... a fustigar implacavelmente seu corcel... a arrepelar-se em gritos de bravata que ecoam ao longe, causando assombro mesmo às mentes menos impressionáveis... as estocadas ecoantes do cabo do chicote na tábua da carroça acrescentando um efeito dramático ao tropel... Um verdadeiro banzé de fanfarrice, desafio e petulância num dialeto caboclo antigo. Troço de arrepiar! Nos lares, o sobressalto noturno de crianças e adultos, arrojados a um esquisito transe de pesadelo... (Detalhe curioso: Chicão só cai da ‘boléia’ quando está moderadamente bêbado.)

Outro detalhe, mais curioso ainda, é que apesar dessas explosões de virilidade furiosa, vez ou outra o Chicão vira o disco. Sim, o camarada escorrega no quiabo e cai de boca!, entuba a bratchôla no escurinho da praça ou nas quebradas, dá dinheiro e maconha pra molecada e ainda leva aquelas tradicionais porradas post coitum sem reagir, apesar da gritante superioridade física. Outra típica explosão sua: “Vai, vai!! manda bala, que tu tá comendo é cu de macho, rapaiz!!”

Um caso que ficou famoso na cidade foi o estardalhaço que ele aprontou certa vez, em plena luz do dia, aterrorizando os pacatos cidadãos com um galope alucinado pelas ruas do centro da cidade, rebocando um vira-latas morto, amarrado à carroça por uma corda presa ao pescoço. Dava até cavalo-de-pau com a carroça, literalmente! Respondeu a um processozinho por contravenção penal pelo linchamento do bicho, ganhou 3 dias no xilindró, e tudo bem.

Agora, um fato redentor: fiquei sabendo que ele cuida, de maneira irrepreensível, de uma pequena sobrinha orfã, a quem não deixa faltar nada.

#

Mas, voltando ao acontecimento principal, cerca de um ano atrás, lá pelas 8 da noite, Chicão encosta a carroça na calçada e adentra o bar do seu Rui, naquele estado... Sua narina espumava estranhamente (uns moleques tinham lhe dado Sonrisal pra cheirar, dizendo ser brizola da boa). Mete um murro no balcão, ralhando: “Sapeca aí um copo liso e taca aqui nos peito!” O dono do bar, desses lusitanos sistemáticos e coléricos, encheu o copo de pinga e, conforme lhe solicitara o freguês, tacou-lhe nos peito. Todo molhado, nosso Odin-depois-da-gripe apenas protestou: “Ah, é?!!!” E foi enxugando todos os copos de bebida, dos fregueses, que estavam sobre o balcão, um a um. Cerveja, pinga, traçadinho de menta, conhaque, catuaba – traçou tudo, sem parar pra tomar fôlego. Depois entortou um porta-guardanapos de inox, desses grandes, com os dentes, e ainda mastigou dois copos americanos. Aos que testemunharam a cena, interroguei o melhor que pude sobre este detalhe. E todos foram taxativos: ele partia os copos com os dentes, como bolachinhas crocantes, crec! crec! e mastigava os cacos, sorrindo e zombando. Nem sangue saiu. Uns juram de pés juntos que ele teria engolido os cacos; outros se negam a acreditar.

Havia uma metade de moranga crua e já ressequida, de enfeite em cima duma mureta; pois bem, de quebra, Chicão destroçou-a também, entre as mandíbulas, como caititu raivoso. Arrancava um naco, mastigava e cuspia pro lado, arrancava, mastigava e cuspia, até restar só a metade dum gomo, que ele arremessou sobre uma prateleira de bebidas! E partiu à toda em sua carroça voadora. “Ieeeeeêaa! Raaasga Tufaão!!!” Até hoje, ele não teve problema algum com os snacks sekitos da Nadir Figueiredo. Nem azia! Nada, nada!

#

Agora vamos conversar. Tenha ou não o Chicão engolido os cacos de vidro, creio que a parada foi mágica. Sim, mesmo arriscando destruir toda a minha reputação acadêmica, prefiro este termo – ‘mágico’. Qualificar certos prodígios como ‘paranormais’ pode ser correto e justo, mas este termo pretensamente científico tem muitas vezes o efeito de anestesiar um sentimento essencial: o espanto. A indolência do pensamento lança mão de um anteparo de cientificismo engatinhante: “Oh, trata-se de um fenômeno paranormal, uma superexcitação do id. – Dr. Shukrutz explica.” E a coisa morre por aí, em mais um chavão ocioso.

Este causo, apesar de pitoresco e sujo, constitui um autêntico episódio de estupro à banalidade do ‘real’. Não é uma história povoada por reis, magos, eremitas, vizires, sacerdotisas semi-nuas; e não aconteceu em meio às brumas de Stonehenge, nem na cabulosa Bagdá de antanho. Mas é um fato 99% verídico. Muitcho lôco!

( E tem mais: se começarem a me chamar de mentiroso, vou dar o troco! Primeiro vou mudar o título desta pequena gesta: “Na Boléia da Carroça, Eu Sentei e Chorei”. Depois vou colocar um sultão, um alquimista e um cavaleiro templário na história, e vou entrar pra Academia Brasileira de Letras, e vou comer o cu de meio mundo, tá ligado?!)


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